
Torrada Petrópolis e suco de laranja
Dizer com palavras o tamanho do vazio
Morais, o burocrata, acorda às seis da manhã, toma o ônibus e para no suco-podre-nos-fundos-do-trabalho
torrada Petrópolis e suco de laranja
média e depois um cigarro ainda a tempo de passar o crachá às oito horas na catraca que lhe rouba silenciosamente os minutos
Já terminou de validar o relatório?
afunda-se nas folhas de papel riscadas a lápis buscando as minúcias de sua vida nos erros dos outros
Os documentos apresentados não estão em conformidade com as exigências da Receita Federal
desce às doze horas para ir comer no quilo-mais-barato-perto-da-firma
linguiça arroz maluco batatinha e churrasco na promoção
mais um cigarro e um café tão ruim que tem quase o gosto do cigarro e às treze horas passa o crachá
Preciso fechar o novo modelo do formulário MF-16 para apresentar ao gerente setorial na quinta-feira
aguardando o relógio que se aproxima vagarosamente das dezessete horas
afrouxa a gravata enquanto chama o elevador
senta-se e pede uma cerveja de garrafa num boteco-carioca-de-mesas-na-calçada-e-bicheiro-na-esquina
Vai também uma gengibrinha?
mais um cigarro e liga para Dália que não se chama Dália mas é a que está mais próxima
Avenida Nossa Senhora de Copacabana perto da Prado Júnior
toca a campainha recebe um beijo fingido e uma toalha
Pode ser cento e cinquenta adiantado, amor?
afunda-se em lençóis encardidos enquanto Dália chupa seu pau
se estiver limpinho é sem capa
sente as mãos dela botando a camisinha e levando o pau duro até a buceta toma fôlego e começa a meter com o corpo desacostumado a se mover para qualquer coisa e afunda na pele da moça encardida como os lençóis para respirar com força aquele cheiro de mulher que era como uma lembrança
solta um grito
um grito animal, lancinante, de dentro dos pulmões
o grito continua
um grito que é como uma lembrança de um tempo acontecido muitos anos atrás quando os homens ainda conheciam o carinho da grama nos pés e do abraço de uma mulher e ainda não havia escritório nem formulário MF-16 nem torradas na chapa nem cigarros nem café e Morais ainda estava acostumado a ser chamado pelo primeiro nome e sentir nos braços o calor do sol e do próprio corpo que imaginava o sorriso de uma mulher com olhos curiosos
um grito que faz Dália fingir suspiros
e um grito de dor ao ver na cama do quarto o rosto da mulher que não se chama Dália indeciso entre fechar os olhos e olhar para o teto e no espelho atrás da cama sua própria figura gorda e com a barba por fazer por cima da garota que mal disfarçava uma cara de nojo
Faltam só cinco minutos, não quer tomar banho?
mais vinte reais e um beijo fingido e uma caminhada sem razão por quase toda a avenida Nossa Senhora de Copacabana até desviar para um boteco numa esquina sem nome de tão escura quase perto do Cantagalo
Uma dose de uísque
pelo cheiro e gosto aguado percebe que é falsificado mas isto já não importa quando as luzes dos postes se derretem no líquido cor de caramelo e a chama que acende a ponta de um cigarro procura dar a tranquilidade de um foco de luz a ser seguido
E se existisse outra vida, eu teria coragem?
e por um momento a respiração controla o fogo dando uma sensação de poder mas em segundos as cinzas caem inconvenientes sobre a roupa e um gole a mais já não acalma
A continha?
olha para o lado e vê que a ruazinha transversal acaba numa pedra que interrompe o caminho como se fosse um sumidouro de asfalto que escorre para baixo do morro e não deixa possível nenhuma saída
Para mim é difícil escrever a história de Morais, a ponto de eu ter que parar no meio para retomar. Não porque seja uma história cheia de decisões complicadas e emoções dilacerantes, mas pelo contrário, por ser uma história muito comum, sem nada a acrescentar, circular e labiríntica como ruazinhas de uma metrópole com grandes prédios colados uns aos outros sem deixar passar o ar entre eles, presas pelo concreto numa eterna falta de luz. Não é uma história das ondas de Copacabana, mas uma história de marquises de prédios e avenidas lotadas de ônibus barulhentos e inquietação. Para os que vivem enfurnados nos cubículos dos apartamentos e dos escritórios de onde nunca se sabe se chove ou faz sol, o único contato com a natureza é a mulher. O burocrata e a prostituta não sabem, mas um é precondição para que o outro sobreviva. No fundo, são colegas de profissão. Não simplesmente de uma profissão, mas de uma condição de alma. A condição daqueles que, tendo consumido por dentro todo o brilho da alma, apenas sobrevivem. O burocrata não é somente aquele que se sujeita a qualquer coisa para garantir um trocado no final do dia, como muitas vezes o são as prostitutas, é aquele que se submete a qualquer coisa e aceita a sua condição porque não é capaz de perceber a gravidade do que está fazendo. Pensa que está apenas fazendo o que é preciso, e é preciso se ajustar à realidade, e primeiro a comida e depois o sonho. Pensa que vender seu tempo e sua alma como burocrata é mais nobre e menos grave do que alugar o seu corpo como prostituta. Sem perceber, se esvazia por dentro de toda e qualquer possibilidade de ser chama, de conseguir desejar alguma coisa. Morais não sabe para que servem os relatórios MF-16, que são a única finalidade de seu serviço no Departamento de Assuntos Gerais. Teoricamente sabe, ou deveria saber, mas esta informação só pode ser fornecida por um dos funcionários superiores, os quais ele está impedido de saber quem é. E Morais suspeita que talvez seja melhor assim, que talvez fosse melhor ele não saber para que se destinam os formulários. Porque o objetivo concreto, ainda que oculto, pode ser o de não terminar o preenchimento ou a aprovação dos formulários. E se aqueles formulários fossem importantes para outras pessoas, que precisassem de sua aprovação, Morais se sentiria um filho de uma puta por não conseguir ou não ser autorizado a ajudar quem precisa. Mas por outro lado, só se precisa de formulários MF-16 porque é preciso que alguém os aprove. Se não existissem, não fariam a menor falta. E aí nesse momento, no meio de seus pensamentos, que já não sei mais dizer se são da personagem, do narrador, de um narra-autor, foi que Morais, já se sentindo meio fora do corpo com a bebida, olhou para o final da rua, lá onde o asfalto parece se misturar com um paredão de pedra, e teve uma intuição, que não sei dizer se é pensamento, visão, sonho, alucinação, mira-ação. No final da rua poderia existir uma escada que levasse ao alto da pedra, para as pessoas verem o céu e o mar ali do alto, ou então ele, Morais mesmo, poderia aprender alpinismo e escalar a pedra, sentir no rosto o vento fresco e o calor do sol. Mas ele, gordo assim, sem tempo, todo estragado pela bebida e com fôlego de fumante? Tenta se levantar, cai, pede mais uma bebida e uma água, fuma dois cigarros, levanta, toma um táxi.
Morais é acordado pelo despertador no dia seguinte pontualmente às seis da manhã ainda com metade da roupa do outro dia e toma um ônibus para o centro e desce no ponto logo em frente do suco-podre-nos-fundos-do-trabalho
torrada Petrópolis e suco de laranja
e pensa em qual seria o verdadeiro nome de Dália e percebe que já não está mais acostumado com o próprio nome
Cinco reais, Ricardo
antes de entrar olha para os vidros espelhados do prédio da empresa procura o terraço da cobertura e sente a vertigem que restou da noite anterior
Não, chefe, eu não terminei o formulário MF-16, não vou terminar
evita olhar para o gerente setorial e bate nervosamente os dedos enquanto observa pela janela os aviões que sobem e descem do aeroporto Santos Dumont desviando dos prédios do centro da cidade
Sim, chefe, estou pedindo demissão
depois de perceber o que está falando procura lá dentro de si mesmo um motivo que o gerente possa entender minimamente e termina por se calar enquanto observa o movimento dos aviões pela janela
Se desse, pretendia sair ainda hoje
quase hesita por um segundo pensando que por pior que seja a vida de preenchedor-de-formulários é sempre mais estável e que não sabe mais onde procurar emprego na profissão que exercia antes de virar preenchedor-de-formulários e que não terá mais dinheiro para as cervejas e os uísques e as noites com a mulher que não se chama Dália
Já refleti muito sobre esta decisão, não vou voltar atrás
o gerente oferece um mês para pensar mas Ricardo não se dá o tempo para desistir e deposita na mesa o crachá escrito Morais
finalmente estou livre
depois de alguns dias Ricardo vagueia pelas ruas de Copacabana completamente bêbado e telefona para a mulher que não se chama Dália e só quando sobe ao apartamento vê que é outra garota usando emprestado o nome de Dália
conhecia Dália morena, não branca
na falta de uma Ricardo se deita com a outra e procura com as mãos na pele macia da mulher um pouco do carinho que ele já não se lembra mais de como era sentir
Aqui é profissional, rapaz, sem amorzinho, só a trepada
e sem querer se lembra de que não sabe mais o rumo de nada e não terá mais como pagar mas também não conseguiria mais voltar a olhar para os vidros espelhados da empresa e o formulário MF-16 e os aviões do centro da cidade
Que pena que não fodeu, foi cento e cinquenta, volta aqui outra semana que vamos fazer gostosinho e você vai conseguir gozar
não consegue mais olhar no espelho o seu rosto já meio estragado pela bebida e sentindo um vento frio por dentro do corpo sonha com uma garota que sorria e olhe nos seus olhos
Libera o quarto que tem outro cliente chegando
Ricardo vai para a orla da praia e toma mais uma cerveja enquanto sente nos braços o calor do sol de que já quase não conseguia se lembrar e se lembra do sonho de criança de um dia conseguir escrever um livro que conseguisse dizer com palavras qual era o tamanho do vazio do espaço sideral
Olhando fixo para as ilhas, Morais pensa no grande mar invadindo as ruas de Copacabana, as ondas crescendo, crescendo cada vez maiores, engolindo as barracas de praia e depois os prédios maciços da orla como se fossem castelinhos de areia, todas as bancas de jornal, agências de correios, cartórios, repartições inundados pela água, as ondas que vão crescendo, crescendo até derreter pela frente todos os papéis que encontram, sem diferenciar propagandas de jornais de documentos, como uma tsunami que não acabasse nunca, até que as pessoas tivessem de reaprender a viver sem tudo o que o mar teima em destruir, mas elas simplesmente não conseguiriam mais, não aguentariam ficar sem poder sair de casa pontualmente às sete para o trabalho mesmo que o mar destruísse o caminho, ou ficar sem documentos quando as ondas viessem destruir todos os papéis, era preciso que o mar recuasse para que ainda sobrasse alguma coisa, para que as pessoas não morressem afogadas ou por falta de comida, mas o mais desesperador era que no final da catástrofe todos retomariam suas vidas normais, era preciso algo que as despertasse, que as fizesse perceber na normalidade dos metrôs e ônibus e catracas e crachás e formulários MF-16 nada existia de normal, talvez se um dia não amanhecesse ou não anoitecesse, e as areias da praia ficassem roxas e o mar cor de laranja, ou se a pedra no final daquela ruazinha se explodisse em mil pedacinhos abrindo uma vista para outro bairro e deixando o vento passar, ventos suaves ou ventos de tempestade, furacões que arrasassem tudo até não sobrar mais do que o caos, talvez segundos antes de morrer as pessoas se dessem conta, mas aí já não faria diferença, Morais vê a pedra desmoronar lentamente e o grande furacão diante de si, arrastando tudo para um grande buraco negro.
Morais para em cada um dos quiosques da praia e pede alguma bebida enquanto tenta se lembrar do poema que era para ter sido a grande obra de sua vida
Amigo, desce uma cachaça
sente a cabeça já não mais como antes e não se lembra mais de como começar a escrever o poema
Desce mais uma
depois de mais outra cachaça segue para as pedras do Arpoador se misturando aos turistas que vão despreocupados aplaudir o pôr-do-sol e só quando a noite chega é que toma coragem para se jogar do alto