Contexto inédito, desafios frequentes e futuro incerto: o jornalismo em 2020

Profissionais da área compartilharam suas experiências no programa Sem Estúdio, do Editorial J

felipe conte
Editorial J Famecos
8 min readAug 27, 2020

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Por Fabrine Bartz (3° semestre) e Felipe Conte (4° semestre)

Foto: Bruna Portella (4° semestre)

O período de pandemia tem demonstrado diversos desafios para o jornalismo. Além dele, a ciência e a saúde enfrentam, por exemplo, junto ao próprio vírus, uma série de ataques e uma onda de falsas informações, como afirmou António Guterres, secretário geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Luiza Bodenmuller, gerente de estratégia do Aos Fatos, portal independente que faz a verificação de notícias, conta que as pessoas buscam por argumentos que comprovem suas teses e não avaliam a veracidade da informação que consomem. “Qualquer informação que traga conforto é mais fácil de acreditar”, complementa. Depois de seis meses de isolamento social no Brasil, “o jornalismo encara o desafio de mudar uma postura histórica de como ele enxerga os acontecimentos e os fatos”, avalia Moreno Osório, jornalista, professor de jornalismo da PUCRS e doutor em Comunicação.

Enquanto os veículos tradicionais continuam exercendo seu trabalho sem grandes perdas, Moreno ressalta que a pandemia pode ser uma oportunidade de crescimento para os veículos menores e alternativos, elevando, assim, o patamar do jornalismo independente. Ele destaca, ainda, que cresce o movimento de preocupação com o jornalismo local, visto que, em 2016, a imprensa americana foi pega de surpresa com a eleição de Donald Trump por não saber o que acontecia nos interiores do país. Segundo o professor, em Porto Alegre e, provavelmente, em outras cidades do Brasil, houve avanço no jornalismo local, porém, ainda há muito o que evoluir. “Temos indícios de uma recuperação da credibilidade e do uso do jornalismo, mas parece que tem um mundo que não estamos conseguindo chegar, o mundo da desinformação”, complementa.

A equipe do J sintetizou as visões sobre a transformação do jornalismo na pandemia a partir das entrevistas do programa Sem Estúdio. O resultado mostra um cenário diverso e complexo da profissão nos tempos que virão.

Os cuidados e adaptações à nova realidade

A pandemia obrigou mais de 75% dos jornalistas a trabalharem em home office, de acordo com pesquisa realizada pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) entre maio e junho de 2020. Cristiano Dalcin, na época repórter da Record TV e atualmente na RBS, relata como a pandemia impactou o trabalho jornalístico e como foi necessário se adaptar. “O ‘ir para rua’ se tornou algo mais raro, a gente faz muitas entrevistas pela redação e isso mudou o formato. A informação que a gente passa chega da mesma forma, mas o trabalho por trás é muito diferente”, complementa. Cristine Gallisa, sua colega na RBS, fez questão de estar na rua para levar informações ao público apesar dos riscos, enquanto, na redação, conheceu um ambiente atípico.

“A mudança foi quando as pessoas começaram a sumir do nosso espaço comum da redação e começaram a ir para lugares diferentes da empresa e, posteriormente, para suas casas”, conta.

Fernanda Wenzel, jornalista freelancer, compartilha da opinião do professor Osório de que a pandemia tem sido produtiva para os veículos independentes. Especializada em questões ambientais, a jornalista, esse ano, precisa se contentar com reportar sobre a Amazônia à distância. Através de ligações, o contato com os povos indígenas e grupos quilombolas ainda é possível, porém, Fernanda garante que as conversas, pessoalmente, são mais proveitosas.

A intolerância com os mensageiros

Segundo dados levantados pela Federação Nacional de jornalistas (Fenaj), somente no primeiro semestre do ano, o presidente Jair Bolsonaro atacou a imprensa 245 vezes por meio do Twitter ou através de discursos, entrevistas, coletivas e lives. Andrei Netto, fundador da Headline Brasil e ex-correspondente do Estadão, diretamente de Paris, revela que a imagem de um país no exterior está ligada ao emprego, renda, riqueza e desenvolvimento.

“A imagem do Brasil aqui fora nunca foi tão ruim quanto agora, pelo menos no meu período de trabalho. Um país em queda livre, um país que perdeu seu rumo por escolha própria”, aponta.

Para Cecília Oliveira, editora do The Intercept Brasil, os discursos do presidente são muito perigosos e não são apenas palavras ao vento. “Falas de Bolsonaro e seus aliados estão indo para a prática, nós estamos vendo jornalistas sendo atacados”, denuncia. No entanto, com informação embasada é possível encarar essa onda de intolerância, pelo menos é o que acredita Marcelo Cosme, jornalista da Globo News.

A magnitude da “gripezinha”

O Brasil ultrapassou a marca de três milhões e meio de casos de Covid-19 na última quinta-feira (20) e, há mais de duas semanas, já registra mais de 100 mil mortes em decorrência da doença. José Roberto de Toledo, um dos fundadores da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e editor da revista piauí, sugere que para noticiar o número de mortes pela pandemia é preciso compará-lo a outras catástrofes para mostrar a dimensão, ou humanizar um dos óbitos e mostrar o impacto dele na vida das pessoas. Um exemplo disto é que os atentados terroristas que derrubaram as Torres Gêmeas (2001), os ataques à base de Pearl Harbor (1941), o naufrágio do Titanic (1912), o desembarque das tropas aliadas na Normandia (1944), a batalha de Maratona durante a Primeira Guerra Médica (490 a.C) e a batalha de Azincourt na Guerra dos Cem Anos (1415) somam, juntos, cerca de 30 mil vítimas, o mesmo número que o Brasil registrava em 3 de junho. Para atingir o número atual de fatalidades no país, é preciso acrescentar a derrota de Napoleão na batalha de Waterloo (1815) e, ainda, as 35 mil vítimas da gripe espanhola no Brasil entre 1918 e 1920.

O Brasil registra hoje (27/08) mais de 117 mil mortes em decorrência da Covid-19 /Foto: Anton Darius/Unsplash

Marcela Donini, editora chefe da Matinal Jornalismo, participou da cobertura do incêndio da Boate Kiss em Santa Maria, em 2013. Ela conta que a situação a abalou emocionalmente, porém, como uma espectadora muito próxima, hoje, ela se encontra imersa em uma catástrofe de crise política, econômica e sanitária. A questão do isolamento, o peso do noticiário e a falta de previsão para o fim da pandemia são fatores que afetam diretamente a sanidade mental dos jornalistas. “É uma cobertura longa e sofrida com dimensão de uma tragédia que a gente não tinha trabalhado”, declara.

O jornalismo pós-pandemia

Mônica Teixeira, da Rede Globo, se questiona com frequência quais mudanças no modo de fazer jornalismo vão permanecer após a pandemia. “Será que a gente vai ter menos equipes nas ruas? Será que não vamos mais precisar entrevistar as pessoas porque elas vão mandar os depoimentos prontos de casa?”, indaga. Apesar da incerteza, ela avalia positivamente a oferta de ferramentas que surge para os jornalistas contarem as histórias. Marcelo Canellas, seu colega de emissora, entende que, em alguns casos, não será mais preciso viajar para realizar entrevistas. No entanto, o jornalista do Fantástico acredita, seguramente, na necessidade do repórter estar na rua, assim que for possível transitar. O período da quarentena serviu, também, para contradizer a expressão de Ricardo Kotscho de que “jornalismo de qualidade se faz sujando o sapato”, como bem lembrou Canellas em entrevista ao Sem Estúdio, quando afirmou que “o jornalismo profissional tem se agigantado nesse momento de crise”.

Mas estas mudanças podem acometer não só a forma de fazer jornalismo como o seu suporte tecnológico. Para o fundador do Meio, Pedro Dória, que escreve sobre tecnologia, história e política há mais de 20 anos, após pandemias, as sociedades aceleram suas transformações. Ele imagina que nos próximos 10 ou 15 anos, lentamente, vai ocorrer o desaparecimento dos jornais impressos, visto que esse modelo só é rentável enquanto a publicidade, que vem caindo, se mantém em um determinado nível. “A impressão, o papel e a tinta são caros e a distribuição mais ainda, a tendência é que os jornais sejam substituídos por produtos 100% digitais, com os mesmos títulos, pelas próprias empresas.”

Um novo risco para o jornalismo

A conjuntura atual pode trazer também ameaças à produção noticiosa, principalmente no relacionado à pós-verdade. O Projeto de Lei 2.630/20, o “PL das Fake News”, propõe medidas de combate à propagação de notícias falsas. José Roberto de Toledo acredita que o Brasil não está pronto para ter essa legislação. Ele cita a Lei de Acesso à Informação, em que o objetivo, as regras, o modo e as consequências estão expostos de maneira clara no regulamento. Para ele, essa determinação começa errado pelo nome, visto que “fake news” é uma contradição e o correto seria o termo desinformação. “Esse PL é a chamada lei-ônibus, cabe qualquer coisa. Vai ter um monte de brecha escondida no bagageiro, lá em cima, de baixo da poltrona e a gente só descobre quando a desgraça já está organizada, colocada no papel e sancionada como lei”, alega.

Na opinião de Pedro Dória, o problema não está na criminalização da notícia falsa, mas na incapacidade de definir a própria. “Como é que você distingue o cara que trabalha na ante sala do gabinete do presidente da República, cujo trabalho é criar e espalhar fake news, da ‘tia do zap’? E se for um erro de reportagem, a fonte mentiu, você entendeu errado ou então você tinha certeza que era verdade e não era, aquilo é fake news?”, se questiona. Ele acredita que isso é um trabalho da polícia e sustenta que é preciso ir atrás do comportamento de sabotar a democracia, como o financiamento dos disparos massivos, que é, na sua concepção, onde está o crime.

“Não é a toa que nenhuma democracia do mundo tenha uma lei que criminalize fake news, não é o Brasil que vai conseguir fazer esse troço direito”, conclui.

Os Direitos Humanos em pauta

O Sem Estúdio, retorna para a segunda temporada com o tema “Direitos Humanos”. O programa semanal de entrevista coletiva, realizado por alunos de jornalismo, recebe Preto Zezé, presidente global da Central Única das Favelas (CUFA) nesta terça-feira (01/09) às 19h. Criado na favela das Quadras, em Fortaleza, trabalhou como lavador de carros nas ruas da cidade. Anos depois, criou o Movimento Cultura de Rua, como uma rede de jovens que atuavam pelos direitos civis nas comunidades, através de ações culturais e sociais. Ativista social na cultura Hip Hop, Zezé lançou sete discos e idealizou o Programa Se Liga, na TV Verdes Mares: O som do Hip Hop em parceria com a Universidade Federal do Ceará (UFC). Além disso, ele é autor de dois livros, “Selva de Pedra — A Fortaleza Noiada” e “Preto Zezé — Da Quadras para o mundo”.

A transmissão acontece na página do Facebook do Editorial J e o público pode mandar suas perguntas nos comentários para serem lidos no ar. Os alunos da Famecos estão entre o 2º e 4º semestre do curso. Todas as entrevistas estão disponíveis para serem assistidas no Facebook do J. O Sem Estúdio alcança em média mais de duas mil pessoas em cada uma das suas edições através da rede social.

Há nove anos, o Editorial J recebe estagiários e alunos voluntários dos mais variados semestres, que produzem, diariamente, conteúdos em diversas linguagens e plataformas. Neste período, o grupo já conquistou 27 prêmios de jornalismo regionais e nacionais. A produção pode ser encontrada no site e nas redes do @editorialj.

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