Ninguém morre porque quer
Ainda que eu acabe me enforcando com ela
Judith me disse que tenho que pôr um fim nisso tudo. É no que penso enquanto subo e depois desço os pequenos montes da estrada que cruza os canaviais.
Quando chego à pequena casa, as crianças circulam o carro. O tocam como se fosse uma máquina de outro mundo mas, de mim, fazem pouco caso. Apenas olham pra bolsa negra no banco do carona.
Maria me espera escorada na porta, as mãos nas cadeiras. É mais nova que a Judith e já leva o quinto na barriga. Dou-lhe um abraço.
Falta pouco, Marieta. Hoje tem picada pra você também.
Ela faz o sinal da cruz. Entramos.
Os meninos ficam lá fora, começam a esconder-se por onde podem. Maria grita com eles. Todos entram de cabeça baixa. Dois minutos depois, saem choramingando.
Segurem o braço com mão direita por dez minutos que passa, eu digo. E podem ficar contentes que essa é a última.
Eles não dizem nada. Vão se sentar na varanda.
Começo a preparar a agulha maior. Testo a seringa e vejo que Maria me olha com uma cara séria.
Que medo é esse agora, mulher?
Não é medo, não, doutor, é outra coisa que tô matutando aqui.
Pois diga.
Que falam que o senhor se vai da cidade.
Quem tem falado isso?
É o que se ouve pelas fazendas. O Tião que me comentou.
Diz pro Tião falar pra esse gente fofoqueira que eu não vou a lugar nenhum não.
Tá bom, doutor. Eu digo isso sim.
Judith nota meu enfado, mas não diz nada.
Arrumo as coisas pra sair, cruzo a varanda, as crianças não levantam o olhar enquanto desço os degraus. Passo a mão na cabeça dos três. Como os homens já feitos desta terra, eles seguem calados.
Parada outra vez na porta, Maria se despede como se nunca mais fôssemos nos ver.
Quando voltei pra cá pra começar a trabalhar, depois de alguns anos fora entre o Sul e os estudos no Rio, ninguém queria ver essa gente.
Minha ideia não era ser nenhum salvador da pátria, que fique bem claro. Logo que nos casamos a Judith ficou grávida do primeiro, depois veio a menina e o terceiro que ela leva agora na barriga. Eu tive que me virar no consultório pra que o dinheiro suficiente entrasse. Além de tudo isso, ainda ajudava o Dante, cunhado da Judith, a levantar a Santa Casa.
O que me motivava, e que me motiva ainda hoje, era o simples fato de não aguentar ver gente morrendo à minha volta porque não podia chegar até o posto de saúde.
Ninguém morre porque quer.
Só que eu dizer isso na cara de quem não se preocupa nada com quem morresse ou deixasse de morrer naquela cidade começou a incomodar, mesmo que eu não estivesse apontando o dedo pra ninguém. Os textos eram sobre saúde, sobre prevenção básica e vacinação. O chapéu é que lhes serviu.
A caboclada tem sangue quente e logo a coisa perdeu o rumo. Como em todo debate desse tipo, em que temos todo o tempo necessário pra medir cada palavra, o tom foi subindo.
Também como em todo bom debate, a discussão inicial acabou tomando outros rumos e inclusive assumo a minha parte da culpa, não deveria ter deixado me levar tão fácil pro terreno sujo deles.
Logo estavam me acusando de usar a saúde do povo pra fazer campanha velada pro candidato opositor. Como se eu comesse poeira 30 km diariamente pra cima e pra baixo por propaganda no jornal. Canalhas. Nunca subiram pra aquelas bandas pra saber o que é a verdade. Acham que a cidade começa na fazenda e acaba na mesa do clube de pôquer.
Agora é isso, ouvir a Judith calado ou tensionar a corda mais um centímetro, ainda que eu acabe me enforcando com ela.
Que não passasse de hoje, ela me disse.
Chego de volta à cidade e dou dois giros pela praça. Os olhos da Maria me vem à cabeça. Estaciono na frente da redação e subo correndo as escadas.
Volto caminhando pra respirar o ar úmido da noite. Leio as placas com os nomes das ruas, uma após a outra a cada esquina. Tento guardar apenas o gosto do ar na minha boca.
Quando fecho a porta de casa escuto o relógio batendo a meia-noite. Judith acende a luz da cozinha. Eu sigo parado na sala escura.
Ela diz:
Eles podem te mandar pra muito longe?
Pra São Paulo, eu respondo.
Como que a gente vai fazer em São Paulo com três, João?
Vocês ficam, eu disse, encerrando a conversa.
Ela suspira e passa a mão na barriga. Volta pro quarto sem dizer mais nada.
Apago a luz da cozinha, deito no sofá e durmo pesado. Acordo com o som do telefone e a voz do outro lado nem sequer diz alô:
E se você abandonasse o posto, João? Fica com o consultório, atende os caboclos e as mulheres aí mesmo, logo o governo muda e tudo se resolve.
Você sabe que eu não faria isso, Dante. Você disse que ia me ajudar e vem com essa.
Eu vou cuidar dos quatro, João. Mas se você vai deixar eles com raiva depois dessa de agora é pra cima de mim que eles vão vir.
Com você eles não podem fazer o mesmo, todo mundo sabe disso.
E sabiam mesmo.
A carta oficial comunicando a transferência chegou uma semana depois. “Por tempo indeterminado”, lia-se no final.
Judith falou pouco comigo depois disso. Eu não tentei explicar porque achei que ela não ia entender. Nem eu entendo.
A resposta não veio em nenhuma das edições seguintes, pelo menos até o dia que vim embora.
Pelo menos isso.