Biker Couple, 1961, pelo Dennis Hopper

No que os fetos estão chorando

Aquilo que nascemos sendo

Pedro Botton
Editora Canhoto
Published in
4 min readApr 27, 2020

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É sobre esse som poderoso que nos invade sem que possamos evitar. Machuca, incomoda, arde, é o som que nasce, que todos que existem já passaram e que nos transporta para um eu que consideramos não sermos mais. Um miado eterno que, quando passa, continua ecoando nas nossas cabeças, que talvez nunca tenha parado de fato. Um jeito de não ouvir é seguir nos afastando até um ponto em que não se saiba mais se o choro parou de ser chorado ou se apenas ele não nos alcança mais. Se dermos um passo atrás voltamos a ouvi-lo. Mas existe um meio de nos afastar daquilo que somos? Daquilo que nascemos sendo?

Só a morte mesmo. As pessoas morrem chorando?

Quarenta minutos de choro ininterrupto pode parecer muito, mas é um pouco mais se for todo o tempo de vida do seu filho. É como aquela história de como fazer uma criança envelhecer.

As pessoas disseram que você já nasceu praticamente morto e eles estavam muito errados mas, na verdade, eles estavam meio certos, não estavam? Eles disseram que você estava tranquilo quando se foi, mas eles estavam errados. Meio errados, pelo menos. Você estava chorando, não estava? Mais quarenta minutos, eu jamais diria não.

As pessoas não darão valor pros seus quarenta minutos, mas eu sim. Eu sim.

Talvez a tempestade esteja forte demais, mas agora parece que ninguém fala a verdade. Nem eu e nem você estamos chorando agora e parece que a única coisa a esperar é ter o coração partido por isso tudo, mas também não era pra menos.

Eu desci pra passear pela fonte e você achou isso um absurdo, mas o que mais eu poderia fazer? Eu acendo um cigarro e fumo mal, mas ainda assim, o que mais eu poderia fazer? Eu quis ficar ao seu lado, mas eles não deixaram, ninguém deixou, não era pra eu estar lá, eu não sou a mãe de ninguém, eles disseram, e, pensando bem, eu jamais poderia ser.

Quando a mãe dele saiu do quarto eu pedi pra que o recém-nascido dissesse que nunca mais ia voltar, que aquela era a última vez, mas ele não disse, naturalmente. Eu não vou voltar nunca mais, mamãe, é o que eu queria que ele tivesse dito, mas nem ele, nem eu, dissemos isso. Nós apenas choramos e, vendo agora, acho que não era aquilo que parecia que estávamos dizendo.

O choro dele parecia dizer que ele estaria pra sempre ali; o meu, que eu nunca estive. Me diz, você ainda está comigo? Sua vontade é de me bater ou de me empurrar, eu nunca sei dizer a diferença, mas não aqui, me encontra ali na fonte, ou melhor, me encontra ali no pátio.

Eu tenho algo pra te dizer.

Ele era o meu filho. E ainda que eu não seja nada demais, ele era meu herdeiro. Eu tenho vontade de te perguntar o que vai acontecer agora, mas eu não sei exatamente o que eu gostaria de dizer com isso. Talvez esperar quarenta minutos pra ele morrer foi tempo demais. Eu me sinto cansado, sem tempo, nem esperança.

Mas como você pode dizer isso? Eu fiz tudo errado? Ou você disse que ele fez tudo errado? Já não sei mais se isso faz alguma diferença mas, ainda assim, eu preciso te dizer que ele é, ou foi, ou era, um ser humano e ele precisa, ou precisava, ou precisou, ser amado assim como todo mundo precisa. Quão tarde é agora? Você cala a sua boca pra falar do meu filho. Ou melhor, do seu filho. Ou ainda, do nosso filho? Com ele agora morto, eu diria que tanto faz, mas eu sempre conduzo as coisas do jeito errado, é verdade, mas ainda assim.

Sabe que eu sonhei contigo essa noite? Pois é, por isso que eu caí da cama algumas vezes. No sonho você dizia que eu te levasse pro paraíso da sua cama mas, quando a gente chegava lá, você no meu colo, vestida de noiva, a cama era essas camas de hospitais, brancas, com controle remoto para ajustar a altura das costas. Sim, igual à que você deu luz a ele. Dois cafés, por favor.

Eu sei que eu sou unloveable, você não precisa me dizer de novo, mas eu pensei que talvez ele não fosse. Ele não seria, você sabe disso. E daí quando alguém gostasse dele, ou melhor, quando você amasse ele, você estaria gostando de mim também, certo? Porque amar alguém é amar os pais dessa pessoa, certo? Se não fossem os pais de alguém esse alguém não existiria, então amar alguém é amar os pais dessa pessoa. O açúcar, por favor. É, sem a gente ele não teria morrido também, você tem razão.

Eu entendi, alto e claro, você não ama meus pais, mas você também não me ama, pelo menos não mais. Mas você nunca amou meus pais, eu entendi a mensagem. Eu também nunca amei os seus. Talvez a sua mãe, mas se eu pareço meio estranho falando disso é porque eu sou mesmo. Sabe que se você me visse como eu sou mesmo eu acho que você gostaria de mim e até dos meus pais. Se você tivesse conhecido eles.

Eu visto preto por fora porque é assim que eu me sinto por dentro. Eu nunca tive muito na minha vida, agora ainda menos, mas pega. É seu.

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