Foto: Victoria Urbani

Os últimos suspiros da Fundação Piratini

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Editorial J Famecos
9 min readDec 2, 2016

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Texto: Igor Dreher (2º sem.) e Italo Bertão Filho (2º sem.)
Áudio: Victoria Urbani (4º sem.)
Vídeo: Eduardo de Bem (2º sem.) e Gustavo Barreto (2º sem.)

No alto do Morro Santa Tereza, os mesmos estúdios que inauguraram a televisão no Rio Grande do Sul poderão ser palco para o fechamento de uma emissora de TV. A TVE — atual ocupante do prédio da pioneira TV Piratini — pode estar a um passo da extinção. A medida faz parte do programa de reformas que o governador José Ivo Sartori pretende realizar na estrutura estatal durante os próximos meses. O projeto de Sartori prevê a extinção da Fundação Piratini, mantenedora da TVE e da rádio FM Cultura. As emissoras seriam realocadas para a Secretaria de Comunicação do Estado. Outras oito fundações também poderão ser extintas, caso a proposta do governador seja aprovada pela Assembleia Legislativa.

Segundo o programa apresentado por Sartori, “não haverá extinção das emissoras públicas de rádio e televisão, a concessão de ambas segue em vigor”. O governo também argumenta que a estrutura da Fundação está “excessivamente inchada e onerosa” para a atual situação financeira do Estado e que “o atual modelo não consegue acompanhar a evolução tecnológica e demais avanços do meio”. O governo ressalta também que a Secretaria de Comunicação ficaria responsável pela criação de um novo modelo de gestão, mas não especifica como seria essa nova forma de gerir as emissoras públicas. O único dado concreto é a demissão dos 241 funcionários da Fundação Piratini.

“A gente não acreditava que estaria no pacote de extinções. Descobrimos uns cinco dias antes do lançamento”

Em março de 2015, durante as comemorações do aniversário da TVE e FM Cultura, o governador enfatizou o papel prestado pela Fundação e as emissoras públicas à sociedade. “Quis estar aqui para reafirmar o papel da Fundação, que é promover e retratar a pluralidade da sociedade gaúcha, buscando interiorizar sua programação, através de parcerias e com sustentabilidade. É uma instituição que exerce um papel público de primeira grandeza”.

“A gente não acreditava que estaria no pacote de extinções. Descobrimos uns cinco dias antes do lançamento”, afirma a jornalista Lírian Sifuentes, funcionária da Fundação desde 2014. Lírian acredita que a possível extinção seria um reflexo da falta de valorização do governo para com o trabalho dos funcionários. “Nos desdobramos para continuar com uma TV e rádio de qualidade, algo que o governo não enxerga.”

Lírian é funcionária da Fundação Piratini desde 2014. / Foto: Victoria Urbani

“Salve, Salve TVE e FM Cultura” é o nome do movimento que luta pela continuidade das operações da emissoras públicas. Em 5 de novembro, quase 1.500 pessoas compareceram a um evento realizado no Parque Farroupilha em apoio à TVE e FM Cultura. O evento contou com a participação de ícones da música gaúcha como os cantores Frank Jorge e Nelson Coelho de Castro, bandas como Os Replicantes e artistas como Híque Gomez e Zé Adão Barbosa. Vários representantes do meio artístico se manifestaram em favor da Fundação Piratini nas últimas semanas. “Esta emissora está comprometida com a história, com a cultura e é uma TV pública, uma TV de vocês”, afirmou o cantor Elton Saldanha, apresentador do programa “Galpão Nativo”, da TVE. “É uma vergonha que um Estado como o Rio Grande do Sul esteja prestes a fechar uma TV educativa. É uma vergonha que se possa pensar em fechar uma FM Cultura, que divulga a música, a cultura do Estado todo para o Brasil”, comentou a atriz Júlia Lemmertz.

“O senhor quer passar para a história como o homem que fechou a TV Educativa?”

A Fundação Piratini surgiu em 31 de dezembro de 1980, com o nome Fundação Televisão Educativa do Rio Grande do Sul. Até então, a TVE estava vinculada à Secretaria de Educação do governo estadual. A Fundação convive com ameaças de fechamento já nos anos 80. O governador Jair Soares, que comandou o Estado entre 1983 e 1987, cogitou a extinção da TVE. Porém, desistiu da ideia após ouvir a ponderação do veterano radialista Cândido Norberto: “O senhor quer passar para a história como o homem que fechou a TV Educativa?”

Norberto acabou indicado pelo governador para ser presidente da Fundação. Em sua gestão, a Fundação ganhou a concessão da FM Cultura, que viria a ser inaugurada somente em 1989, na gestão do publicitário Alfredo Fedrizzi.

Durante o mandato da governadora Yeda Crusius (2007–2010), mais uma vez a Fundação Piratini correu risco de extinção. Já no primeiro ano de governo, Yeda tinha a intenção de transformar a entidade em uma OSCIP (Organização da sociedade civil de interesse público) — termo usado para designar as ONGs que atuam ao lado do Estado para prestar serviços públicos. No entanto, a medida — inclusive aprovada pela Assembleia — jamais saiu do papel. Dois anos depois, após o governo estadual descartar a compra do prédio onde funcionam as emissoras, o imóvel foi à leilão, pois era alugado à Fundação pelo INSS. Yeda pretendia transferir as emissoras para uma nova sede, localizada no Centro Administrativo Fernando Ferrari. No fim, a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) — administradora da TV Brasil — arrematou o prédio e fez uma parceria com o governo para manter a Fundação Piratini no local.

Foto: Victoria Urbani

“Não seria a RBS que iria fazer clipe dos Replicantes. A TVE proporcionou não só a veiculação como também a produção de material audiovisual”.

“Cultura não se mede em dinheiro”, dispara o cineasta Carlos Gerbase. O diretor entende que o possível fechamento das emissoras seja um marco negativo para a história do Estado. “O Executivo e os deputados vão passar por essa vergonha”. Com pós-doutorado em Cinema pela Universidade de Sorbonne, Gerbase acredita na importância da abertura da programação das emissoras públicas para novas vozes. Para exemplificar, o cineasta cita seu começo de carreira musical, quando a TVE abriu as portas para que a banda Os Replicantes — que o cineasta integrou como baterista — realizasse a gravação de seus primeiros videoclipes, no começo dos anos 80. “Não seria a RBS que iria fazer clipe dos Replicantes. A TVE proporcionou não só a veiculação como também a produção de material audiovisual”.

Segundo Gerbase, programas icônicos da TVE como “Pra Começo de Conversa”, “Quizumba”, “Pandorga” e “Radar” — os dois últimos ainda presentes na grade da emissora — tem valor “inestimável” para a cultura gaúcha.

“Não se trata de cortar gastos com a cultura. O ponto é que a máquina pública do Estado não cabe dentro do orçamento público”

No ano passado, o Executivo gastou 28 milhões de reais com a Fundação Piratini. Defensor da diminuição dos gastos públicos, o cientista político Fernando Schüler, ex-secretário de Justiça do governo Yeda e pós-graduado em Gestão Cultural pela Universidade de Barcelona, diverge de Gerbase: “Não se trata de cortar gastos com a cultura. O ponto é que a máquina pública do Estado não cabe dentro do orçamento público”. Apesar de não se posicionar em relação à possível extinção da Fundação, Schüler entende que a estrutura estatal está inchada e onerosa. “Boa parte das fundações, autarquias, empresas públicas que ainda existem no Estado foram criadas nos anos 60 e 70, no espírito do ‘estado grande’ do regime militar, e hoje não têm mais razão de existir”. Na visão de Schüler, a possibilidade de existir isenção em emissoras públicas controladas pelo governo é remota: “Acho muito difícil que se possa ter uma TV estatal realmente eficiente e isenta, no Brasil. Não conheço nenhum exemplo nesta direção”

“A emissora pública é importante porque ela não pertence aos governos, mas sim à sociedade. Os governos são transitórios, o público é permanente”

O presidente da Associação Riograndense de Imprensa, Batista Filho, acredita na importância da TVE e da FM Cultura para o Estado. “[Nas emissoras] sempre se deu espaço para a programação local, para que o Rio Grande do Sul pudesse ser discutido, analisado e compreendido pela população.”, afirma Batista, que foi presidente da Fundação Piratini entre 1993 e 1995, durante o governo de Alceu Collares. “A emissora pública é importante porque ela não pertence aos governos, mas sim à sociedade. Os governos são transitórios, o público é permanente”, comenta. Em nota oficial assinada por Batista, a ARI aposta no diálogo para a não-extinção das emissoras públicas. “Esperamos que debate democrático que será travado no legislativo gaúcho venha a demonstrar a absoluta ausência de fundamento nessa proposição”, afirma a entidade.

“Deve-se buscar alternativas para sanar as dívidas que não [seja] cortar gastos com a comunicação e a cultura no Estado”, entende Milton Simas Júnior, presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (SINDJORS). Simas também reafirma a pluralidade de opiniões apresentadas na programação da TVE e FM Cultura: “É uma forma democrática de se levar a informação ao público“.

Um grupo de 136 professores de cursos de Comunicação Social e Ciências Sociais de universidades de todo o Estado assinou um manifesto em repúdio à medida de Sartori. O documento sustenta que uma possível extinção das emissoras da Fundação Piratini representaria um “prejuízo inominável à identidade cultural riograndense”.

Na segunda-feira (28), o Conselho Deliberativo da Fundação rejeitou a proposta de extinção da entidade. 13 membros votaram contra, e três a favor. Porém, a decisão do Conselho Deliberativo é apenas consultiva. Formado por representantes da sociedade civil, do governo estadual e funcionários da instituição, o Conselho Deliberativo foi criado em 1995 pelo governador Antonio Britto.

Do Jardim Botânico ao Morro Santa Tereza

Antes de a TVE ser inaugurada, em 1974, um monumental prédio de 10 mil metros quadrados foi construído especialmente para abrigar os estúdios da futura emissora. “É o mesmo prédio que a BBC lançou em Londres, só que em menor escala”, afirma o jornalista e arquivista Yuri Victorino, funcionário da Fundação desde 2002. Victorino afirma que a obra fez parte da ideia de “Brasil grande” que o governo militar impunha à administração pública na época. A construção do prédio não foi terminada no prazo necessário para a instalação dos equipamentos. “Todo o equipamento comprado [para a TVE] ficou 10 anos parado”, afirma Victorino, que estuda e pesquisa a história da Fundação Piratini desde os anos 90. Uma CPI — nunca concluída — acabou sendo instalada para averiguar os prejuízos que a obra gerou ao Executivo. O prédio, localizado no Jardim Botânico, hoje sedia a Fundação Zoobotânica — outro órgão que pode ser extinto por Sartori.

Com isso, a emissora iniciou suas operações em março de 1974, no estúdio de televisão da Famecos, no campus da PUCRS. A TVE, no começo voltada à educação, servia também como laboratório para os alunos de Jornalismo da faculdade. Ao longo do tempo, o enfoque educacional foi deixado de lado e a grade de programação passou a ser generalista. Em junho de 1981, durante a transmissão do telejornal, o apresentador Elói Zorzetto — hoje na RBS TV — pedia insistentemente ao Corpo de Bombeiros que viesse até a Famecos apagar um princípio de incêndio nas instalações da emissora. Apesar de não ter afetado os equipamentos, o incidente no prédio 7 da PUCRS fez com que a TVE deixasse a faculdade rumo ao Morro Santa Tereza, para ocupar as antigas instalações da TV Piratini. “A Fundação ganhou equipamentos que nunca foram usados pela Piratini”, afirma Victorino. Ele comenta também que as emissoras sempre tiveram um papel importante na formação de profissionais para o cenário gaúcho: “A TVE e a FM Cultura sempre foram um celeiro para a iniciativa privada”.

Victorino sustenta que a extinção da Fundação Piratini é um desrespeito com a cultura no Rio Grande do Sul e preocupa-se com o futuro do patrimônio das emissoras públicas caso o seu fim seja decretado, já que a Fundação foi reequipada tecnologicamente durante o governo de Tarso Genro. “Esse baita parque técnico será leiloado?”, questiona.

Trocas de comando são comuns na Fundação a cada mudança de governo. Desde que a TVE iniciou suas atividades, a entidade teve 25 presidentes. A média de permanência no cargo é de 1 ano e 6 meses. Entre 2003 e 2006, durante o mandato do governador Germano Rigotto, cinco presidentes passaram pela Fundação.

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Editorial J Famecos

Laboratório convergente do curso de Jornalismo da Famecos/PUCRS