Céu Azul

Camila Yallouz
Sementes de Educação
6 min readApr 25, 2018

A primeira vez que toquei a campainha do Céu Azul foi em 2015. Me lembro com clareza da sensação de passar pelo portãozinho azul e ver as crianças correndo ao redor da casa num quintal com árvores frutíferas ao lado de um galinheiro, coelhos e lugares para escalar. A sensação foi de respirar aliviada por aquele lugar existir.

Com o tempo, fui entendendo que a minha sensação de ar fresco até tinha a ver com as crianças correndo, o quintal, a casa, os coelhos e as galinhas. Mas na verdade aquela cena era só um desdobramento da verdadeira essência que eu iria encontrar debaixo daquele céu, do outro lado do portãozinho azul. Nunca que eu iria imaginar quantas vezes eu viria me fazer e refazer bebendo daquela fonte e debaixo daquele Céu Azul.

Estava no primeiro ano da minha formação Montessori e como sempre tive espírito de pássaro, quis fazer estágio em várias escolas diferentes. Foi numa dessas revoadas que descobri uma escola Montessoriana na cidade onde nasci. Nasci sob um céu tipicamente cinzento e chuvoso como uma boa petropolitana e já tinha saído desse ninho há muitos anos. Voltei foi pra viver um novo céu e um novo olhar, que é sempre bom de ser refeito sobre de onde a gente veio e pra onde a gente vai.

Nesse dia (re)conheci aquela que me contaria a minha própria história em forma de poema já escrito, alguns anos depois. Tati era o ninho em pessoa e carregava um pequeno pássaro no ventre. Ela me abriu a escola como quem abre a própria casa — que viria a me abrir também no futuro- e contou a história de quando aquelas salas miúdas, cheias de paredes e carteiras se transformariam em puro espaço de vida de criança. Me lembro de entrar na sala vazia -porque as crianças estavam do lado de fora- enquanto ela ia me apontando as paredes que não existiam mais. As salas não tinham as carteiras originais e sim estantes repletas dos materiais que eu ainda desvendava na minha formação. Me lembro de percorrer as outras salas guiada pelo encantamento que a Tati era capaz de narrar numa das formas mais leves e vivas que eu já vi alguém falar sobre educação.

Perguntei se poderia vir fazer estágio de observação como quem pergunta se pode voltar pra casa e ela disse que sim. Mas sempre dizendo que eles ainda estavam aprendendo, que a metodologia ainda estava em processo de ser aplicada e que ainda tinham muito o que aprender. Hoje eu sei que, lá no fundo, é daí que a gente se conhece. Porque a Tati nunca vai achar que já aprendeu tudo e nem eu: "Se eu achar que já cheguei onde tinha que chegar, é porque estou no lugar errado."

Eu ficava sentada nos cantinhos das salas, como me foi ensinado na formação, observando, encantada, para o terror das professoras que também diziam ainda estar aprendendo, desconfortáveis de estarem sendo olhadas. Mas era um desconforto tão "em casa" que, pra falar a verdade, eu nem me lembro quando foi que comecei a compartilhar com elas o que tinha aprendido na formação. Quando me vi já estava no meio das crianças, apresentando materiais e sendo apresentada para o universo profundo que é estar realmente presente com as crianças. Estar com elas tem, em Montessori, uma sabedoria de não interferir nem demais e nem de menos que é só estando com elas mesmo que se aprende.

É só recebendo muito "não" como resposta que você aprende a convidar uma criança para conhecer algo novo sabendo o que, para quem, como, quando, e onde o está oferecendo e não receber um "sim" como resposta, mas um olhar que te segue em silêncio para não perder nem uma parte do que está por vir. É sabendo que o maestro não é a música e está ali como um ponto de encontro na harmonia dos diferentes instrumentos que fazem a música com diferentes sons e em diferentes compassos.

As professoras queridas que conheci ali enquanto eu me conhecia em mim mesma e na educação diziam que eu ajudava muito, e provavelmente não sabem até hoje o quanto me ajudaram por estarem sempre abertas e me permitirem todas essas descobertas. Nos encontramos algumas vezes sem as crianças, em sábados de manhã quando eu compartilhava sobre os materiais, sobre a preparação espiritual da professora, sobre vida prática, sobre a vida e sobre a prática que Montessori faz transformar na gente.

Fiquei um ano por lá parte da semana enquanto me dividia entre uma cidade e outra, sempre voando e sempre com horários e funções um pouco fora do usual. Tati dizia que acreditava que cada um deveria ser visto e considerado à sua maneira e sempre conseguiu colocar isso em prática também na equipe. Assim como eu olhava para as crianças entendendo que cada uma tinha sua própria forma de ver e estar no mundo, Tati conseguia entender a minha forma de ver e estar também. Tati sabia reger aquela orquestra e eu me sentia feliz de compartilhar da minha música ali.

No ano seguinte, fiz uma viagem mais longa e passei um tempo sem pousar debaixo do meu Céu Azul. Viajei pelo sudeste do Brasil conhecendo iniciativas inovadoras de educação no campo, na cidade, públicas, privadas, montessorianas, waldorf, escola da ponte, outros que não entram em nenhuma classificação que eu conheça e outros que misturam todas as classificações que eu conheço. Quando eu contei por onde tinha ido, todas quiseram ouvir os novos cantos que eu trazia de outros cantos. Sempre abertas. Sempre en-cantadas.

Depois disso entendi que minha trajetória ali não tinha início, nem fim, nem forma, porque a gente se trans-forma mas sempre sabe o caminho de casa.

No início desse ano de 2018, eu estava de volta à minha cidade natal e ficamos ambas felizes de estarmos próximas. Tati me chamou para ajudar em uma reunião de abertura e me convidou a passar os dois primeiros meses do ano na Agrupada de 3 a 6 anos ajudando na adaptação de Carol - que via Montessori pela primeira vez, mas sabia outros tantos cantos que eu amei cantar junto.

Tati já sabia bem como lidar comigo e sabia que mais de dois meses seria tempo demais para um pássaro que voa nas estações. "Depois a gente vê mais dois meses" — ela dizia e ria de mim, enquanto me perguntava se um dia eu achava que ia parar em algum lugar. Depois ficava séria e me tranquilizava dizendo que sabia que eu era como o pássaro de Rubem Alves, que explicou em forma de poema pro seu filho pequeno porque viajava tanto e passava tempos longe.

Era a história de um pássaro lindo, de penas coloridas, que cantava músicas encantadoras. Um dia, um menino encontrou o pássaro e achou ele tão lindo que o prendeu em uma gaiola para poder ouvi-lo cantar todos os dias. Então, as penas do pássaro que eram coloridas começaram a ficar cinzentas e os cantos viraram rouquidão. Percebendo isso, o menino decidiu soltar o pássaro, que voou para outros cantos. O pássaro voava pra longe e passava tempos sumido, mas sempre voltava pra cantar pro menino as novas músicas que tinha aprendido pelos lugares que passava.

Depois dos dois meses que passamos juntas ela disse "não dá pra ter Camila todos os dias da semana, depois é muito difícil deixá-la ir."

Eu morro de saudades, mas sigo voando.

Viajo porque preciso e volto com novos cantos.

Volto porque eu sempre volto.

Porque sei o caminho de casa… É só seguir o Céu Azul.

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