Os versos livres de Viatchesláv Kupriyánov

Revista Kalinka
Kalinka
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6 min readMay 21, 2021
Capa: Fabiola Notari

O poeta Viatchesláv Kupriyánov nos deu esta entrevista quando de passagem pelo Brasil como convidado de dois eventos, da USP e da Casa Guilherme de Almeida, que reuniram poetas de várias partes do Oriente. Kupriyánov é também autor de textos em prosa, mas foram seus poemas que o consagraram, sobretudo os escritos em verso livre, que, na Rússia, apareceu em sua versão moderna apenas nos anos 1960, com ele e alguns poetas, como Vladímir Búritch − à diferença do Ocidente, portanto, que conta, à sua maneira, com o verso livre desde as vanguardas. Traduzido para mais de 40 línguas e dono de vários prêmios, Kupriyánov é estudado e apreciado no mundo todo. (dez/2012)

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Revista Kalinka (RK): O senhor foi um dos pioneiros da poesia russa contemporânea usando o verso livre. Como o senhor definiria essa forma de versos?

Viatchesláv Kupriyánov (VK): É uma forma de versos intermediária da qual, em princípio, historicamente nasceram tanto a poesia quanto a prosa, porque os textos sacros, dos quais depois se construíram os sistemas religiosos e éticos, foram praticamente escritos em estilo livre, no verso livre, ou seja, num texto que se apoia na palavra. As poesias se apoiam na sílaba, na musicalidade da sílaba; a prosa, na frase, na inflexão frasal; e a palavra como tal é usada no verso livre, pois nele há um tipo de inflexão lógica que pode ser distinguida pela entonação. De um jeito ou de outro, eu defini o estilo livre de forma um pouco matemática, como um gênero literário simétrico à prosa quando relacionada com a poesia. Isso compõe um grupo algébrico. Há três tipos possíveis de gêneros literários no sentido amplo do termo. Por isso o verso livre possui seus direitos e não pretende tomar o papel da prosa, tampouco atrapalhar a poesia.

RK: Quando o senhor começou a escrever, os críticos não entenderam logo seu estilo livre. Como percebia essa situação?

VK: Na verdade, no período soviético houve ainda um momento de literatura oral. Nós podíamos fazer leituras sem nos sujeitarmos a nenhum tipo especial de censura. Eu e meu colega Vladímir Búritch, que, pode-se dizer, começou a escrever versos livres antes de mim (ele tinha um sistema poético próprio, uma teoria poética própria, e não foi publicado por tanto tempo quanto eu)… nós nos apresentávamos juntos em bibliotecas, em certos clubes, e isso era tão comum na época. Por isso o verso livre, pode-se dizer, foi no começo assimilado pelas pessoas em versão oral. Minhas primeiras publicações saíram nos anos 1960. Na verdade, Búritch publicou um pouco antes, mas aconteceu um conflito com os poetas do front (a assim chamada geração do front) — eles não gostaram da visão de guerra dos versos de Búritch e ele deixou de ser publicado. Mas depois, nos anos 80, lançamos de uma vez algumas coletâneas de poemas: a primeira foi Quadrado branco, em 1988, com quatro poetas: eu, Búritch, Káren Djanguírov e Arkádi Tiúrin. E exatamente um ano depois lançamos a antologia A época X, em que havia 18 poetas escrevendo em verso livre. Depois Káren Djanguírov, o mais jovem e ativo, publicou uma antologia com mais de 300 poetas de todo calibre, de relevância variada. Meu primeiro livro com versos livres saiu em 1982. Após oito anos, nós publicamos Vladímir Búritch na mesma editora, na Escritor Soviético. Esses foram os caminhos… Mas os primeiros versos livres eu publiquei ainda no Instituto de Línguas Estrangeiras, no nosso jornal, o Estudante Soviético, ao que parece, em 1961, sim, quando eu estava no primeiro ano, 61, 62.

RK: A língua russa mudou muito, principalmente nos últimos 20 anos. O senhor considera isso um problema?

VK: Na verdade, antes de mais de nada, o que mudou foi o portador da língua, ou seja, o público é totalmente diferente: antes era o povo, agora é o público, não sei como separar isso. E a língua sai de controle, sua função estética, sua função cultural de modo geral e sua ampla função de comunicação; ou seja, na simples troca de informações, no plano da conversa, a língua ficou muito reduzida. Pode-se falar sem-fim sobre os motivos disso. Eu já tentei, claro, falar sobre isso de muitas maneiras − nosso sistema educacional e todas as reformas feitas são coniventes a isso. Infelizmente a questão filosófica principal consiste no fato de nossos dirigentes, nossos líderes, a alta cúpula, não entenderem que a cultura reside na base da vida da pessoa e que só depois vem a economia. Eles já tropeçaram uma vez no marxismo e continuam, só que agora, pura e simplesmente, em lugar do marxismo, das teses marxistas, eles utilizam teses econômicas com a ideia de que hoje é o mercado que organiza tudo. Mas, infelizmente, isso não tem nenhuma relação com a língua e com a fala; na realidade, a fala e a língua precisam mover esses processos de forma consciente, precisam transformar a sociedade numa sociedade humana, racional, próspera, e não numa sociedade ameaçadora. Nesse sentido, a língua requer grande atenção e grande cuidado, só que não formal, tampouco do ponto de vista das pessoas, que ficam distantes deste problema. Por exemplo, declaram o Ano da Língua Russa sem a menor ideia do que fazer com isso, não escutam os filólogos, mesmo que agora os próprios filólogos não consigam às vezes explicar exatamente o problema que se coloca diante da língua, da literatura e, em particular, da poesia.

RK: O senhor destacaria alguns poetas contemporâneos?

VK: Antes de mais nada, agora há poetas demais, a quantidade destrói a qualidade; mas, apesar disso, naturalmente, sempre é possível mencionar figuras que se destacam por si mesmas, pelos críticos ou pelos prêmios − alguns prêmios, via de regra, são subornáveis, nem sempre objetivos. Um bom poeta é Maksim Amiélin, um homem culto que conhece muito bem a história da poesia russa, capaz de apoiar-se em movimentos literários que vieram ainda antes de Púchkin, no séc. 18, na poesia silábica, numa forma de estrofe muito complexa que de algum modo lhe permite escrever poemas longos e ligá-los a alguns conhecimentos históricos − ele também é tradutor do latim, traduziu Catulo. Há um poeta muito popular que vive em Kiev, o Aleksándr Kabánov. Um poeta de pensamento criativo e de fantasia desenfreada, e, como acontece com frequência em poesia, há momentos apáticos, ou seja, rima-se a prosa pura e simplesmente; mas ele tem se apoiado na linha “imaginista”, em Mandelstam, fazendo um verso bonito, floreado, florido, irisado e, ao mesmo tempo, com bom senso de humor. Há também um poeta de cunho social, oposto a Amiélin, o Vsiévolod Emiélin, um tribuno do povo − ele publica principalmente na internet, apesar de ter lançado um livro. Então eu citaria Vladímir Búritch como o poeta ideal do verso livre, ele morreu em 1994, na Macedônia. E a situação é tão lamentável, que desde então sua obra não foi reimpressa, apesar de ele ter dado exemplos de aforismos em verso livre e de ter sido muito imitado, mas, de fato, seu livro foi impresso quase 30 anos atrás e ninguém o lê mais. Ele continua presente graças à internet, como todo mundo, e aos seus discípulos. E há também mulheres escrevendo coisas interessantes, como Svetlana Kekova e Svetlana Sýrneva. Elas vivem na região do Volga, não em Moscou.

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No Brasil, a obra de Kupriyánov pode ser conhecida em Luminescência: antologia poética, organizada e traduzida por Aurora Fornoni Bernardini, com apresentação de Daniela Mountian. Conheça um poema:

AULA DE CANTO (1)

O homem

inventou a gaiola

antes

de inventar as asas

Nas gaiolas

cantam as aves

a liberdade

do voo

Frente às gaiolas

cantam os implumes

o direito

às grades

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SOBRE O AUTOR

O poeta Viatchesláv Kupriyánov nasceu em Novosibirsk, na Sibéria, e mora há muitos anos em Moscou, onde se formou nos anos de 1960 no Instituto de Línguas Estrangerias (no começo da carreira traduziu textos do alemão, sobretudo de Rainer Maria Rilke).

Com várias antologias publicadas e prêmios recebidos, Kurpriyánov é estudado e apreciado em vários países do mundo, como na Alemanha, onde ele possui um percurso notável. Além disso, é um artista muito ativo. Em 1988, por exemplo, organizou o primeiro festival de poetas independentes da Sibéria.

A escritora, jornalista e tradutora Nataláia Rumartchúk, esposa de Kupriyánov, em 2011 publicou o livro Pra que você foi se apaixonar por um poeta? (Moscou), trazendo alguns dos episódios que passou nas inúmeras viagens que fez ao lado do marido.

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