Fausto Silva: apresentador e psicanalista

Masculinidade e barbárie

Rafael Zanatto
Editora Canhoto

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Na lassidão da tarde de domingo, a alma do homem médio brasileiro se mostra mais vulnerável. O céu se alarga, rosa e lilás; todos estão amortecidos e à flor da pele. Ainda embriagado pelo almoço, pelo sono, pela cerveja e pela derrota de seu time, o homem no sofá está frágil, suscetível. Na cozinha, uma pilha de louça; na sala, latas de cerveja. A noite cai lentamente, e uma figura na janela parece observá-lo. Ela se movimenta sombria pelo escuro crepúsculo. O homem percebe o vulto e o acompanha com apreensão — ele nada faz. A noite se instala e a luz da sala se acende, então ele percebe seu engano: na janela, a figura misteriosa é seu próprio reflexo. Mais além, na imagem do vidro-espelho, ele vê sua mulher. Ela também o observa, em pé, ao lado do interruptor. É aí que entra o Faustão.

Um sonho

Recentemente tive um sonho revelador. Nele, eu assistia ao Domingão do Faustão confortavelmente sentado na sala-de-estar. Faustão vestia uma camisa listrada e extravagante, tinha um enorme relógio dourado no pulso e falava ao microfone. Até aí tudo bem, tudo normal. Então a câmera fechava em seu rosto, e uma legenda aparecia na tela:

Fausto Silva
Apresentador e psicanalista

Eu quase pulava do sofá, me retorcia de excitação. A ideia me era irresistível, arrebatadora. O nome de Fausto Silva brilhava no ar puro: apresentador e psicanalista. Como assim o Faustão era psicanalista e ninguém fala nada? Como vivi todos esses anos sem saber? Era de um ponto de inflexão na minha vida — nada mais seria como antes, eu era um homem mudado. Pensando bem, era claro e cristalino: óbvio que o Faustão era um psicanalista, sempre foi. Eu, na minha ignorância, é que nunca suspeitei. Como pude ser tão ingênuo a ponto de ser surpreendido assim, casualmente, por um GC da Rede Globo? A revelação era tremenda. Enquanto o sonho durou, durou também minha euforia.

Acordei calmamente, mas o sentimento ainda perdurava em mim. Deitado na cama, repassei o sonho por alguns minutos — tratava-se de uma revelação, sem dúvida. Uma revelação irrelevante, senão algo idiota, mas uma autêntica revelação. Eu precisava levantar, preparar o café, seguir minha vida. O caminho mais fácil era simplesmente deixar essa história de lado. Mas nunca fui homem de escolher o caminho mais fácil, por isso permaneci na cama mais alguns minutos. Entre o sono e a vigília daquele delírio matinal, perscrutava os motivos pelos quais meu inconsciente me ofertava tão próspero campo de investigação, e seguia seu caminho.

O homem médio

Se me permitem uma apresentação, gostaria de enunciar meu lugar de fala. Escrevo na condição de homem branco cis hétero que já viu muita TV. Na condição de uma pessoa privilegiada porém ordinária, não muito educada nem muito chucra, que gosta de sentar e tomar uma cerveja no bar, que acompanha avidamente o movimento dos jogadores na tela verde, seja lá quem estiver jogando. Convivi minha vida toda com homens que não gostam de mulheres, mas de outros homens¹. É a partir dessa vivência que pretendo desenvolver, na primeira parte do texto, a atuação psicanalítica de Fausto Silva, apresentando os tipos sociais conceitualizados pelo apresentador (e psicanalista); na segunda, já devidamente munido do método faustiano, farei uma pequena incursão pelos desdobramentos malignos da frustrada masculinidade média brasileira.
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Como demonstrado por Paula Garruth de forma bastante precisa e sucinta no artigo Os homens não gostam de mulheres.

Primeiro, vamos às Vídeo Cassetadas.

No divã com Faustão

Quem já fez terapia sabe como funciona: você senta numa cadeira ou deita num divã e começa a falar. O terapeuta — um homem reservado aparentando sono, ou uma mulher também com sono só que muito simpática — senta-se à sua frente ou fica escondido às suas costas mexendo no celular. Ele ou ela limita-se a concordar com a cabeça ou com um “a-ham” atrasado — no máximo, faz uma careta involuntária quando você se expõe demais. Pelo menos minhas experiências foram mais ou menos nessa linha. De qualquer forma, os papéis são bem claros: o paciente fala e o terapeuta fica imerso nos próprios pensamentos, bocejando escondido, esperando a sessão acabar.

Já Fausto Silva inverte e distorce os papeis. Como analista, é ele quem fala, e fala incessantemente — afinal o programa é dele. Fala sem parar, o que der na telha, num fluxo de consciência ao vivo e quase sem filtro. O paciente, por sua vez (eu, você, todos nós), não tem nenhum direito a não ser ficar sentado olhando pra cara dele o dia todo, fazendo caretas e se revirando no divã a cada absurdo emitido pelo psicanalista. A única escolha é a resignação — existe alternativa mais infernal do que mudar pro SBT?

Durante toda a tarde ele vai preparando o terreno para sua análise. Para esclarecer como o apresentador transforma a seção final do programa em sua sessão semanal de psicanálise, gostaria de tomar emprestados (de forma bastante ligeira, inapropriada e talvez até abertamente meio burra) alguns termos elaborados em 1991 por Gilles Deleuze e Félix Guattari em O que é a filosofia?. No livro, os autores explicam o funcionamento da filosofia, da ciência e da arte como disciplinas criadoras. A partir do pano de fundo comum do caos (o incriado que contém, potencialmente, tudo), cada uma delas tem seu expediente próprio para atualizar o virtual (dar forma àquilo que, no caos, ainda não tem consistência). No caso da filosofia, o filósofo cria seu personagem conceitual (Sócrates é o personagem conceitual de Platão; Zaratustra é um dos personagens conceituais de Nietzsche etc.), que então traça um plano de imanência (uma delimitação quase topográfica do caos) onde irá erigir seus conceitos (as ideias filosóficas)². Posso muito bem ter entendido o livro errado, essa hipótese nunca deve ser descartada.
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2 O mesmo acontece na ciência (com o plano de referência, funções e proposições) e na arte (plano de composição, afetos e perceptos), mas não vamos muito a fundo nessa história, caso contrário minha teoria corre sério risco de não se sustentar.

Transportando os conceitos deleuzo-guattarianos para o panorama psicanalítico da presente investigação podemos estabelecer alguns paralelos. O personagem conceitual de Fausto Silva, desnecessário dizer, é o próprio Faustão, que traça um plano de imanência na sala-de-estar de cada espectador. É naquele espaço entre a TV e o sofá que ele coloca em evidência seus tipos sociais.

Após uma longa sequência de quadros que parecem todos os mesmos e não guardam nenhuma relação entre si (entrevistas, shows, danças, jogos, concursos de calouros etc.), Faustão estimula a livre-associação em seus pacientes, como num teste de Rorschach televisivo (“Isso é uma cobra ou um tubarão?”, “Aquele não é o vocalista do Sambô?”, “O que aquele cachorro disse?”). Nesse ambiente de distensão psicológica, público e apresentador já estão habituados o suficiente com a companhia um do outro — a TV se torna uma espécie amigável da teletela orwelliana³. Com a guarda baixa, público e apresentador estabelecem uma real cumplicidade, que culmina nas Vídeo Cassetadas. É entre uma cassetada e outra que Fausto Silva reflete sobre o cotidiano familiar, e inicia sua ofensiva contra seus tipos sociais prediletos.
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Mais ou menos como o cachorro que carrega sua própria coleira quando vai passear.

Os tipos sociais

Quem já assistiu as Vídeo Cassetadas sabe como funciona. Num grito mais ou menos do nada, Fausto Silva anuncia, com sua prosódia explosiva e inconfundível, que é hora de alegria, é hora das Vídeo Cassetadas, pessoal. A música sobe, as bailarinas iniciam uma nova coreografia (a trigésima do dia), todos são tomados por uma alegria tão genuína quanto desesperada: é o momento final do programa, só mais um esforço e em breve estaremos livres dessa loucura. Enquanto isso, na sala-de-estar, a família toda se mobiliza ao ouvir o apresentador gritar pela TV. Alguém passa avisando: “Vai começar as Vídeo Cassetadas”, e quem estava fazendo outra coisa — jogando baralho, lavando a louça, fumando cigarro, montando Lego — logo acode para o aparelho de televisão. Sentam-se todos no sofá, puxam-se cadeiras, as crianças se espalham no chão. Os espectadores, que antes assistiam o programa de forma completamente passiva, agora mudam de postura — se não podemos afirmar que são ativos no processo (toda agência é monopólio de Fausto Silva), pelo menos o ato de olhar para a tela investe-se de intencionalidade.

Como acontece desde o início do programa, as coisas se atropelam: Faustão toma o centro do palco e dispersa as bailarinas no meio da coreografia. “Vai começar as Vídeo Cassetadas, eita!”, ele repete. Com o palco pacificado, ele faz um breve editorial, a início hesitante: “Domingo é aquele dia, né? Ê, a mulherada. Todo mundo acorda cedo… Não é? Ô!” E sentencia solenemente, com sua típica verve cômica: “Você sai da cama, mas a cama nunca sai de você”. Enumera alguns nomes, entre famosos e anônimos, na primeira dedicatória da noite, então os vídeos começam a rolar. Faustão comenta todos eles — ri, se diverte, faz observações maldosas, finge exagerado fastio quando juga algum deles sem graça e não se furta de criticar quem fez a seleção das Cassetadas. Tudo é permeado por suas expressões auxiliares, que emite de forma periódica, espasmódica e praticamente involuntária: “é isso aí”, “olha lá, meu” e, a mais famosa delas, “ô louco, bicho”.

Entre um bloco e outro de Cassetadas, Faustão olha para a câmera com sua disposição ambiguamente característica, e faz pequenas críticas domésticas, à moda doméstica: ele fala sério, mas está brincando; ou está brincando, mas fala sério. Com a sala-de-estar povoada de rostos familiares, Fausto Silva conversa com o Brasil. Seu interlocutor varia, mas o objeto da análise parece ser sempre a mesma pessoa — apenas abordada sob diferentes pontos de vista, em diferentes posições relacionais. A saber, o homem de meia-idade.

Aquele homem embriagado, já estiolado por anos de reveses, é agora o centro das atenções. Ele brilha no palco imaginário do Domingão, é a materialização dos tipos sociais de Faustão. Em sua primeira investidura, o homem de meia-idade é abordado a partir de sua esposa. Faustão diz à mulher: “Você que tá aí, vendo o maridão que era bom de cama no passado… e hoje é bom de cana. Só bebe.”

A esposa observa o Maridão. Embotado, ele segura a cerveja e olha para a tela, sem nem desconfiar que se fala dele. Mantém a mesma expressão ausente no rosto; a mulher respira fundo e desvia o olhar. Elevado ao status de cônjuge por meio da aliança do matrimônio, o homem tem sua entrada triunfal na plena vida adulta como elemento que fundamenta a família tradicional cristã — de um simples jovem com fortes hábitos masturbatórios ele repentinamente se torna o próprio alicerce da sociedade. Imagina o estrago que isso não faz no psicológico do rapaz. Ao longo dos anos, porém, seu status entra numa estranha remissão: fraco, sem desejo, inoperante, ele volta a se tornar um estranho em casa. Aquele que era o super-homem dos quadrinhos e da Bíblia de repente se torna uma espécie de inimigo íntimo, um estorvo com o qual a esposa (por força do contrato/aliança) lida ora com impaciência, ora com indiferença — eis que o Marido decai em Maridão. E dá-lhe mais danos psicológicos. Esse casamento falido é a forma arquetípica do relacionamento conjugal brasileiro: um conflito de longa duração e de baixa intensidade entre os sexos, demonstrando a tese sempre presente (em círculos masculinos, bem entendido) de que não existe possibilidade de amizade entre homens e mulheres, apenas encontros pontuais motivados por interesses mais ou menos claros.

De volta às Vídeo Cassetadas, o mal-na-sala-de-estar se desfaz momentaneamente, e todos riem com um homem gordo levantado por um touro (a tauromaquia é um dos elementos centrais das Vídeo Cassetadas), com um bebê que vomita na boca do pai (acontece), com um adolescente que, numa inconsequente manobra de bicicleta, aterrissa de saco num corrimão (Faustão presta sua mais sincera solidariedade) — os homens, mais estúpidos por natureza, são os personagens centrais das Vídeo Cassetadas; as mulheres, por sua vez, limitam-se aos papeis auxiliares de Tia Gorda ou Loira Burra. Diversão garantida. Agora, de volta ao drama familiar.
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4 A vingança do corno?

Para facilitar a visualização do próximo personagem conceitual, imaginemos que o homem de meia-idade segue sentado, rodeado das mesmas pessoas, mas agora em outra sala, em outra casa. Dessa vez, ele é um convidado — apesar de se fazer perfeitamente à vontade no sofá. Na TV, Faustão fala: “Agora, domingo, é aquele dia em que os parentes aparecem na sua casa e ficam comendo o dia todo. O cunhadão não trouxe nada, mas já tomou uma caixa de cerveja, sentadão no sofá. Ô louco, bicho. E a visita não vai embora. Você serve café, empurra um monte de coisa. Tem aquela torta de camarão que sobrou só um pedacinho. Não é verdade? Você tá louco pra comer, e olhando pra visita. Mas o cunhadão parece um peixe no sofá: nada.”

Realizamos aqui uma mudança de ponto de vista: o homem que antes era o personagem decaído de uma aliança falida (o Maridão), agora torna-se um problema de oblíquo acesso, um parente por afinidade. Parente: da família: mas nem tanto. Se o casamento falido é o arquétipo do matrimônio brasileiro, o cunhado é o arquétipo do estorvo — um misto de família (pois deve ser suportado) com inimigo (pois é, em certa medida, insuportável). Dessa forma, a figura do Cunhadão revela o desdobramento de certa regra relacional brasileira: uma convivência no mínimo problemática que, para evitar um indesejado confronto, acaba acomodada/acumulada de forma precária. Agora à terceira encarnação do homem de meia-idade.
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5 Se me permitem uma anedota, gostaria de apontar — como lembra Eduardo Viveiros de Castro, em Metafísicas Canibais — que em tupi-guarani antigo “cunhado” e “inimigo” se designam com a mesma palavra: tovajar. Não me perguntem mais nada sobre tupi-guarani antigo, por favor.

Nosso último tipo social analisado não figura no panteão do Faustão, mas está presente no imaginário brasileiro, e revela-se aqui de forma surpreendente. Se começamos a traçar uma linha que parte do núcleo familiar, com o Maridão, e, passando pelo Cunhadão, segue até as periferias da parentela, é inevitável que esbarremos na personificação marginal do homem de meia-idade, o Tiozão. Como em suas outras investiduras, a essência não está em si, mas nas relações que estabelece dentro da família.

Mínimo denominador comum

Façamos um breve resumo esquemático dessas relações à luz do método faustiano: o Maridão existe no contexto conjugal, relacionando-se com a Esposa, e apresenta um caráter neutro-negativo (“apesar de tudo…”); o Cunhadão, num contexto mais amplo da família estendida, relaciona-se com o Núcleo Familiar (cônjuges), é de tipo negativo-simples (“família você não escolhe…”); já o Tiozão, nas franjas Núcleo Familiar, relaciona-se com a geração seguinte à sua (em relação à sua própria geração, o homem de meia-idade pode tranquilamente passar por Maridão ou Cunhadão, dependendo do contexto), e tem tipo negativo-positivo (“ele fala cada coisa…”). É dessa interação geracional que emerge o Tiozão, um homem de meia-idade que usa seus truques cômicos para entreter a molecada — já que, na maioria das vezes, suas relações intra-geracionais já foram pro vinagre. Isso para não falar nas inter-gênero, que já foram pelo ralo.
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6 Relações circunscritas ao universo binário, foco deste ensaio, que fique claro.
7 Ou melhor: só vão pelo ralo.

Maridão/Esposa > Cunhadão/Casal > Tiozão/Família

É assim que Faustão, numa inesperada virada, entra ruidosamente em seu próprio plano de imanência: Faustão é o arquétipo do Tiozão. De seu lugar de fala privilegiado, o apresentador e psicanalista coloca-se em posição ascendente em relação à família brasileira. Isso, somado à sua capacidade de emitir piadas quase automaticamente, o permite conversar com desenvoltura, fazer julgamentos e lançar críticas a torto e a direito. É um sábio, um piadista, um Tiozão. Ao mesmo tempo, impregna a sala-de-estar com o característico mal-estar do Tiozão: ele diz o que não deve, fala demais, toca em assuntos incômodos — ao falar brincando, mas sério, Faustão tem acesso aos conflitos acomodados da família.

Se os tipos sociais são, potencialmente, a mesma pessoa, podemos tentar daí extrair um denominador comum. E, pra não perder a piada, eu gostaria de chamar de mínimo denominador comum: é claro, é óbvio, falamos sobre o pênis. O pênis, como uma fantasiosa espada de Dâmocles, paira por um fio sobre a mente do homem. Ali, a espada assombra o homem com suas promessas de poder e ameaças de impotência. Ou melhor: a espada imaginária se ergue da virilha do homem de meia-idade. Presa por um tênue fio, qualquer movimento em falso é suficiente para quebrar esse frágil equilíbrio, fazer ruir esse totem de virilidade — de rijo como aço em flácido como uma maria-mole.

Refazendo o caminho mítico do homem como pilar da sociedade, lembramos que ele ascende a chefe da família, a Marido, justamente por conta de sua ereção. E sua caída em Maridão, como nos explica pedagogicamente Fausto Silva, ocorre em sincronia com o encolhimento de seu desejo (um pouco de eufemismo às vezes não faz mal). Refém de uma sexualidade centrada unicamente no seu próprio pau duro, o homem, num piscar de olhos, se encontra em maus lençóis. A partir do momento em aquele que se pensava infalível vê-se falhando repetidamente, fecha-se em si mesmo: mantendo a fantasia da infalibilidade, projeta no externo a razão de seu infortúnio: é o homem contra o mundo.

Aqui, novamente, evoco meu lugar de fala, agora como homem que já broxou múltiplas vezes. Qualquer mesa de bar é palco para homens que se vangloriam de suas conquistas e façanhas. A competição masculina é regida pela virilidade, pela força, pelo embate, pela subjugação física do outro. Como adolescentes que finalmente podem pôr em prática aquilo que viram em revistas e no computador, os homens discorrem sobre como realmente é comer uma mulher. É uma fantasia que sempre se atualiza de forma surpreendente: eu vou realmente comer uma mulher. Acometido desde sempre por esse deslumbramento, posso dizer que até hoje sou tomado por um sentimento desconcertante: uma incredulidade: não acredito que cheguei lá — de novo, mais uma vez. É uma esperança que se renova repetidamente (talvez não tão repetidamente assim), e que traz junto uma ponta de dor da incerteza (será que se repetirá? Ou finalmente será exposto a todos que sou um ser humano falho e a fonte dos meus desejos secará de vez?). Enfim, voltemos para o ensaio porque já estou me complicando.

No bar, os homens fazem questão de louvar a própria virilidade, contando, em detalhes genéricos (para não se complicar), como é realizar essa aventura máxima da humanidade que é transar. Como é realizar um imaginário alimentado de figuras e honrarias desde nossa infância. Como diz a piada canalha, não adianta comer uma mulher numa ilha deserta — tem que ter pelo menos mais um cara ali pra você poder contar como foi. Como de costume, o homem encontra seu fim em outros homens: comer uma mulher não basta, é necessário validar a experiência com seu igual. E a primeira coisa que vem à mente de um homem que broxa não é sua parceira, mas outros homens. Quando sai à rua, o homem que broxa vê outros homens e pensa: “Esses caras são capazes de comer alguém”. O porteiro com certeza comeu alguém antes de vir pro trabalho. O rapaz da padaria fodeu sua namorada a noite toda. O motorista de ônibus está com pressa pois quer comer sua esposa à vontade chegando em casa. O jovem no metrô está de pau duro indo comer alguém. Enquanto você, homem que broxa, não pode nem ser mais considerado homem.

Antes de continuar, eu gostaria de deixar algumas palavras de solidariedade. Como disse o Pelé: fale com seu médico — eu falaria. E pode ser um psicólogo, não tem problema.

De volta aos tipos sociais. O Maridão, recapitulando, é fruto de sua impotência. Já o Cunhadão, cujo pênis não tem, teoricamente, muita influência no Núcleo Familiar, joga luz à acomodação/acumulação de conflitos, típica da conduta brasileira. A família é uma bomba prestes a explodir no colo de alguém, mas, assim como a disfunção erétil, melhor não tocar no assunto. Já o Tiozão abre os conflitos, mas não traz nenhuma solução — ele só quer o caos.
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8 Estamos falando da Lei da Anistia, que fique claro.
9 Não à toa, Faustão é herdeiro de Chacrinha.

Esclarecimentos feitos, sigamos com o texto. Se os tipos sociais são relacionais, o próximo passo é meramente consequente: quais são as relações entre as figuras apresentadas? Como se relacionam o Maridão, o Cunhadão e o Tiozão? Em poucas palavras: da pior forma possível. Na segunda parte deste texto vou analisar como a masculinidade frustrada de homens de meia-idade é capaz de nos proporcionar, no seio da família brasileira, o que há de pior no ser humano.

Entre homens: machidez e rancor

A sós, Maridão, Cunhadão e Tiozão criam certa intimidade, a intimidade negativa permitida entre homens. O que os une, aqui, não é um tipo ideal-positivo de masculinidade (um suposto gosto pela aventura, a audácia, a rigidez, retidão etc.), mas sim seu triste, obscuro e, por que não, flácido oposto: a insegurança, o medo da mudança, a frouxidão. Essa inversão de valores, o outro lado da falaciosa moeda da masculinidade, é o que aqui eu gostaria de chamar, tendo em vista o mínimo denominador comum, de Machidez. O homem rejeitado se imagina um lobo solitário, confunde sua perversidade com valentia, seu ensimesmamento se torna uma ética tortuosa — uma “fera ferida”, resumiria ambiguamente Fausto Silva.

Mesmo assim, esses animais ariscos se reúnem. E a cumplicidade dos homens acometidos pela machidez (todos nós, a certa altura) é a cumplicidade dos homens fechados em si — uma cumplicidade contra algo.

Quem já sentou num bar frequentado por Maridões, Cunhadões e Tiozões sabe como é: discussões acaloradas sobre qual o melhor time, quem é o melhor jogador, quem deveria ser convocado, como fazer o Neymar render mais. Se os homens discordam sobre seus prazeres, eles concordam sobre seus desgostos: mulheres, jovens e bichas — basicamente, tipos insubordinados com os quais sua machidez não permite estabelecer relações duradouras de domínio.

Criados à base de uma dieta rica em ilusões, gordura, bebida e cigarro, os homens falidos, por sua vez, concebem no bar seu mundo ideal, onde não há esposas, filhos nem obrigações — muito menos, para alívio geral, a necessidade de sustentar uma ereção (que Deus me perdoe). É nesse fértil ambiente, temperado por uma TV ligada 24 horas por dia que só passa futebol e Datena, os homens acometidos pela machidez fermentam seu ódio.

A solução encontrada pelos homens falidos é enfrentar o desafio, como bravos soldados — o que, na novilíngua da machidez, significa rastejar covardemente como vermes. O ideal autocontrole e capacidade de argumentação são aplicados como longos silêncios, e poucas palavras cheias de ressentimento; a ofensiva ao inimigo é feita pelas costas, contra quem está ao seu lado; os firmes propósitos se dissolvem em reações acuadas; e a determinação é um objetivo difuso que não tem a dignidade de se assumir.

É assim que a machidez encena sua fraternidade em volta da mesa de sinuca. Ali, homens falidos passam bons momentos entre seus iguais, discorrendo sobre a liberdade (de não prestar contas com as vagabundas de suas mulheres nem os inúteis dos seus filhos). São dias apartados da família, dias embrenhados na mata fechada de garrafas de cerveja e copos de cachaça, calabresa acebolada e maços de cigarro. O espelho velho do banheiro reflete apenas a resistência de uma calvície mal disfarçada — um super-herói que quer fazer o mal, para si e para os outros, e a ilusão de uma recompensa inatingível. Um novo mundo não é possível, não há saída. É hora de arruinar o presente.

E o Faustão nessa história? Como autêntico Tiozão, ele anda na corda bamba — se, por um lado, é a voz dissonante da masculinidade, o coringa que desorganiza o jogo; por outro, é também um homem que reproduz a norma de comportamento, mais uma carta do baralho. Ao mesmo tempo que investe contra os tipos sociais dos homens frustrados e os expõe ao ridículo, é o último suspiro desesperado da masculinidade falida. Nosso tempo acabou, ele diz, e segue seu show.

Sua saída da Globo dá início a uma era mais acanhada de mero entretenimento. Um apresentador acovardado assume seu lugar, com um discurso puro e limpo, em tons pastéis, de manutenção — da audiência, das aparências, das conveniências. Faustão era um herdeiro menos espalhafatoso de Chacrinha, e agora, passa o bastão, forçosamente, a um tipo ainda mais domesticado. Caminha-se para mais uma pacificação, mas à moda neobrasileira. Se Faustão é o Tiozão clássico, Luciano Huck é o merda do Cunhado otário da sua irmã — que nem beber bebe. Um Cunhado que nem chega a ser Cunhadão, de tão ralo é o sangue que corre em suas veias. Não mais se varre o conflito para debaixo do tapete — assim como não se leva o cão pra passear, nem se vai ao mercado. Contrata-se alguém para fazer o serviço sujo. Quem quiser analisar o Brasil, que analise por conta própria. Terceiriza-se o conflito para um pobre coitado. E na TV, como em casa: tudo vai bem. E vai melhorar.

Melancolicamente, o domingo se encaminha ao fim. A alegria do almoço, da cerveja gelada, logo cede a uma resignação de que a vida não é só felicidade, e amanhã ainda por cima é segunda-feira. Para o homem de meia-idade, é dia de lidar com o Outro, do contínuo combate silencioso contra o mundo.

Enquanto a noite cai lentamente, uma figura observa o homem pela janela. Embotado por mais uma caixa de cerveja, ele não consegue divisar o rosto de seu perseguidor. Uma sombra fugidia, que insiste em se afastar. Não há ninguém para acender a luz. No escuro da sala-de-estar, o homem de meia-idade está só, e conversa sozinho.

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