Na lanchonete

O limite da mesa

Otavio Nagano
Editora Canhoto

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Ela diz alguma coisa. Sei disso. Porque seus lábios se mexem. Sei disso, mesmo que fora de foco, escapando pelas bordas dos olhos. Movimenta as mãos, está sentada na minha frente, conversa comigo, eu sei. Mas não sei. Pode ser algo importante, isso que ela está querendo me contar. Pode ser uma pergunta e, se for, não saberei responder. Não tem importância. Pelo menos agora, nada importa mais do que o sachê de açúcar que está prestes a cair da mesa à frente.

A situação se deu da seguinte forma:

O homem de preto, gravata cinza, entrou num passo ligeiro como quem está com o horário de almoço contado ou que estacionou em vaga proibida. Mas não devia ser nem uma coisa nem outra. Acho que não. O caso é que ele foi driblando as mesas com muita certeza de onde ia. E foi, até chegar perto da janela, logo à minha frente (nas costas dela), onde outro cara, vestido de uma forma incomodamente parecida comigo, esperava com uma bebida em sua xícara grande e brincava com o pé manco da mesa que a deixava desnivelada de um lado. Antes de se sentar, o homem recém-chegado, parou uma garçonete que passava e pediu um café, curto. A intimidade com a garçonete foi tanta que era como se fizesse isso todos os dias, cinco vezes por semana, mais de dez anos de casa, sem tirar férias. Duvido, mas invejei. Finalmente sentou. Trocaram algumas palavras. Pareciam animados. Podiam estar conversando sobre o trabalho, reclamando da inflação, podia ser futebol, televisão, cinema, adultério, problemas no casamento, a dificuldade em ser solteiro, blues (ou melhor, jazz — nunca ouvi uma discussão sobre blues), a última noitada de pôquer, sobre o assassinato da freira espanhola no vagão de metrô, hormônio nos frangos, avião que some, avião que cai, avião que não chega, a garçonete bonita e quem a convidaria para sair. Então ela voltou, a garçonete, trazendo o café num pires com uma colher e uma cestinha de palha que continha 8 sachês de açúcar, 10 de aspartame (sinal dos tempos), e um adoçante líquido, isso se fosse igual ao que trouxeram para minha mesa. Ninguém convidou a garçonete para sair. E continuaram distraídos com a conversa.

O homem pegou um sachê de açúcar.

Abanou para que o açúcar descesse para um lado do pacote, deixando o outro livre para abrir. Com um movimento elegante e ao mesmo tempo automático rasgou o papel da embalagem, sem olhá-lo, pois prestava atenção à fala do outro rapaz. O rasgo não atravessou o pacote todo, de modo que se formou aquele penduricalho do picote da embalagem. Devia achar que assim a bagunça era menor, já que não se dividia o sachê em duas partes. Fazia sentido. Despejou todo o açúcar na xícara. Como um verdadeiro ritual, dobrou diversas vezes o sachê já vazio, até que virasse um pequeno quadradinho que postou na borda do pires. Pegou a colher e mexeu o café com movimentos circulares, no sentido anti-horário. Pelo menos eu gosto de pensar que foi no anti-horário. Desceu a colher novamente no pires, e trouxe a xícara à boca. Provou. Olhou meio esquisito pro café, mas sem deixar o papo desandar. Largou a xícara e pegou outro açúcar da cestinha de palha.

O ritual se repetiria. Entrei em transe só de pensar que ia ver de novo a forma que ele põe o açúcar no café. Logo que pensei nisso me senti ridículo. Ou eu sou ridículo. Mas lá estava: o mesmo rigor, o mesmo procedimento, os mesmos movimentos. Esse cara deve ser dançarino, pensei. Mas não, essa roupa não tem nada a ver. E foi antes de conseguir pensar num outro palpite que, desta vez, ele não pôs todo o conteúdo do pacote. Com o mesmo cuidado em cada movimento, pousou o sachê com o restinho do açúcar na borda da mesa, do lado da cestinha de palha. Experimentou o café e, pelo jeito, aprovou.

Pouco a pouco a mesa balançava, pedindo por um calço. Pareciam não se incomodar. Talvez por isso não reparassem que o sachê pendia cada vez mais para o limite da mesa. Cada movimento de qualquer um deles refletia na mesa e ia empurrando mais e mais e mais… mais, mais. Um solavanco. E mais outro. Foi suficiente para que o sachê deslizasse ficando metade na mesa e metade suspenso. A conversa deles não se abalou com o fato. Minha respiração parou.

Imaginava diferentes formas do pequeno pacote de açúcar se atirar dali de cima. O picote solto balançava levemente debochando da altura. Ele poderia rodar, duas vezes, perdendo o pouco do conteúdo que ainda restava, chegando vazio ao chão. Inverossímil. Poderia cair objetivamente, sem rodeios, com a parte pesada para baixo e, por fim, terminaria deitado no piso gelado. Mais convincente. O homem poderia perceber e resgatar o sachê ou a garçonete voltar e chamar a atenção deles dizendo “Senhores! Reparem ao sachê prestes a cair da mesa.” Essa seria triunfante.

O ventilador, na parede à esquerda, gira no automático e está a ponto de ficar de frente à mesa manca. Uma brisa e ele já era.

— Você está me escutando? — pergunta ela, com seu habitual timbre de voz irritado.

Olho para ela e fico sem fala. Gaguejo algum barulho que não significa absolutamente nada, e sei disso. Não me acostumo a voltar para este mundo de perguntas e respostas.

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