Imagina você tomando tiro de fuzil

O povo contra quem o governa

Pedro Botton
Editora Canhoto
Published in
7 min readOct 13, 2015

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Somente o conhecimento da história pra nos fazer entender a realidade. No começo parece uma manifestação nacionalista, patriota, errada. Um bando de ucranianos pedindo para fazer parte da União Europeia, as faixas amarelas e azuis combinando com as estrelas douradas no céu. O hino nacional cantado a cada 3 horas. Só quem já viu de perto sabe como é. Mas não, tem algo diferente. Quando a primeira tropa de choque aparece e não é recebida com uma selfie tudo se encaixa. Não, aqui é pela liberdade. Aqui não é por uma avenida no final de semana. Aqui é uma Praça e chama Maidan. A Berkut não quer conversa, não pensa, não sente, mas bate, e muito. Bate muito. A cada cidadão no chão, uma unidade militar inteira batendo nele. E muito. Batendo muito. O crânio esmagado e cérebro pelo chão da rua não me deixa esquecer. Nunca mais.

Tudo valeu a pena se o resultado foi esse. Toda a internet e todo o chorume valeu a pena pra que esse filme existisse. Todos os celulares prontamente apontados pra tudo que acontece no mundo, todo a teletela, toda a patrulha, as câmeras de segurança flagrando o momento exato de um presidente fugindo do seu próprio exército que, dessa vez, estava do lado do povo. Todas as câmeras DSLR quebradas, todas as mal utilizadas, todas a lentes, tudo, todos os cartões de memórias infinitas, microfones direcionais, toda a edição de todos os vídeos feitos no mundo valeram a pena pois eles contribuíram pra que esse filme existisse. Todo o NetFlix e os caras entregando DVDS nas casas das pessoas pra depois retirarem, todas as senhas compartilhadas, toda a bobeira que existe no audiovisual da internet, o YouTube, o Vimeo, tudo. Nada foi em vão porque este filme existe.

Ele existe.

O roteiro é o mesmo, balas de borracha, gás lacrimogênio e violência de um bando de filhos da puta de colete, capacete, escudo e cassetete. Tudo de novo. Toda aquela merda, todas as lágrimas, tudo de novo. E de novo. O povo tenta ir andando pacificamente, este termo de novo, pacificamente, pacificamente? Como colocar paz no meio da guerra. Essa é a guerra. Passamos o século XX estudando as duas grandes guerras. Lendo sobre elas, Primo Levi, Michel Laub, Hannah Arendt, tudo isso, Camus, Benjamin, essas foram a guerras que moldaram o mundo, e sempre a dúvida, quando vem a próxima, por quê, de quem, pra quem? Aqui está a resposta, o termo mundial não se aplica mais pois com ele entendemos internacional. Civil também não conta, porque os filhos da puta americanos conseguiram nos convencer que guerra civil é do povo contra ele mesmo, a secessão e toda aquela porra, ainda que Guernica, porque a gente chama de ditadura, os cravos e salazar, guernica e franco, herzog e geisel, isso é ditadura? Isso é guerra. Essa é a guerra do século XXI, do terceiro milênio, anos 10, chamem do que quiserem, a nossa guerra é essa: do povo contra quem o governa. Há quando tempo já é assim e ninguém percebe? E Ruanda? A Iugoslávia? O Fred 04 já dizia. E isso com imprensa livre. Foi ano passado. O Fantástico devia estar dando matéria do pai que manda recado pra filha na porra do guardanapo. O JN falando merda. E os ucranianos morrendo com bala de fuzil atirada pela sua própria tropa de choque. Ela, sempre ela.

E ela de novo. E mesmo depois do povo ganhando força na praça, fazendo esses seres humanos, sim, humanos, não podemos nunca esquecer que são seres humanos por baixo daquela roupa blindada, por trás da escopeta, por trás daquele plástico filho da puta que eles usam na frente do rosto porque nem o rosto deles está disponível pra gente, até do cuspe na cara que merecem eles estão protegidos, aqueles seres humanos recuando somente por reconhecer a derrota, aqueles ucranianos ouvindo pra não matarem suas irmãs, aqueles que são iguais a nós mas que vestem outra roupa e têm outra alma, ou melhor, não têm alma. Não podem ter. De fuzil?

Eles recuam mas voltam. As senhoras com panelas na cabeça. Um infeliz com um reles escorredor de macarrão fazendo as vezes de capacete. Um escorredor de macarrão cromado daqueles que se usam como lustres de cozinha, ali, como um capacete de guerra. Quando a gente ouve que casca de melancia já foi usada como capacete em alguma guerra antiga, sem tecnologia, a gente dá risada. Ri agora vendo seu amigo morrendo com uma bala de fuzil na sua frente por ter ido levar uma maca pra um ferido. Mesmo de capacete, levando o tiro nas costas e morrendo aos poucos, 21 gramas pro espaço, na frente da câmera, é verdade, tem vídeo, tá lá, é aquilo mesmo, não tem reconstituição dramática, não tem 3dzinho no Jornal da Globo do policialzinho, é ali, é isso mesmo. Ele morreu com uma bala de fuzil paga, em última instância, com seu próprio dinheiro. Sim, esse papo de novo, quando é pra falar que a Dilma toma cafezinho Nespresso com a sua grana já irrita né? Agora imagina quando é tropa de choque atirando nas costas do seu pai, filho, irmão, tio, amigo, namorado, você, nas suas costas, isso, nas suas costas, imagina aquela bala entrando nas suas costas e você tendo 100% de certeza que foi seu próprio país que a encomendou. Fuzil, bicho, fuzil.

Dessa vez é absurdo. Porque tem isso né, quando são os carinhas de carro sendo sequestrados parece papo. Tem isso também. Os ucranianos tinham uma brigada dos motoristas, os caras pondo ali seu próprio carro, sua própria SUV, finalmente o tanque de guerra da classe média sendo utilizado como tal. E, pela primeira vez na história, do lado do povo. Os caras tinham uma brigada de motoristas, a cavalaria deles, como eles mesmo dizem, e a polícia perseguiu, espancou, sequestrou, quebrou o carro, o vidro, as portas, a porra toda. Quando é black bloc assusta mas depois você vai no Facebook e chama de baderneiro, violência gratuita, a porra toda, mas e quando é a polícia e você não é negro nem nada? Você tá lá com seu pai, com a Lu Matarazzo, com a sua tia do interior, voltando do Higienópolis depois de ter conversado como é um absurdo ter que parar pro ciclista passar na Consolação porque vai que o carro de trás tá distraído e entra na sua traseira? Seu carro novinho? Com a lanterna arrebentada por causa de um ciclista otário? Agora imagina essa mesma traseira servindo de escudo pra uma criança não tomar borracha, ou melhor, ferro mesmo né, os caras tavam usando cassetete de ferro e até se assustaram com o estrago que eles fizeram, imagina seu carrinho lindo, com friso, aerofólio, roda de liga leve e a porra toda servindo de escudo ao invés de arma? Imaginou? Agora imagina você tomando tiro de fuzil de dentro dele.

É pela liberdade, somente isso. Poder ficar numa praça pedindo algo pelo tempo que bem entender. Ficar lá, só isso. Não tem dono a praça, não tem reintegração de posse, você não é vagabundo, é final de semana, você trabalha à noite, férias da facul, seu tempo é seu e você quer gastar ele numa praça pedindo algo pro presidente. Só isso. Mas não pode. Não pode. Eles vêm descendo uma colina e se ouve uma rajada de metralhadora. Todo mundo se assusta, ouvir em voz alta a palavra “guerra” não é fácil pra ninguém. Nem pros sem alma por trás do plastiquinho anti-cuspe. Mas enquanto você abraça seu filho, eles vão até o blindado e buscam um fuzil. Um cada um. Carregado, bandoleira, até sniper os filho da puta pegam. E daí já sabe. O seu escudo é de madeira. Parecido com aquela madeirite dos barracos. Que a bala sai da arma e vara uns cinco até pegar num colchão velho. Ou ir um pouco mais pra cima e pegar na coluna da sua mãe mesmo. Aí, meu querido, já era. Ferimento de bala é fatal. De fuzil então, nem se fala.

Óbvio que não tem final feliz. O filho da puta do presidente renuncia, mas e aí? Entra pra União Europeia, mas e aí? Dissolve a tropa de choque, mas e aí? O Putin manda tropa pra fronteira e morrem mais seis mil. Seis mil.

Faz frio na Ucrânia. Não tem catraca aberta. Não tem Globo pagando pau nem jogo às 10h da manhã pra ir cantar hino nacional na frente da Fiesp com a bandeira em LED iluminando sua selfie com a polícia. Faz frio em Kiev. Não existe mais um ano, é amanhã às 10h ou nada. Não vem com a sua pompa de político falar merda porque o microfone não é pra você. Não se aperta a mão do cara que mandou matar seu pai. O nome desse cara é Víktor Yanukóvytch. Ele tem o nome complicado pra ser mais difícil de lembrar, mas tem que lembrar, Ianucóviti, nunca se deve esquecer de um tirano. Esse cara é o que diz: abre fogo se precisar. Primeiro dá uma porrada no olho dele. Depois dá outra. Joga bomba recheada de parafuso nele. Gás lacrimogênio, spray de pimenta na cara dele. Depois bate mais. Chuta a cara dele e amassa o escorredor de macarrão junto com o crânio dele. E se precisar, atira. Pode ser bala de borracha, mas se não for de borracha também, foda-se. Atira de fuzil mesmo. Mas atira pra matar. Mata o padre, a mãe, o médico, o jornalista, mata todo mundo mas não deixa ficar na praça, não deixa ir até o parlamento. Não deixa ter liberdade.

A internet inteira valeu a pena pra que esse filme existisse. Mas a humanidade não valeu. Até porque, se em 2014, ano passado, logo ali na Europa, Ucrânia, Vagner Love e Shevchenko metendo gol, se toda história aconteceu, Hitler e os caralho, Lista de Schindler tudo de novo, se tudo isso aconteceu e ainda assim o menino de barba que todo mundo que o conhecia sabia que ele era foda morreu assim, do nada, então essa porra não valeu a pena. Assiste o filme e vê. Não é inverno em fogo. É o inferno mesmo. Já chegamos lá e ninguém percebeu. Os melhores ucranianos morreram naqueles noventa dias. Até quando?

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