Como o mercado de trabalho trata as pessoas trans no Brasil

Maria Eduarda Brito
Editorial J Famecos
11 min readDec 16, 2020

Conheça um pouco da trajetória de procura das pessoas trans por um espaço no mercado de trabalho no Brasil.

Por Bruna Tkatch (2º semestre), Maria Eduarda Brito (2º semestre) e Paula Neiman (2º semestre)

Em busca do sucesso: a independência de uma costureira

Suellen Dyas mudou-se do nordeste do Brasil, mais especificamente da cidade de Fortaleza, no estado de Ceará, para investir no seu negócio no interior do Rio Grande do Sul, em Charqueadas, município com cerca de 39.000 habitantes.

Foto: Reprodução/ Suellen Dyas

Há 3 anos, Suellen descobriu-se uma mulher trans. Após uma visita com os pais ao Rio Grande do Sul, ela percebeu as possibilidades que poderia ter na cidade e arriscou a abertura de um novo negócio. Dentre os motivos para mudar-se, cita como o principal objetivo buscar um melhor custo de vida. O Ateliê Suellen Dyas surgiu em janeiro de 2020 e é localizado no centro de Charqueadas, que fica, aproximadamente, a 60 km da capital do estado, Porto Alegre, onde costuma ir comprar tecido. Suellen diz que as pessoas do interior possuem a mente mais fechada, e algumas têm até receio de cumprimentá-la.

A costureira sempre gostou de arte e moda, além de poder satisfazer os desejos dos outros com o seu trabalho. Por questões práticas e econômicas, separou um lugar da sua casa para construir o Ateliê: “No primeiro mês que cheguei aqui, já comprei as duas máquinas e comecei a trabalhar. Tudo foi muito rápido”. Por já ter experiência na área após um trabalho em um ateliê de noivas no Ceará, não teve dificuldades para começar o seu negócio. Assim, em quatro meses conseguiu uma boa estabilidade financeira.

A sua clientela predominante é formada por pessoas da religião de Umbanda. A costureira diz adorar confeccionar para elas, principalmente as roupas das mulheres, mais detalhadas e trabalhadas. Mesmo não fazendo parte da religião, Suellen diz que gosta de participar do que essas mulheres acreditam através das produções que lhe são encomendadas: “elas precisam dar o melhor para receber tudo em dobro, e eu admiro isso”, conclui.

Apesar dos umbandistas serem seus principais clientes, Suellen atende a todos os tipos de pedidos: “quando eu quis aprender a costurar, pensei que queria ser uma costureira completa, que costura para uma criança, um idoso, um LGBTQ+, o que for”. Cita como uma das suas maiores inspirações para a abertura do ateliê as pessoas que são da classe plus size, por não encontrarem muitas opções de roupa à venda no mercado.

A dona do ateliê afirma que a internet está sendo essencial para a divulgação do seu trabalho. Comenta que gosta de fazer lives costurando e bordando algo, pois “a energia das clientes traz coisas boas” e, assim, ganha estímulos para produzir mais. Porém, não são todos os clientes que se sentem à vontade. Suellen relata um episódio em que um sujeito, quando descobriu que a costureira era uma mulher trans, não quis mais ser atendido. Mas ela não se abala: “ele respeita o meu espaço e eu respeito o dele”, responde.

Ao ser questionada sobre o seu principal apoio, cita prontamente seus pais. Ela mesma diz que tem sorte em relação a isso, porque, na maioria dos casos, os familiares possuem uma certa demora e/ou dificuldade para a aceitação de pessoas trans dentro de casa, ou essa aceitação pode até mesmo não acontecer. Com a costureira, os pais a apoiaram desde o início quando decidiu começar a transição. De acordo com o relatório anual do Grupo Gay da Bahia (GGB), 329 pessoas da comunidade LGBTI+ foram assassinadas no Brasil no ano de 2019 e, dentre elas, cerca de 35,55% foram mortas de forma violenta dentro de suas próprias residências. Suellen agradece pela compreensão que tiveram com ela: “eles sempre me ensinaram a ser independente, dizem que sou livre para voar”. Seus pais ainda vivem no Ceará e Suellen não se enxerga voltando a morar lá.

Na sua vida, levanta três pilares de sonhos. O primeiro era ter o próprio negócio, que conseguiu realizar em 2020 com a criação do ateliê. O segundo é viajar para fora do Brasil e o terceiro é ser Miss. No Ceará, conseguiu três títulos de beleza a partir de concursos, mas os que participara eram concorrendo para “Miss Gay”. Hoje ela deseja continuar esse sonho na categoria de Mulher Trans, mas diz existir uma barreira para que isso aconteça: o nome social. Suellen optou por não mudar o nome social no cartório e continuar com o seu nome de RG (registro geral), o que pode prejudicar alguns processos. “Por que ainda não trocou o seu nome?” é a pergunta que Suellen costuma ouvir quando vai a algum lugar e é solicitada a apresentação do RG: “não me sinto constrangida quando fazem essa pergunta, a pessoa que fica sem jeito, porque não sabe como me chamar, mas prontamente respondo que por Suellen”. Assim, explica que um dos motivos de não ter vontade de trocar o nome é por causa dos seus pais: “eles tiveram um longo processo ao escolher meu nome, acho meio injusto da minha parte trocar só para as pessoas me identificarem como trans, porque eu não faço questão da troca”. Suellen reclama que as pessoas acham que só por não ter o nome social, ela deixa de ser mulher.

Sobre o mercado de trabalho para pessoas trans, acredita que seja mais fácil trabalhar na informalidade do que conseguir uma carteira. Conforme o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), até fevereiro de 2020, o Brasil tinha mais de 38 milhões de cidadãos trabalhando na informalidade. Porém, no primeiro trimestre de 2020, cerca de 3,7 milhões de postos de trabalhos informais foram perdidos, sendo a pandemia o principal fator. Suellen pensa que as empresas têm receio da aceitação do público em relação a funcionários transgêneros, por isso, presume que evitar contratar essas pessoas seja a melhor opção para não causar intrigas: “todas as empresas deveriam abrir vagas obrigatórias para nós”. Ainda aconselha pessoas do grupo LGBTQ+ a abrirem seu próprio negócio para não serem atacadas com o preconceito contínuo: “a maioria dos trans que eu conheço é dono do próprio negócio, como designers de sobrancelha, cabeleireiros, donos de loja”. Suellen manifesta amor pelo o que faz e dedica muito do seu tempo para isso, abrindo o ateliê às 09:00 e fechando às 18:00, mas diz ter exceções para clientes até às 22:00: “às vezes acordo às 03:00 com alguma ideia na cabeça, corro para o ateliê e deixo tudo pronto para o dia seguinte”, explica com um sorriso no rosto.

Para o futuro, sonha alto: “quero ter um nome, tipo Prada e Louis Vuitton”, brinca. Mas, para chegar lá, admite ter que manter o pé no chão e se estabilizar como pessoa e profissional. A costureira já idealiza cursos para pessoas trans que desejam aprender a costurar. “Quero oportunizar um espaço para eles”, comenta, explicando que ainda pretende contratar funcionários para ajudar no ateliê, desde que esteja estabilizada economicamente. Como o negócio começou em janeiro, relata que a pandemia do coronavírus neste ano de 2020 não afetou muito a continuação do seu trabalho, e diz que seus clientes já estão fazendo roupas para quando a pandemia acabar. “Eu quis botar a cara a tapa e eu vou conseguir”, conclui.

Uma batalha por inclusão no coletivo

Contudo, 2020 envolveu muitas adversidades, principalmente no ramo trabalhista. Neste ano, o desemprego atingiu sua maior taxa desde 2017. Segundo o IBGE, há 12,8 milhões de desempregados no Brasil, sendo essa situação pior no caso de pessoas que são majoritariamente excluídas da sociedade. Se héteros, brancos e cisgêneros já reclamam da falta de oportunidade, essa dificuldade é acentuada para membros da comunidade LGBTQ+ e negros.

O mercado de trabalho brasileiro é um reflexo da sociedade elitista e preconceituosa. Dados de 2010 coletados pela Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) apontam que apenas 10% da população trans consegue emprego fora da prostituição. Em muitos destes casos o trabalho sexual é o único jeito de não passar fome e ter um lugar para morar, até porque muitas famílias expulsam seus filhos e filhas de casa quando estes se assumem trans.

No jornalismo

Quem conseguiu um emprego no mercado formal também sofre preconceito.

Caê Vasconcelos, paulista de 29 anos, é repórter de direitos humanos com foco na temática LGBTQ+ na Ponte Jornalismo, veículo de jornalismo independente sobre segurança pública, justiça e direito humanos. Ele tem uma experiência variada com o mercado de trabalho. Antes de descobrir que queria cursar jornalismo, trabalhou em loja de shopping, call center de várias áreas, agência de turismo, entre outras.

Caê Vasconcelos // Foto: Pedro Ribeiro Nogueira/ Ponte Jornalismo, 2020

Em 2019 começou a trabalhar na Ponte como repórter LGBTQ+. Quase um ano depois, se entendeu e posteriormente se assumiu como uma pessoa trans. Caê comenta que sente que sua transição iniciou quando começou as entrevistas para seu TCC “Transresistência: Histórias de pessoas trans no mercado formal de trabalho”. Inclusive, foi com esse TCC, que também virou livro, que Caê bateu na porta da Ponte para pedir emprego.

Mas o trabalho formal não é a regra para jornalistas trans, muitos não conseguem emprego na área e muitas vezes precisam recorrer à informalidade. Por conta disso, o jornalista revelou que está, junto com amigos e conhecidos, criando um coletivo para batalhar por inclusão. Ainda provocou: “quantos repórteres trans estão fazendo entrevistas?”

Por esta dificuldade de inserção ou manutenção no mercado de trabalho, muitas pessoas acabam adiando sua transição. Há o medo de ficar sem fonte de renda e também o agravante da possibilidade de expulsão de casa, que ocorre com muitas pessoas quando se assumem LBGTQ+.

Caê ainda comenta sobre como é importante que haja uma representação trans nas redações. É necessário que as pessoas LGBTQ+ apareçam na mídia de outras maneiras, não apenas quando são mortas ou sofrem alguma violência. Em 2013, a UFSC realizou uma pesquisa para avaliar o perfil do jornalista brasileiro. Há informações sobre área de atuação, formação, faixa salarial, cor, sexo biológico, entre outras. Contudo, não há nenhum dado sobre orientação sexual ou identidade de gênero.

A inspiração de Caê na comunicação é a cartunista Laerte Coutinho, que foi um dos indivíduos pioneiros a expor o tema da transexualidade no Brasil e a partir de 2009 começou a inspirar a “saída do armário” de quem é trans. Mas o repórter acredita que ainda vai demorar bastante para que um profissional trans apareça em rede nacional com um cargo como de âncora em telejornal. Mas já há muitas pessoas lutando por espaço, como por exemplo os criadores do Prêmio Neusa Maria de Jornalismo, que teve sua primeira edição em 2020. Essa premiação surge como resposta à cultura elitista das premiações tradicionais, ao ser voltada para não brancos e não cisgêneros.

Caê salienta: “a vivência trans no mundo não é sobre mim, é sobre a coletividade”. Há corpos trans em todas as áreas, o que falta é visibilidade e oportunidade.

A dor da procura pela valorização do trabalho

A Transcendemos surgiu para apoiar uma maior visibilidade de pessoas trans no mercado de trabalho. É uma consultoria que tem como principal objetivo ajudar outras organizações a serem mais inclusivas, promovendo diversidade e inclusão nas organizações. Este trabalho é feito através do Comuto, programa de desenvolvimento profissional voltado para grupos minorizados (LGBTs, negros e negras, mulheres, entre outros). É realizado em empresas que estão preocupadas em promover a diversidade e a inclusão em seu ambiente corporativo.

Para muitas pessoas pertencentes a minorias, o projeto significa mudar de vida e de perspectiva no ambiente corporativo. Foi através do projeto que Vênus Montovani, mulher trans, se sentiu valorizada e pertencente a uma empresa “quando você vai abrir uma vaga de emprego para pessoas trans, não é só abrir as portas que vai atrair as pessoas. Você precisa pavimentar esse caminho, então fazer como o Comuto faz, se preocupando que as empresas forneçam transporte público, é esse processo de pavimentação” contou ela.

Foto: Reprodução/ Vênus Montovani

Vênus é paulista, tem vinte e quatro anos, mas busca estabilidade financeira desde os dezessete. Não teve o apoio da sua familia e sempre lutou para não ser mais uma nas estatisticas da prostituição. Ela convive com a homofobia desde cedo. Na adolescência, sofreu agressões de um grupo de jovens por se vestir de forma feminina. Desde então, viu que a vida não seria fácil.

Vênus sofreu o primeiro assédio em um banheiro masculino, em horário de trabalho em um dos seus primeiros empregos no comércio. Ela não podia entrar nos banheiros femininos, porque as clientes reclamavam de ter uma pessoa diferente delas. Por isso, procurava usar os banheiros para deficientes, pois se sentia mais segura. Porém, neste dia o único banheiro livre era o masculino, e nele sofreu assédio sexual e moral. Tinha dezessete anos. Quando usava a pia do banheiro, e um homem se masturbou nela. A situação foi tão difícil que ela não conseguiu esboçar reação.

Aos dezoito anos, após muitos ataques transfóbicos e de sua família “declarar guerra contra ela”, foi expulsa de casa depois de uma briga com a sua mãe. “Ela disse que a forma que eu me comporto estava tirando a paz da nossa casa”, conta. Este situação expos ela a uma situação de vulnerabilidade, o que fez com que ela se tornasse moradora de rua, mais uma pessoa trans vitima de uma sociedade heteronormativa e homofobica.

Um comerciante que já a conhecia por morar muitos anos no mesmo local percebeu a situação e passou a permitir que ela fizesse higiene em sua casa. Também a empregou no comércio dele. Através desta ajuda e de algumas pessoas conhecidas, que sabiam da situação, ela conseguiu sair das ruas e se estruturar financeiramente.

Aos dezenove anos, conseguiu um emprego de telemarketing, trabalho no qual permaneceu durante quatro anos. Dedicada, se mostrou uma ótima vendedora. Na época ainda chamada pelo seu nome de registro, Vênus vislumbrou a oportunidade de uma promoção na empresa, por observar que seus superiores enxergavam seu destaque, com números muito mais altos que os dos seus colegas. Porém, o supervisor que fazia as promoções de cargos ainda não a conhecia pessoalmente. Para fazer a mudança de cargo, veio até a sede onde ela trabalhava. Quando o chefe a conheceu, foi surpreendido negativamente pelo perfil feminino, com cabelos longos e maquiagem. Não permitiu que ela fosse promovida: “apesar de querer muito, fui impedida por transfobia descarada. No dia em que fui conhecer o supervisor pessoalmente, estava com cabelão loiro, maquiada. Quando ele me viu, apontou para onde eu estava e perguntou para a minha chefe ‘isso é o Montovani?’ e a partir dali, minha chefe me informou que a minha participação na reunião não ocorreria, deixando claro que a promoção não aconteceria” detalhou. Apesar do desconforto, nunca desistiu. Depois de um tempo, tentou novamente um processo interno para promoção dentro da empresa. Após ter sido aprovada em todas as etapas, a última seria a aprovação da gerente: “ela me disse, com a maior normalidade do mundo, que não seria possível eu administrar uma equipe, pela forma que eu me visto e pela forma que eu me comporto, falando que eu não tenho aparência de líder”, explicou Vênus. A promoção não veio pela segunda vez. Hoje em dia continua trabalhando na empresa que ingressou através do Comuto e que valorizou o seu trabalho.

O que falta?

Pessoas trans já têm mais visibilidade nos últimos tempos, contando com uma maior representatividade na mídia, algum impacto da internet e uma maior acessibilidade a informações sobre o assunto, mas ainda não é o suficiente. Há muitos casos diários de discriminação e abusos, tanto psicológicos como físicos, demonstrados em parte nos relatos exibidos aqui. Existem muitas Suellens, Caês e Vênus espalhados no mundo.

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