Cena feliz de cidade
Não devia ter feito aquiol
Um avião de pequeno porte sobrevoa uma avenida movimentada de São Paulo. Um rastro de fumaça aos poucos parece desenhar letras. As pessoas param na calçada e olham para o céu, tentando decifrar a mensagem. Primeiro um P. Depois um U.
— “Puta que pariu”?
Duas velhinhas se entreolham.
— Deve ser algum protesto.
Pela porta aberta, o gato sai do apartamento e desce as escadas. A criança vai atrás, mas pega o elevador. Na portaria, o gato se enrola e diz que vai à padaria. O porteiro, desconfiado, não abre o portão. A criança pega o gato no colo e diz:
— Você tentou fugir, seu gato filho da puta?
Com o cigarro entre os dentes, o porteiro procura um fósforo bom na caixa e fala para si mesmo:
— Pior que é filho da puta mesmo.
O carro avança a toda. Duas mulheres sorridentes observam pelo parabrisa a rua sendo engolida pelo automóvel. 2.8, preto, câmbio automático. É só pisar que sai voando. O volante é manejado de forma displicente. Elas comem McDonald’s, e a carona serve batata frita na boca da motorista.
— Ketchup — ela demanda, autoritária.
— Quer que chupe? — diz a outra, e ri despreocupada, a janela aberta, cabelos ao vento. São 11h da manhã e elas estão muito loucas desde ontem.
Milton Nascimento vai se apresentar. Pessoas fazem fila para comprar os ingressos. Alguém diz:
— O Milton não vai tocar — e as pessoas desfazem a fila, desanimadas, lamentando-se — Ele vai arrebentar! — as pessoas retomam seus lugares, alegres, suspirando aliviadas.
Trezentas pessoas formam a fila, todas querem o Milton. Alguém diz:
— Eu não gosto do Milton — e as pessoas se viram, rostos contorcidos de raiva, um homem alto forte e careca começa a esmurrar a própria mão, ameaçadoramente — Eu amo o Milton — as pessoas riem, concordam, o homem alto forte e careca bate palmas, sorridente.
Uma mulher gorda empurra um carrinho de bebê. Dentro, leva um cachorro, que sorri, plácido.
Com os cabelos recém-raspados, o homem se dirige à varanda. Na mão, um copo de chá de boldo; na orelha, um cigarro. Dá um gole e sente a luminosidade agredir a vista. Entra para pegar os óculos escuros e o isqueiro.
O telefone toca:
— Oi, é a Lina. Tá com a TV ligada? Põe na Globo.
— Uhm. Tá.
— Tá vendo?
— O quê? O jornal?
— É, o SPTV, tá vendo?
— Aqui é MGTV.
— Agora você vai aprender a nunca mais fugir, seu gato escroto.
Com suas mãozinhas fofas a criança abre o cofre, tira os documentos confidenciais dos adultos — como ela descobriu a senha? — e coloca o gato dentro.
O carro entra desgovernado pela avenida, sobe o canteiro, atravessa a contramão e entra em uma transversal.
— Derrubou toda a Coca.
— Eu queria Fanta — diz a motorista. Ambas riem. O som alto toca Oceano.
— Amar é um deserto e seus temores — cantam juntas, paradas no farol, seta para esquerda. O farol abre, o carro entra e contorna o quarteirão; pega a subida de volta para a avenida e torna a acelerar. São 11h50.
— Eu nem conheço nenhuma música do Milton — confessa o rapaz à namorada — Vamos embora, tô com fome.
— Não! Já já abre a bilheteria.
Ninguém no guichê. Um grupo de senhores canta Saudade dos Aviões da Panair a capella. Não está legal.
— Quem é que não conhece nenhuma música do Milton? — pergunta, beligerante, o homem alto forte e careca.
— Eu — diz o rapaz, hesitante, e começa a se desculpar — Não é muito meu estilo.
O homem alto forte e careca balança a cabeça negativamente.
— Quero ver você falar isso na cara dele — diz o homem alto forte e careca. Inesperadamente, ele agarra a pele do pescoço e arranca-a pela cabeça: era uma máscara. Por baixo, é o Milton, ele mesmo. O rapaz, em choque, busca a gola da camiseta. Puxa a pele e arranca sua máscara: também ele é o Milton. Toda a fila faz o mesmo, todos são o Milton. Começam a dançar de forma espalhafatosa enquanto cantam Maria, Maria. Uma menininha de 5 anos reclama:
— Logo essa?
Arranca sua máscara e dança junto.
O cachorro começa a latir, a velha para o carrinho e olha para o bicho:
— O que foi, Gustavo? Está com fome? — tira do bolso do cardigã um biscoito, que coloca ao lado do cachorro.
É uma Passatempo. O cachorro late mais alto, olhando para cima.
O rapaz do cabelo recém-cortado volta à varanda, agora de óculos, dá o último gole do chá de boldo, faz uma careta, e acende o cigarro. Força os olhos e vê ao longe um avião voando baixo, soltando fumaça. O rastro começa a se dividir no que parecem ser letras e palavras.
O helicóptero da Globo sobrevoa a fila para o show do Milton, e lá embaixo acontece um espetáculo ridículo, praticamente ininteligível daquela altura. Pessoas vestindo máscaras do Milton dançam e cantam. Pela TV mal se pode perceber o que se sucede. A pauta é combinada — um flashmob organizado pelo fã clube local do cantor. César Tralli cita Caetano errado:
— Olha só, que bacana! São Miltons, seus mil tons e seus sons geniais!
Um brusco evento faz com que a câmera do helicóptero levante seu olhar e o projete para a avenida, onde uma linha cinzenta corta o céu azul.
O carro fura o farol vermelho, passa violentamente por cima de um ciclista, atravessa a porta de vidro de um banco e bate nos caixas eletrônicos. O airbag é acionado; as meninas batem o vidro quebrado das roupas e riem ao descer do carro. O segurança, sem saber o que fazer, saca o cassetete. O ciclista se levanta, monta na bicicleta e passa por cima de um pedestre. O pedestre chuta uma criança. A criança morde o mendigo, e o mendigo rouba a bolacha de Gustavo que, fechando a cara, avança no carteiro. Um homem com a camisa do Boca Juniors é confundido com um argentino e toma do segurança uma pancada bem dada na cabeça. As meninas comem nuggets, o carro solta fumaça, uma das velhinhas aponta para o céu e diz:
— Olha lá, voltou o avião.
Ele volta a escrever. Primeiro um N. Depois um A. Depois um O. Depois um D.
— “Naodevi”?
— “Não devia”, faltou o til.
E continua: T. E. R. F. E. I. T. O. A. Q. U. I. O. L.
— “Aquiol”?
— “Aquilo”, ele escreveu errado.
— Como você sabe que é ele? Pode ser ela.
DESCULPA POR TUDO, escreve o avião, por fim, antes de se chocar contra o oitavo andar de um prédio residencial. A um breve momento de silêncio segue-se uma explosão e o prédio começa a ruir, até não sobrar nada além de escombros, com a mãozinha fofa de uma criança escapando para fora dos pedregulhos. Com um cigarro na boca e coberto de pó da cabeça aos pés, o porteiro diz:
— Claudinho!
— Alô, Rafa? O Djavan tá aí? É o Milton, pede pra ele me ligar depois, por favor.
A equipe de resgate chega em tempo recorde, e começa a revirar o entulho em busca de sobreviventes. O corpo do frágil Claudinho descansa morto sob um lençol. O porteiro fuma o quinto desde que o prédio caiu. Tudo parece ter sido convertido em pedra e pó, exceto por um cubo de aço esverdeado. Com muito custo três bombeiros o arrastam para fora dos escombros. Um deles gira a manivela para a esquerda e a porta se abre. O helicóptero agora cobre toda a ação. Do estúdio, César Tralli diz:
— Olha um gatinho!
— É um gatinho mesmo, Tralli — responde Michelle Barros, do Globocop — Os bombeiros já começam a fazer o resgate, mas ainda não temos a confirmação do que exatamente aconteceu aqui. O trânsito está todo interditado nos dois sentidos e nem sinal da CET.
— É um problemão!
— Há corpos estendidos na calçada.
— E o gatinho fugiu. Muito obrigado, Michele! — agora direto do estúdio, César Tralli declara, em ótimo estado de espírito — Acabou o SPTV! Vem aí o Globo Esporte, com Ivan Moré. Amanhã tem mais SPTV, ao meio-dia pra você. Aproveite bem o seu fim de semana e muito obrigado pelo seu carinho, pela sua companhia. A gente fica muito feliz com você aqui. Um forte abraço, e fica em paz.
Sobem os créditos. Diretor responsável: Ali Kamel.