Foto por Anuk Akira

Cena feliz de cidade

Não devia ter feito aquiol

Rafael Zanatto
Editora Canhoto
Published in
6 min readMar 23, 2016

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Um avião de pequeno porte sobrevoa uma avenida movimentada de São Paulo. Um rastro de fumaça aos poucos parece desenhar letras. As pessoas param na calçada e olham para o céu, tentando decifrar a mensagem. Primeiro um P. Depois um U.

— “Puta que pariu”?

Duas velhinhas se entreolham.

— Deve ser algum protesto.

Pela porta aberta, o gato sai do apartamento e desce as escadas. A criança vai atrás, mas pega o elevador. Na portaria, o gato se enrola e diz que vai à padaria. O porteiro, desconfiado, não abre o portão. A criança pega o gato no colo e diz:

— Você tentou fugir, seu gato filho da puta?

Com o cigarro entre os dentes, o porteiro procura um fósforo bom na caixa e fala para si mesmo:

— Pior que é filho da puta mesmo.

O carro avança a toda. Duas mulheres sorridentes observam pelo parabrisa a rua sendo engolida pelo automóvel. 2.8, preto, câmbio automático. É só pisar que sai voando. O volante é manejado de forma displicente. Elas comem McDonald’s, e a carona serve batata frita na boca da motorista.

— Ketchup — ela demanda, autoritária.

— Quer que chupe? — diz a outra, e ri despreocupada, a janela aberta, cabelos ao vento. São 11h da manhã e elas estão muito loucas desde ontem.

Milton Nascimento vai se apresentar. Pessoas fazem fila para comprar os ingressos. Alguém diz:

— O Milton não vai tocar — e as pessoas desfazem a fila, desanimadas, lamentando-se — Ele vai arrebentar! — as pessoas retomam seus lugares, alegres, suspirando aliviadas.

Trezentas pessoas formam a fila, todas querem o Milton. Alguém diz:

— Eu não gosto do Milton — e as pessoas se viram, rostos contorcidos de raiva, um homem alto forte e careca começa a esmurrar a própria mão, ameaçadoramente — Eu amo o Milton — as pessoas riem, concordam, o homem alto forte e careca bate palmas, sorridente.

Uma mulher gorda empurra um carrinho de bebê. Dentro, leva um cachorro, que sorri, plácido.

Com os cabelos recém-raspados, o homem se dirige à varanda. Na mão, um copo de chá de boldo; na orelha, um cigarro. Dá um gole e sente a luminosidade agredir a vista. Entra para pegar os óculos escuros e o isqueiro.

O telefone toca:

— Oi, é a Lina. Tá com a TV ligada? Põe na Globo.

— Uhm. Tá.

— Tá vendo?

— O quê? O jornal?

— É, o SPTV, tá vendo?

— Aqui é MGTV.

— Agora você vai aprender a nunca mais fugir, seu gato escroto.

Com suas mãozinhas fofas a criança abre o cofre, tira os documentos confidenciais dos adultos — como ela descobriu a senha? — e coloca o gato dentro.

O carro entra desgovernado pela avenida, sobe o canteiro, atravessa a contramão e entra em uma transversal.

— Derrubou toda a Coca.

— Eu queria Fanta — diz a motorista. Ambas riem. O som alto toca Oceano.

— Amar é um deserto e seus temores — cantam juntas, paradas no farol, seta para esquerda. O farol abre, o carro entra e contorna o quarteirão; pega a subida de volta para a avenida e torna a acelerar. São 11h50.

— Eu nem conheço nenhuma música do Milton — confessa o rapaz à namorada — Vamos embora, tô com fome.

— Não! Já já abre a bilheteria.

Ninguém no guichê. Um grupo de senhores canta Saudade dos Aviões da Panair a capella. Não está legal.

— Quem é que não conhece nenhuma música do Milton? — pergunta, beligerante, o homem alto forte e careca.

— Eu — diz o rapaz, hesitante, e começa a se desculpar — Não é muito meu estilo.

O homem alto forte e careca balança a cabeça negativamente.

— Quero ver você falar isso na cara dele — diz o homem alto forte e careca. Inesperadamente, ele agarra a pele do pescoço e arranca-a pela cabeça: era uma máscara. Por baixo, é o Milton, ele mesmo. O rapaz, em choque, busca a gola da camiseta. Puxa a pele e arranca sua máscara: também ele é o Milton. Toda a fila faz o mesmo, todos são o Milton. Começam a dançar de forma espalhafatosa enquanto cantam Maria, Maria. Uma menininha de 5 anos reclama:

— Logo essa?

Arranca sua máscara e dança junto.

O cachorro começa a latir, a velha para o carrinho e olha para o bicho:

— O que foi, Gustavo? Está com fome? — tira do bolso do cardigã um biscoito, que coloca ao lado do cachorro.

É uma Passatempo. O cachorro late mais alto, olhando para cima.

O rapaz do cabelo recém-cortado volta à varanda, agora de óculos, dá o último gole do chá de boldo, faz uma careta, e acende o cigarro. Força os olhos e vê ao longe um avião voando baixo, soltando fumaça. O rastro começa a se dividir no que parecem ser letras e palavras.

O helicóptero da Globo sobrevoa a fila para o show do Milton, e lá embaixo acontece um espetáculo ridículo, praticamente ininteligível daquela altura. Pessoas vestindo máscaras do Milton dançam e cantam. Pela TV mal se pode perceber o que se sucede. A pauta é combinada — um flashmob organizado pelo fã clube local do cantor. César Tralli cita Caetano errado:

— Olha só, que bacana! São Miltons, seus mil tons e seus sons geniais!

Um brusco evento faz com que a câmera do helicóptero levante seu olhar e o projete para a avenida, onde uma linha cinzenta corta o céu azul.

O carro fura o farol vermelho, passa violentamente por cima de um ciclista, atravessa a porta de vidro de um banco e bate nos caixas eletrônicos. O airbag é acionado; as meninas batem o vidro quebrado das roupas e riem ao descer do carro. O segurança, sem saber o que fazer, saca o cassetete. O ciclista se levanta, monta na bicicleta e passa por cima de um pedestre. O pedestre chuta uma criança. A criança morde o mendigo, e o mendigo rouba a bolacha de Gustavo que, fechando a cara, avança no carteiro. Um homem com a camisa do Boca Juniors é confundido com um argentino e toma do segurança uma pancada bem dada na cabeça. As meninas comem nuggets, o carro solta fumaça, uma das velhinhas aponta para o céu e diz:

— Olha lá, voltou o avião.

Ele volta a escrever. Primeiro um N. Depois um A. Depois um O. Depois um D.

— “Naodevi”?

— “Não devia”, faltou o til.

E continua: T. E. R. F. E. I. T. O. A. Q. U. I. O. L.

— “Aquiol”?

— “Aquilo”, ele escreveu errado.

— Como você sabe que é ele? Pode ser ela.

DESCULPA POR TUDO, escreve o avião, por fim, antes de se chocar contra o oitavo andar de um prédio residencial. A um breve momento de silêncio segue-se uma explosão e o prédio começa a ruir, até não sobrar nada além de escombros, com a mãozinha fofa de uma criança escapando para fora dos pedregulhos. Com um cigarro na boca e coberto de pó da cabeça aos pés, o porteiro diz:

— Claudinho!

— Alô, Rafa? O Djavan tá aí? É o Milton, pede pra ele me ligar depois, por favor.

A equipe de resgate chega em tempo recorde, e começa a revirar o entulho em busca de sobreviventes. O corpo do frágil Claudinho descansa morto sob um lençol. O porteiro fuma o quinto desde que o prédio caiu. Tudo parece ter sido convertido em pedra e pó, exceto por um cubo de aço esverdeado. Com muito custo três bombeiros o arrastam para fora dos escombros. Um deles gira a manivela para a esquerda e a porta se abre. O helicóptero agora cobre toda a ação. Do estúdio, César Tralli diz:

— Olha um gatinho!

— É um gatinho mesmo, Tralli — responde Michelle Barros, do Globocop — Os bombeiros já começam a fazer o resgate, mas ainda não temos a confirmação do que exatamente aconteceu aqui. O trânsito está todo interditado nos dois sentidos e nem sinal da CET.

­ — É um problemão!

— Há corpos estendidos na calçada.

— E o gatinho fugiu. Muito obrigado, Michele! — agora direto do estúdio, César Tralli declara, em ótimo estado de espírito — Acabou o SPTV! Vem aí o Globo Esporte, com Ivan Moré. Amanhã tem mais SPTV, ao meio-dia pra você. Aproveite bem o seu fim de semana e muito obrigado pelo seu carinho, pela sua companhia. A gente fica muito feliz com você aqui. Um forte abraço, e fica em paz.

Sobem os créditos. Diretor responsável: Ali Kamel.

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