Pandemia de Covid-19 reconfigura o funcionamento dos ônibus de Porto Alegre

Luisa Monteiro Roman
Editorial J Famecos
9 min readDec 8, 2021

Gestão do município implementa medidas de fiscalização e redução de linhas para conter proliferação do vírus em ônibus e terminais da cidade, mas trabalhadores ainda temem o contágio.

Fonte: Reprodução / Creative Commons

por Felipe Loreto, Luisa Roman e Vitória Matos.

A pandemia de covid-19 trouxe uma nova realidade ao mundo inteiro. A cidade de Porto Alegre precisou remodelar o sistema de mobilidade urbana e implementar medidas que ajudassem a frear o contágio do vírus pelo município. Com a redução de passageiros e linhas de ônibus, a capital se adaptou à pandemia com higienizações e fiscalizações diárias no transporte coletivo. A EPTC (Empresa Pública de Transporte e Circulação) e colaboradores de ônibus da cidade relatam como Porto Alegre lidou com a área durante um ano e meio de pandemia.

“Desde março (de 2020), nenhum ônibus sai da garagem sem passar por uma higienização completa. Equipes especializadas fazem essa limpeza e fiscalizam diariamente a bordo do coletivo e nos terminais” é o que diz Adailton Maia, Coordenador de Transportes da EPTC. De acordo com a organização, atualmente são realizadas três fiscalizações por dia (manhã, tarde e noite) em todas as linhas de ônibus da cidade. A empresa criou um protocolo que inspeciona aspectos de higiene, como a presença de dispensadores de álcool gel (70%), uso de máscaras de passageiros, motoristas e cobradores, janelas laterais e superiores abertas, e a lotação máxima do coletivo conforme decreto municipal. De acordo com Adailton, essa fiscalização é feita em terminais e em trechos específicos ao longo da cidade, para identificar o nível de ocupação dos ônibus enquanto circulam. Conforme declarado pela EPTC, todas as medidas são cumpridas diariamente a fim de prevenir a disseminação do Coronavírus no transporte público de Porto Alegre.

Na prática a situação é diferente, conta o colaborador da empresa de transportes coletivo Nortran, Cléber dos Santos: “Para os rodoviários foi muito complicado, com menos funcionários e linhas o ônibus era sempre lotado. Não tinha contenção de passageiros, não havia contagem, e se a gente não coloca os passageiros para dentro muitos depredam o ônibus depois”. Segundo Cléber, Diretor do Sindicato dos Rodoviários de Porto Alegre e cobrador há 12 anos, no início da pandemia quem teve que realizar as fiscalizações foram membros do próprio Sindicato, por falta de investimento e comprometimento das empresas na higienização do transporte. Para o cobrador houve muitas dificuldades em torno do tema, principalmente no início da pandemia, momento marcado por incertezas e diversos decretos sanitários por parte do Estado. Em entrevista, o Presidente do Sindicato de Rodoviários, Sandro Abad compartilha do mesmo pensamento de seu colega, “o transporte público foi por água abaixo, quando começou a pandemia o prefeito (na época Nelson Marchezan) lidou muito mal com tudo, não passou segurança para os passageiros e nem para nós trabalhadores”, completa.

Apesar da insatisfação dos trabalhadores, a EPTC informou através de pedido com base na Lei de Acesso à Informação (LAI), que desde o início da pandemia até junho deste ano já realizou 72.759 fiscalizações em ônibus de Porto Alegre. Os meses com maiores inspeções foram julho de 2020 (6.953) e março deste ano (6.427), sendo esse último um mês de colapso no sistema de saúde da capital. Já os meses com menores fiscalizações registradas pela empresa foram novembro (2.194) e dezembro (2.472) de 2020.

Fonte: Observa MOB | Prefeitura de Porto Alegre

A partir dessas vistorias, durante o período da pandemia a empresa confirmou que já realizou 932 autuações em ônibus da capital. As autuações são atos de processo e multa aplicados quando são encontrado irregularidades em relação ao transporte, neste caso, a infração das medidas sanitárias impostas por decretos do município. Quando questionada sobre os gastos públicos referentes à fiscalização e desinfecção de ônibus e terminais de Porto Alegre, a EPTC contou não possuir esses dados, alegando a responsabilidade ao órgão DMLU (Departamento Municipal de Limpeza Urbana). O departamento em questão não retornou a nenhum pedido sobre estimativa de gastos durante o desenvolvimento desta reportagem.

Adailton, Coordenador de Transportes da EPTC, comentou em entrevista que a Prefeitura de Porto Alegre foi a responsável pela desinfecção dos terminais da cidade e afirmou apenas o auxílio da EPTC na ação. De acordo com o coordenador foram designadas equipes específicas com maquinário profissional de desinfecção para realizar a tarefa apenas nos terminais centrais da cidade. “Essas desinfecções aconteceram só no período de pico da pandemia, hoje acontece poucas vezes conforme menor exigência do estado. Hoje o que continua é a parte macro da inspeção, como a máscara e álcool gel.” completou o coordenador. Quando questionado, o entrevistado não soube dizer a estimativa de gastos da EPTC em relação ao seu protocolo de fiscalização: “o gasto teria que ser calculado, mas foi principalmente em agentes de fiscalização e deslocamento. O restante dos materiais foi arcado pelas empresas de ônibus”. Buscando por maiores informações sobre a higienização de terminais, Hélio Oliveira, Assessor de Serviços Institucionais na Secretaria de Serviços Urbanos de Porto Alegre e coordenador do processo de desinfecção, afirmou que a Prefeitura não possui controle sobre os gastos utilizados na limpeza de terminais, e explica que o trabalho foi realizado de maneira voluntária pela empresa Unicontrol. O profissional também comentou que o processo ocorreu poucas vezes desde o início da pandemia, apenas em pontos de grande circulação de pessoas como a rodoviária, Terminal Parobé, Viaduto da Conceição e Estação Trensurb.

De acordo com pesquisa realizada pela Fiocruz Pernambuco em junho deste ano, terminais de ônibus estão entre os locais com maior risco de contaminação ao Coronavírus. A análise feita a partir da coleta de 400 amostras de superfícies bastante tocadas constatou que 48,7% das amostras possuem o vírus. A pesquisa foi realizada apenas em locais de grande fluxo e alta concentração de pessoas, como terminais de ônibus, unidades de saúde, parques e mercados públicos. “Em algum momento ele (vírus) esteve ativo naquele local, o que demonstra serem ambientes onde há mais gente infectada circulando”, explicou o coordenador do estudo, Lindomar Pena.

Em conversa com a equipe de reportagem, o Coordenador de Transportes da EPTC, Adailton, apontou ainda que a pandemia contribuiu para diminuição no número de pessoas que utilizam ônibus para se locomover dentro da cidade. Conforme dados do Painel de Transparência Covid-19, em março de 2020, no período ainda pré-pandemia, a cidade chegou a registrar uma média diária de 808.082 passageiros transportados em dias úteis. Em abril do mesmo ano a média diária caiu para 227.504, uma redução de 72% do número de passageiros em apenas um mês. Ao longo de 2020, a maior média registrada foi em novembro, com 386.174 passageiros transportados em dias úteis. Ao decorrer da pandemia a média diária apresentou queda até o mês de março deste ano (291.339). Foi apenas a partir de abril de 2021 que os números voltaram a crescer, sendo a maior média diária no mês de novembro com 508.965 passageiros transportados. Outro fator para a queda no número de passageiros é a redução da capacidade de usuários de ônibus. Conforme decretos do município a quantidade de pessoas de pé dentro dos veículos durante a pandemia foi reduzida, a fim de evitar aglomerações. De acordo com o Coordenador, com a queda de casos e aumento da flexibilização, hoje são permitidos 30 passageiros em pé, enquanto no período pré-pandemia eram permitidas até 45 pessoas na mesma condição.

Essa baixa na procura pelo transporte público transformou a operação do sistema de mobilidade urbana do município. Cerca de 39% das linhas que operam em dias úteis foram reduzidas do início da pandemia até setembro deste ano. Em relação às linhas dos sábados e domingos/feriados, houve uma redução de 26% e 33%, respectivamente. Segundo a prefeitura de Porto Alegre, no momento não há nenhuma linha de ônibus extinta, mas desativada de maneira excepcional devido à pandemia. Das 371 linhas de ônibus existentes no período pré-pandemia, hoje funcionam apenas 228, totalizando uma redução de 143 linhas. Unificamos muitos atendimentos para adequar a oferta a nova realidade de demanda. A cobertura atual compreende 98% do serviço prestado no período pré-pandemia, sendo que os 2% remanescentes referem-se a linhas alimentadoras que ainda estão desativadas e ao serviço da madrugada que ainda não está funcionando”, explicou a gestão. Entretanto, na última sexta-feira (26 de novembro), devido à retomada gradual das atividades noturnas na cidade, a Secretaria de Mobilidade Urbana anunciou a criação de três linhas de ônibus que passam a atuar durante a madrugada.

Com grande exposição ao vírus, motoristas e cobradores passaram a se sentir inseguros por ter que trabalhar em um ambiente onde o risco de contaminação é maior. Em entrevista, o cobrador Cléber dos Santos afirma que diversos funcionários deixaram os seus empregos no ano de 2020 por medo de contrair o vírus durante a jornada de trabalho. “O pessoal da saúde já sabe o que tá vindo pela frente e eles têm maneiras de se proteger, a gente não, no máximo a máscara e álcool em gel. A gente trabalha na linha de frente, mas com uma venda nos olhos, complementa o trabalhador. O risco de contaminação não foi o único medo dos trabalhadores no período mais crítico da pandemia. O presidente do Sindicato dos Rodoviários de Porto Alegre, Sandro Abad, aponta a insegurança dos colaboradores em relação aos seus empregos: “o psicológico do trabalhador foi atingido em cheio, a gente não sabia se ia receber salário ou ser posto pra rua”. Segundo os próprios funcionários, as empresas de ônibus da capital prestaram um auxílio somente nos primeiros meses da pandemia, afastando os colaboradores com comorbidades e os mais velhos, seguindo os decretos estaduais. Além disso, era responsabilidade das empresas de transporte disponibilizar dispensadores de álcool gel (70%) e toalhas de papel nos terminais.

A demissão em massa foi mais um fator que desestabilizou o cenário do transporte público na capital. Com menor número de linhas e demanda por ônibus, os funcionários entrevistados relatam que empresas chegaram a demitir centenas de profissionais durante a pandemia. Aqueles que resistiram ao período de crise trabalharam sob redução de jornada de trabalho e contam que houve abuso por parte das empresas, assim como falta de pagamento. “A gente fazia hora extra e não ganhava nada por isso, a redução da jornada de trabalho funcionou só no papel, mas não na prática.” compartilhou Cléber, funcionário da empresa Nortran. O mesmo entrevistado ainda conta que no início da pandemia os colaboradores da empresa não receberam a medida provisória do governo federal. Essa medida instituía o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, em que o governo paga um complemento salarial para compensar a jornada de trabalho reduzida. “Durante abril e maio eles (a Nortran) não enviaram o formulário da medida, o pessoal assinou e era para ser mandado para o governo, mas não foi enviado e não recebemos o pagamento. Só recebíamos a parte da empresa e não do governo, ou seja, só a metade do salário” esclarece o cobrador. Em geral, nos meses iniciais da pandemia, trabalhadores rodoviários afastados por conta de comorbidades tinham direito apenas a 30% do salário, além da medida provisória. A escala de trabalho de motoristas e cobradores funcionou com intervalos de quinze dias de trabalho e quinze de afastamento.

A respeito da vacinação de trabalhadores, o presidente do Sindicato dos Rodoviários do município afirmou que todas as empresas exigem a apresentação da carteirinha de vacinação dos trabalhadores. Hoje, a primeira dose do imunizante é pré-requisito para motoristas e cobradores voltarem a atuar e caso o profissional se negue, a empresa pode recorrer a uma demissão por justa causa. O presidente Sandro Abad comentou que os próprios trabalhadores ficaram com medo de receber colegas que não tomaram nenhuma dose da vacina. Quando questionada sobre medidas de vacinação, a EPTC declarou que não obriga os trabalhadores a tomar as duas doses do imunizante.Foi estabelecido para ser tomado a primeira e segunda dose, mas aquelas pessoas que optaram por não tomarem tem que preencher um formulário de recusa’’ , esclareceu o Coordenador de Transportes. A empresa também afirmou que não fiscaliza a vacinação dos motoristas e cobradores de ônibus: “não houve essa abordagem. O decreto só engloba os itens de higienização, não vacinação”. Adailton ressaltou ainda o compromisso de cada empresa de trabalhar dentro de suas regulamentações para o cumprimento de normas sanitárias.

Questionado sobre os casos de Covid-19 entre os trabalhadores de ônibus, o presidente do Sindicato de Rodoviários de Porto Alegre não soube repassar o número exato de infectados pelo vírus. Em resposta ao pedido da LAI, a EPTC também declarou não possuir esses dados, alegando falta de rastreamento de casos de Covid-19 por parte de seus setores responsáveis, neste caso, as empresas de transporte coletivo. O órgão sugeriu contato com a Associação de Transportes de Porto Alegre, que não respondeu ao contato da reportagem.

Apesar das higienizações dos ônibus ocorrerem diariamente três vezes ao dia, muitos colaboradores deixaram seu emprego. Durante a entrevista com o cobrador Cléber dos Santos, o profissional relatou a insegurança no ambiente de trabalho. “Além da demissão em massa, teve gente que pediu para ir embora por medo de ir trabalhar”, constatou. Para o presidente do Sindicato dos Rodoviários, Sandro Abad, o transporte público de Porto Alegre ainda traz insegurança para os trabalhadores e seus familiares: “Vários trabalhadores sentem medo pela sua família também, mas não sei quando esse medo vai acabar porque o trabalho rodoviário tem muita exposição”.

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