Enchente na Rua Benedito Hipólito, no Centro do Rio de Janeiro, em novembro de 1951 por autor desconhecido.

Valores inegociáveis de um discurso

Bicha enrustida não

Pedro Botton
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12 min readSep 14, 2020

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Recentemente esse vídeo de um carioca revoltado com o Rio de Janeiro apareceu aqui no Twitter e desde então venho pensando muito nele. Vai aqui o vídeo e, após o link, a transcrição da fala do cidadão.

E esses telejornais ficam falando assim “e a chuva castiga os cariocas… São Pedro…” e aí fica esse negocinho de olimpíada, Sérgio Cabral com aquela cara de Tartaruga Touché falando que o Rio é cidade maravilhosa, isso é um engodo. Isso aqui é uma cidade governada por milícia, traficante e vagabundo. Meu carro, com o IPVA em dia, tá enchendo d'água. Cadê aquele filha da puta do Eduardo Paes? Porra! Agora, vocês, da imprensa, ficam lá tirando fotinho dele, “ai, Eduardo Paes, choque de ordem, tirou da rua o camelô, multou o carrinho que tava em cima da calçada”, agora, cadê a Guarda Municipal? Aqui na esquina de São Francisco Xavier com a Haddock Lobo, três da manhã? Tá certo? Esse que é o contexto da nossa cidade. A gente paga imposto pra sustentar Daniel Dantas e Eike Batista.

Foda-se se o Eike Batista tá comendo uma piranha. que tá pagando, cobrando, mil reais a hora. Foda-se se a Nicole Bahls tá dando pro filho do Eike Batista. Foda-se se a Britney tá grávida de um cavalo. Eu quero saber quem é que vai pagar o prejuízo do meu carro. Tá?

Então assim: faça um documentário, amigo, faça um documentário à la Michael Moore, não faça um documentário à la João Moreira Salles falando “Rio, eu gosto de você”, essa coisa fascista de dizer e enganar a gente que a a gente mora numa numa cidade maravilhosa. Essa aí é uma falácia criada por aquela bicha enrustida do Tom Jobim que cantava, “próceres” da ditadura cantando assim “Ipanema é tão legal, o meu pai é general”.

Então é isso aí, foda-se a bossa nova, foda-se Sérgio Cabral Tartaruga Touché e foda-se Eduardo Paes.

O vídeo foi muito festejado no Twitter, muitas curtidas e muitos comentários apontando-o como 100% adequado aos dias de hoje apesar dos dez anos de sua publicação, dizendo que o tal motorista falou tudo e consagrando-o como perfeito. Eu mesmo quando comecei a assistir ao vídeo o considerei muito divertido, é bonito de ver a indignação do entrevistado ir crescendo paulatinamente, a criatividade que ele tem pra elaborar objetos de ódio inusitados e a franqueza com que ele dá o depoimento ao repórter da imprensa, também alvo das críticas, preso no seu carro com o IPVA pago em meio a uma enchente nas ruas da Tijuca, bairro onde fica a esquina que, segundo a opinião do motorista, deveria ter um Guarda Municipal.

No entanto, mais pro final, o desabafo apresenta um ponto preocupante.

Depois de muito pensar nesse discurso revoltado eu percebi que ele combina duas formas de agressão muito diferentes mas que, numa análise mais apressada, podem parecer iguais, grupos de xingamento que eu vou classificar aqui como “aceitáveis” e “inaceitáveis”.

Os xingamentos aceitáveis seriam aqueles que, mesmo quando você discorda que eles sejam dirigidos para essa ou àquela pessoa, é preciso se reconhecer que são xingamentos válidos, isto é, que são coisas ruins de se dizer das pessoas. Na ordem da descascada do motorista revoltado, ele começa com alvos fáceis, figuras que poucas pessoas se disporiam a defendê-las frontalmente, em específico Sérgio Cabral e Eduardo Paes. Políticos.

O primeiro tratamento que ele faz é a Cabral —que foi já de um tudo: deputado, senador e, mais conhecidamente, governador do estado do Rio de Janeiro de abril de 2007 à abril de 2014, quando renunciou — o qual chama de “Tartaruga Touché”, personagem de desenho animado que nem configura um xingamento de fato, é mais uma piadinha mesmo. No entanto, logo evolui pra “isso aqui é uma cidade governada por milícia, traficante e vagabundo”, relacionando esses termos diretamente ao já citado Sérgio Cabral e também ao prefeito do Rio na ocasião, Eduardo Paes.

Temos então três “xingamentos aceitáveis”: ninguém quer chamado de miliciano, traficante ou vagabundo, inclusive os que de fato são. Talvez “traficante” desses três seja o menos repulsivo em absoluto pelo fato que algumas pessoas até se vangloriam por sê-lo em letras de música, na ficção ou como um argumento de autoridade fora da lei. Ainda assim, acredito que nenhum político goste de ser chamado dessas três coisas e é bom que seja assim, o Brasil vai muito mal mas ainda não chegamos no ponto em que um governante bata no peito para se afirmar miliciano. Ou vagabundo, ainda que nesse caso talvez até houvesse uma saída digna, um político que se diz vagabundo por curtir o ócio a que tem direito em vez de ficar enchendo o saco nas redes sociais. Mas divago, vamos voltar ao vídeo.

Na sequência ele usa o xingamento consagrado “filho da puta” para se referir ao prefeito Paes. Essa expressão que também existe em espanhol, hijo de puta, em inglês, son of a bitch, e acredito que em diversas outras línguas também, atestando assim a veracidade da consagração do xingamento. Ainda que de raiz machista e preconceituosa, como se toda prole proveniente de uma mulher que, ao conceber o indivíduo em questão, estivesse se prostituindo, resultasse em uma pessoa sem caráter, traiçoeira, ruim, ainda assim entendo que a expressão já superou o seu significado literal, adquirindo um valor próprio, autônomo de sua gênese e, portanto, qualifico como um xingamento aceitável, ainda que muito do malcriado, claramente uma quebra de decoro mas, porra, quem se importa com isso quando tem água subindo no seu carrinho com o IPVA pago? Tem mais é que falar palavrão a rodo nessa merda.

O próximo impropério proferido pelo autor do discurso analisado é o absoluto “foda-se”. Por não ser um xingamento propriamente dito — isto é, não tem valor de adjetivo como teria um “fodido” ou “foda”, termos de mesma raiz — não cabe na classificação aceitável/inaceitável, além do quê é uma expressão intocável, a partícula apassivadora “se” imacula o palavrão, é uma ordem ao mesmo tempo que é uma indiferença, tem mais é que usar o foda-se mesmo.

No mesmo raciocínio o motorista engata um “piranha” pra se referir a uma suposta parceira sexual do ex-empresário golpista Eike Batista. Piranha é um termo complicado, ainda mais quando dito por um homem, tem um teor chauvinista como se o fato de uma mulher se relacionar com o Eike já fosse motivo o suficiente pra que ele recebesse xingamento que designa, sob uma ótica exclusivamente pragmática, uma pessoa que utiliza da sedução como forma de obter ganhos pessoais e que desrespeita convenções éticas de comportamento, simbolizando talvez em um termo escroto para o que poderíamos entender como “mulheres abusadoras sexuais”. Partindo do pressuposto que podem de fato existir mulheres com essa conduta — ainda que a carga machista da sociedade tenda a ver mulheres que simplesmente se comportam sexualmente como querem em vez de submeterem a uma hipócrita castidade preconizada por homens escrotos como sendo o ideal para “mulheres direitas” o que, por sua vez, é somente um exercício do poder mofado e atrasadamente patriarcal — coloco o “piranha” como um xingamento aceitável em si (mas absolutamente inaceitável quando usado de forma machista, obviamente) pela simples constatação que acredito que ninguém gostaria de ser conhecida por aí como “aquela piranha” ou “aquele piranha”.

Daí vêm dois “foda-se” irretocáveis: se a participante paranaense de programas de TV Nicole Bahls está se relacionando com qualquer um dos três filhos do já avacalhado Eike Batista (o que demonstra uma fixação em odiar essa figura de fato odiável e muito em voga em 2010, ano em que foi registrada a revolta do cidadão carioca emputecido) e que de fato, foda-se. E o segundo, em que ele diz que “tanto faz”, ou seja, que “foda-se se a Britney tá grávida de um cavalo”, afirmação que com certeza é somente uma força de expressão, pois se de fato a cantora, compositora, dançarina e atriz bastante famosa estivesse esperando um filhote de pai cavalo isso seria uma baita notícia, tanto pelo ineditisimo histórico quanto pela gestação dificílima que viria por aí. Por ser apenas uma hipérbole de como o jornalismo costuma dar uma importância gigante a fatos irrelevantes socialmente — relacionamentos amorosos entre famosos e suas respectivas crias—concordo com o depoente que foda-se tudo isso, mas discordo que a preocupação central ali na situação é quem vai pagar o prejuízo do carrinho dele. Uma enchente pode acarretar problemas muito mais sérios do que um carpete automotivo com cheiro de esgoto pois, ainda que esse problema seja muito ruim, é um problema individual, que recai sobre a propriedade privada de apenas um indivíduo e que, portanto, como rege a cartilha do capitalismo, é problema e orgulho somente do próprio proprietário, no caso o nosso motorista carioca revoltado.

Acredito que qualquer morador de rua que o visse passando por aquele momento registrado no vídeo teria todo o direito de olhar e dizer, com toda razão, “foda-se”.

Chegamos então no que suscitou essa reflexão acerca do que é aceitável ou não de ser dito. Aqui o motorista sugere que os repórteres que o estão entrevistando — e, ao mesmo tempo, a toda imprensa, ao jornalismo cinematográfico como um todo — que sejam feitos documentários demonstrando o colapso social que é o Rio de Janeiro. Mas que, segundo ele, façam documentários como os do diretor estadounidense Michael Francis Moore — o que entendo significar filmes de denúncia, filmes corajosos que fogem do senso comum e buscam dizer o que ninguém diz por meio de pesquisa, provocação e criatividade — e não documentários como os do João Moreira Salles, diretor, produtor, roteirista de cinema e herdeiro da fortuna milionária do Unibanco por meio de seu pai, Walther Moreira Salles, falecido em 2001.

Acontece que essa parte do discurso é pessoalmente, digamos, ofensiva a mim pelo fato de eu ser um admirador declarado da obra e do pensamento do João Moreira Salles, o Joãozinho. Fundador da revista Piauí e, naturalmente, integrante da diretoria do Instituto Moreira Salles, o João é alguém cujas reflexões, ensaios e percepções da sociedade de fato me interessam e que, pelo que eu entendo, é capaz de ideias novas e totalmente autênticas sobre o mundo, e principalmente sobre o Brasil, país em que vivo, talvez até à la Michael Moore.

No entanto, eu aceito a crítica que ele faz ao herdeiro milionário porque eu concordo com a natureza da crítica, isto é, o aspecto que ele busca atribuir a quem quer que seja, ainda que discorde do alvo a que ele se dirige. É como se aqui fosse utilizado novamente um “xingamento aceitável”, ainda que não seja um xingamento propriamente dito, pois atribuir um tom abobado e alienado — que aparece na fala como aquela “coisa fascista de dizer e enganar a gente que a a gente mora numa numa cidade maravilhosa” — a qualquer um que seja é, de fato, algo ruim. E também porque, no fim das contas, o Joãozinho é um burguês deslumbrado e quanto mais a sociedade brasileira evitar celebrar gente rica como seres superiores, tanto melhor.

Ao mesmo tempo, é importante fazer a ressalva que a crítica é injusta em si própria, pois o Joãozinho é diretor e roterista, em parceira com a também diretora e roteirista, só que paulista, Kátia Lund, do ótimo documentário Notícias de uma guerra particular, filme que retrata e denuncia a absurda e ineficaz chamada “guerra às drogas” promovida pela polícia carioca “corrupta e violenta”, nas palavras do ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais Rodrigo Pimentel, contra os moradores e traficantes de entorpecentes da favela Santa Marta localizada no Morro Dona Marta, no bairro de Botafogo, na Zona Sul do Rio. Assim, acho incoerente o motorista entrevistado usar justamente o João como exemplo de alguém que só faz documentários dizendo “Rio, eu gosto de você”, até porque em toda a sua filmografia—Nelson Freire, Entreatos, Santiago, No intenso agora e, claro, o já citado Notícias de uma guerra particular — não constar nenhuma obra no tom ufanista a que o cidadão revoltado se refere.

Acontece que no embalo desse raciocínio, o motorista entrevistado comete o deslize que eu chamo de valor inegociável de um discurso. Na intenção de explicar o que é a enganação que o Rio é a cidade maravilhosa, ele atribui a sua invenção ao símbolo da bossa nova Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, conhecido como Tom Jobim, e utiliza aqui o tal xingamento inaceitável: bicha enrustida.

Ele o faz como se o defeito fosse justamente a ideia que o Tom fosse homossexual, o que não é absolutamente um defeito, um problema ou algo ruim. Pode se argumentar que o problema estaria no fato dele ser enrustido mas, sobre isso, dois pontos: ser enrustido ou assumido não é defeito ou qualidade, mas, até onde eu consigo enxergar, uma decisão de cunho individual; e, segundo ponto, acredito que fica claro que a expressão “bicha enrustida” significa principalmente que o problema é a adição dos dois adjetivos, ou seja, “bicha e ainda por cima enrustida”.

A seguir ele retorna a um tratamento negativo absolutamente aceitável que é a acusação de que o Tom Jobim tenha sido um “próceres” da ditadura (transcrito entre aspas pelo fato que eu acho, mas posso estar errado, que o correto gramaticalmente seria prócer, por se referir a um sujeito só, sendo corretamente conjugado portanto no singular em vez do plural próceres mas que, pelo que eu pude compreender, se tornou coloquialmente uma expressão única, “próceres da ditadura” mas, que também, foda-se).

Ter colaborado com a ditadura configura condenação moral, xingamento, revolta; ser homossexual, enrustido ou assumido, não.

Figurativamente cantar que o “Ipanema é tão legal” como forma de alienação à realidade de uma cidade ou um país é de fato algo criticável mas se relacionar com pessoas do mesmo sexo não é. Aliás, diga-se de passagem que a informação que o cidadão revoltado utiliza na sua breve emulação de bossa nova de que o pai do Tom Jobim seria um “general” é mentira, pois o gaúcho Jorge de Oliveira Jobim foi diplomata, jornalista, poeta, crítico literário e inspetor de ensino mas nunca foi nem militar, quanto mais general.

Alguns podem levantar um suposto anacronismo na minha crítica sugerindo que em 2010 o mundo era outro e que era “compreensível”, “aceitável” ou até “normal” falar um absurdo desses — ainda mais tratando-se de uma entrevista abertamente gravada, ou seja, uma situação relativamente pública, social — mas já não era, absolutamente.

Em 2010 já ocorria a Parada do Orgulho LGBT em São Paulo há 13 anos, que na época acredito ainda ser chamada apenas de Parada Gay, e o hoje ex-deputado auto exilado Jean Wyllys, importante ativista do movimentos dos direitos LGBT, já tinha vencido em o BBB há 5 anos, ou seja, a pauta anti-homofobia já existia e existia forte. Se o carioca motorista utilizou a expressão “bicha” na sua fala, utilizou porque quis, porque escolheu usar e porque, pelo menos naquele momento, considerou-a um xingamento proporcional aos outros utilizados: miliciano, traficante, vagabundo, filha da puta, piranha, fascista, prócer da ditadura. Mas não é. Não é.

E sempre que alguém o fizer, é da responsabilidade de todos apontar o deslize, fugir do indiferente “foda-se” e dizer bem alto que por aí não e, a partir da enunciação do inaceitável, aplicar um questionamento crítico relativo a tudo que está sendo dito, isto é, passar a ver o discurso em si sob outra perspectiva. Pois, se eu estava concordando com tudo e, em certo ponto, descubro que o autor da fala é homofóbico, é razoável refletir novamente se alguém que considera orientação sexual um defeito tem, de fato, capacidade para raciocinar de maneira lógica sobre qualquer assunto que seja.

Independente a quem a suposta ofensa se dirija, homossexualidade não é xingamento e não importa a quem se esteja dirigindo a indignação, pode ser quem for. Termos preconceituosos não são aceitáveis em qualquer situação até porque, como vemos, o cardápio de impropérios e insultos é vasto e não existe razão alguma para que se utilize orientação sexual como defeito simplesmente porque não é.

Homofobia é inegociável.

Acredito que tenha ficado claro mas acho importante reforçar que esse não é um texto que busca atingir pessoalmente nem o tal do motorista carioca revoltado entrevistado (cujo nome é Guilherme Meirelles e que fez questão de agradecer a postagem do vídeo em seu Facebook, adicionar como amigo o autor da postagem que incorporei aqui ao texto no início do texto e que atualmente atua como um comentarista de opinião em seu canal no YouTube) e muito menos atingir o tuiteiro Matheus Bizzo que compartilhou o vídeo que foi de fato relevante pra todos que interagiram com ele, inclusive pra mim. A fala analisada (que depois de uma breve pesquisa descobri que é na verdade um trecho do baita mini-documentário Enchente de verdade produzido pela organização comunitária Rizoma e disponível no canal deles no YouTube, curiosamente aqui com o rosto do motorista embaçado para que não ele não possa ser identificado) foi somente o objeto de análise desse ensaio que, ainda que não seja um documentário filmado, escrevi com a intenção de trazer alguma ideia nova ou provocação à la Michael Moore, João Moreira Salles ou Britney Spears.

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