“Comprarei uma cartola…”

Revista Kalinka
Kalinka
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3 min readFeb 18, 2022

Trecho do livro “O compromisso”, de Serguei Dovlátov

Foto: Yury Shchennikov

…E eu fiquei sem trabalho. Ponderei: talvez dê para aprender o ofício de alfaiate? Reparei que os alfaiates estão sempre de bom humor…
Topei com Lóguinov, o da televisão.
— Olá. Como tem passado?
— Pois é, estou à procura de trabalho.
— Tem uma vaga. O jornal Em defesa da pátria. Tome nota do sobrenome: Kachírin.
— O careca?
— Kachírin é um jornalista calejado. Um homem de temperamento macio…
— A bosta também é macia — disse eu.
— Então você o conhece?
— Não.
— Mas se está dizendo…Tome nota.
Eu anotei.
— Deveria se vestir decentemente. A minha mulher diz que se você se vestisse decentemente…
A propósito, a mulher dele me telefonou uma vez…Stop!
Aqui se abre um tópico amplo e perturbador. Que nos levaria para longe…
— Quando eu ganhar decentemente, irei me vestir assim. Comprarei uma cartola…
Eu juntei meus recortes de jornal. Selecionei os melhores artigos. Não gostei de Kachírin. Rosto inexpressivo, humor do exército. Ele me deu uma olhada e disse:
— O senhor, evidentemente, não é membro do partido?
Consenti com a cabeça, o ar culpado. Com uma espécie de ingenuidade idiota, ele acrescentou:
— Umas vinte pessoas tinham pretensões à vaga. Conversaram um bocado comigo e não apareceram mais. O senhor, queira ao menos deixar o telefone.
Soletrei o número da tinturaria que por acaso me veio à memória.
Em casa desdobrei meus recortes de jornal. Reli uma coisa ou outra. Perdi-me em pensamentos…
Folhas amareladas. Dez anos de mentiras e de fingimento. Mesmo assim, certas pessoas estão lá, os papos, os sentimentos, a realidade… Não propriamente nas folhas, mas ali, no horizonte…
Da realidade ao real o caminho é árduo.
Não se pode pisar duas vezes no mesmo rio. Mas se pode, através da água, divisar o fundo coberto por vidros de conservas. E, por trás dos cenários pomposos do teatro, ver a parede de tijolos, as cordas, o extintor de incêndio e os operários embriagados. Quem ao menos uma vez na vida esteve numa coxia sabe disso… Comecemos com uma mísera nota de jornal.

***

SOBRE A OBRA

O Compromisso

Em O compromisso (1981), o escritor russo Serguei Dovlátov (1941–1990) descreve sua incursão pelo jornalismo na gazeta Estônia Soviética, em Tállin, cidade onde morou entre 1972 e 1975. As doze histórias que compõem o livro, sempre hilárias, transitam entre jornalismo e literatura, entre realidade e ficção, com personagens delineadas por um mestre da prosa curta e do humor. De jóqueis frustrados ao nascimento do quadringentésimo milésimo habitante da capital estoniana, conhecemos uma das fases mais profícuas da carreira deste escritor que, com uma linguagem despojada e franca, tornou-se um símbolo da cultura russa contemporânea.

SOBRA O AUTOR

“O escritor russo Serguei Dovlátov (1941–1990), filho de um judeu e de uma armênia, nasceu na época da Segunda Guerra Mundial em Ufá (Bachkiria), passou a maior parte de sua vida em Leningrado/Petersburgo e, em 1978, emigrou para os EUA; viveu seus últimos anos em Nova Iorque, onde morreu, antes de completar 50 anos.
Na União Soviética ele pertenceu à chamada contracultura, à cultura dissidente, e praticamente não foi publicado. Nos EUA lançou doze livros, foi o redator-chefe do jornal O novo americano e colaborou na rádio Svoboda. Seus contos eram publicados na revista New Yorker, seus livros foram traduzidos para o inglês, coreano, japonês e outras línguas. Depois de sua morte, tornou-se na Rússia um dos autores mais queridos e publicados da segunda metade do século 20.
Os gêneros principais de Dovlátov são os contos, normalmente reunidos por temática (O compromisso, 1981; A zona, 1982; A mala, 1986), e novelas curtas (A estrangeira, 1986; A filial, 1990). Ele dá continuidade à prosa russa (Púchkin, Tchékhov) e americana (Ernest Hemingway, Sherwood Anderson), tirando de histórias corriqueiras o seu enredo, organizado quase como um poema.
O princípio de Gógol do ‘riso entre lágrimas’ se converte em Dovlátov num ‘sorriso amargo’ diante da vida como ela é, de uma existência imperfeita. […]”

Ígor Sukhikh (Parque Cultural, Kalinka, 2016)

Leia entrevista sobre o autor com Yulia Mikaelyan: https://bit.ly/36qV971

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