Dostoiévski, "extremado nas ideias e paradoxal nos sentimentos"

Revista Kalinka
Kalinka
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4 min readMay 28, 2021

Trecho do capítulo "Algumas questões fundamentais na vida e obra de Dostoiévski" retirado do livro "Aulas de literatura russa: de Púchkin a Gorenstein", de Aurora Fornoni Bernardini

Foto (1879): Konstantin Shapiro

De fato, relendo hoje romances como Crime e castigo e O idiota — que na constelação de obras de Dostoiévski figuram como talvez os mais importantes de sua fase madura (1864 -1868) — , o que se observa é justamente esse caráter extremado nas ideias e paradoxal nos sentimentos, ou vice-versa, conforme as personagens em questão.

Extremado nas ideias, como o Raskólnikov de Crime e castigo, ou nos sentimentos, como o príncipe Mýchkin, o herói de O idiota; mas a regra do jogo é essa exacerbação: ou se aceita, ou não se aceita. Sabendo que os “parâmetros extremos” da existência passam pelo mito ou pelo absurdo, Dostoiévski os incorpora no príncipe Mýchkin — mescla de Cristo e Dom Quixote, conforme a consagração da crítica, e cuja atuação como personagem focalizaremos aqui — e cria, no meio de tantas ideias-forças, crises, contradições, etc., a figura que ele mais amou, a portadora de sua mensagem última ao homem livre russo, ou a portadora da “verdade universal” toutcourt, conforme ele a sintetizou, um ano antes de morrer, em seu discurso em homenagem a Púchkin (para quem estava sendo inaugurado — lembramos — um monumento, em Moscou, em 1880).

Para chegar a essa verdade, Dostoiévski vai aplainando o caminho, vai derrubando os obstáculos que lhe surgem pela frente. Dependerá a verdade de fenômenos exteriores? Deverá ela ser buscada em outras terras, nas terras europeias, por exemplo, com sua sólida organização histórica, com sua já estabelecida vida social? Ou mesmo longe da vida mundana, junto à natureza selvagem?

Não. “A verdade não está fora de ti, mas em ti mesmo. Reencontra-te em ti mesmo, submete-te a ti mesmo, torna-te dono de ti, e verás a verdade. (…) Se te venceres e te humilhares, tornar-te-ás livre como nunca imaginaste, iniciarás a grande obra de dar a liberdade aos outros e conhecerás a felicidade, porque tua vida se encherá e tu compreenderás finalmente teu povo e sua santa verdade”, afirma Dostoiévski (1984) no referido discurso.

(…)

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“Aulas de Literatura Russa: de Púchkin a Gorenstein” (Kalinka, 2018)

O leitor brasileiro, já familiarizado com nomes como Gógol, Dostoiévski, Tolstói e Tchékhov, pode agora desfrutar das lições de Aurora Fornoni Bernardini que, sem didatismos, contextualizam e elucidam as poéticas desses e de outros escritores inescapáveis. Frutos de décadas de dedicação à tradução e à crítica literária, os ensaios contidos em Aulas de literatura russa, marcados pela escrita primorosa e o olhar instigante de Bernardini, acima de tudo, potencializam o prazer da leitura.

Organização: Daniela Mountian e Valteir Vaz.
Prefácio: Arlete Cavaliere.
Páginas: 436
ISBN: 9788561096182

SOBRE A AUTORA

Aurora Fornoni Bernardini é professora, escritora e tradutora. Na Universidade de São Paulo (USP), além de mestrado e doutorado sobre futurismo russo e italiano, concluiu em 1978 sua livre-docência sobre Marina Tsvetáieva. Bernardini começou a estudar russo em 1958 e, no fim da década de 1960, durante o mestrado, foi convidada para lecionar no curso de russo da USP por Boris Schnaiderman (1917–2016). Atualmente é professora titular de pós-graduação nos programas de Literatura e Cultura Russa (atual LETRA) e de Teoria Literária e Literatura Comparada (FFLCH/USP). Em 2003, foi finalista do prêmio Jabuti pela tradução de Cartas a Suvórin, de Anton Tchékhov (Edusp, com Homero Freitas de Andrade); em 2004, recebeu o prêmio Jabuti (segundo lugar), com o poeta Haroldo de Campos, pela tradução de Ungaretti: daquela estrela à outra (Ed. Ateliê Editorial); em 2006, foi vencedora do prêmio APCA pela tradução de O exército de cavalaria, de Isaac Bábel (CosacNaify, com Homero Freitas de Andrade); em 2006, foi contemplada com o prêmio Paulo Rónai pela tradução de Indícios flutuantes — poemas, de Marina Tsvetáieva (Martins Fontes), de quem Bernardini ainda verteu Vivendo sob o fogo: confissões (Ed. Martins, 2008); em 2007, foi vencedora do prêmio Jabuti (terceiro lugar) também pela tradução de Indícios flutuantes; em 2014, foi finalista do Jabuti pela tradução de “Os sonhos teus vão acabar contigo: prosa, poesia, teatro, de Daniil Kharms (Kalinka, com Daniela e Moissei Mountian).

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