Mesmo em outra situação

Porque ele sabia e eu também sei

Pedro Botton
Editora Canhoto
Published in
3 min readAug 30, 2018

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Eu leio o livro de um escritor que morreu no ano em que nasci. Morreu aos 50 no mesmo ano em que nasci. E eu sinto como se fosse a sequência dele aqui na terra. Sinto como se fosse a continuação de quem ele foi mesmo sabendo que eu não sou um grande mestre da arte do conto, como ele foi, mas também sem saber se um dia o serei. Ele também não sabia, eu penso.

Me sinto um idiota por estar lendo a tradução do seus poemas para a minha língua sendo que eu poderia lê-lo no original. Penso que traduções são para idiotas, mas — como vocês já perceberam na parte sobre um dia me tornar um mestre na arte do conto — eu sou um idiota. Tento me convencer que estou lendo a tradução de seus poemas porque este foi o livro que me veio à mão, mas ao mesmo tempo sei que esta é uma edição bilíngue, daquelas que apresentam os originais no final do livro e não em itálico ao lado dos poemas, como naquela revista meio prepotente que publica a tradução como se fosse o principal e o original em paralelo, como auxiliar. Sinto que eu sou como este escritor porque ele sabia, e eu também sei, que a escrita nos dá tão pouco em troca e que por isso mesmo ela tem que se justificar em si própria. Ele dizia que todo poema é um poema de amor. Eu também sei amar.

O tradutor do livro nos diz na introdução que o autor que morreu no ano em que nasci parece sempre estar rumo a alguma água, como um rio ou uma cachoeira — que no final das contas é também um rio, só que numa determinada situação. O rio da minha cidade é um rio podre.

Na verdade existem dois rios na minha cidade e eu gostaria de dizer que, enquanto um deles é podre, o outro é limpo e bonito. Seria o símbolo da dualidade da vida e que, mesmo tão diferentes, ambos são rios da mesma forma, isto é, do ponto de vista da linguagem são a mesma coisa. Mas eu não posso escrever isso porque os dois rios da minha cidade são igualmente podres, ainda que rios.

Quão horrível e belo seria se houvesse uma cachoeira em algum dos dois rios. Uma cachoeira podre de esgoto a céu aberto caindo de uma altura de 30 metros, uma queda d’água impressionante e suja, impressionantemente suja, que essa água espirraria para todos os lados e em todas pessoas que dela se aproximassem. Faria uma espuma branca encardida e isso seria belo pois mesmo um rio podre pode ser cachoeira. Mesmo com o cheiro repugnante, essa quantidade gigante de esgoto despencaria lá do alto bem em cima de uma camada espessa de mais esgoto e essa cachoeira causaria um som idêntico a de qualquer outra cachoeira, receberia o nome de cachoeira como todas as outras e talvez, em um retrato em branco e preto à noite e granulado, essa cachoeira seria como qualquer outra que o escritor que morreu no ano em que nasci procurava em seus poemas.

O tradutor dos poemas escreve também, na introdução do livro, que o escritor que morreu no dia em que eu nasci passou a escrever sobre a água quando percebeu que iria morrer. Segundo o tradutor, ele bebia e fumava muito, mas, por volta dos 40 anos, passou por uma mudança radical na vida: parou de beber, conheceu a mulher com que mais tarde se casaria e publicou 4 livros de poesias. Mas, ao que parece, não parou de fumar. Eu também fumo e não me surpreenderia se ele tiver morrido no exato dia do ano em que eu nasci. Ou melhor: que eu tenha nascido no mesmo dia em que ele morreu.

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