Cena 4

O Caminho do Sertão

Alex Bretas
Educação Fora da Caixa
19 min readJul 16, 2015

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Kakasana. Fonte: entre levezas e desapegos.

O kakasana exige coragem. Praticando yoga há algum tempo, entre constâncias e ausências, nunca havia conseguido permanecer corretamente nessa posição. Até que, quando menos esperava, consegui encaixar meus joelhos no topo dos braços. Doeu na hora e doeu por mais alguns dias. Saí da aula feliz.

Nesse dia glorioso, eu já sabia que havia sido selecionado para participar do Caminho do Sertão. O que eu não dava conta de responder com convicção, no entanto, era se de fato eu iria.

Fonte: O Caminho do Sertão.

Faltava uma semana para a viagem. 160 km de pé por entre alguns dos cenários do Grande Sertão de Guimarães Rosa. Faltando quatro dias, comecei a me sentir resfriado. E resfriado é danado, porque não sabe se é gripe ou nada. Faltando três dias, à noite, fiquei com vontade de chorar, mas não consegui. Pensava: “está tudo tão bom, porque me meter numa coisa que desconfio seriamente que será difícil e dolorida?”. Faltando dois dias, conversei muito com a Ana, minha companheira, mas depois precisei escrever. Preenchi todo um arquivo do bloco de notas no computador com listas de argumentos. Estava convicto: “não vou”.

(Um parênteses para contar como a Ana se liga a essa história. A primeira vez que soube da existência do Caminho foi por meio da fala empolgadíssima dela. Fui um dos primeiros para os quais ela contou, já convidando para fazer a inscrição e ir caminhar com ela. Havia uma seleção. Aos 45 do segundo tempo, resolvi me inscrever. Não era apenas para acompanhá-la, eu realmente tive vontade, curiosidade. Eu fui selecionado, mas ela não. Devastados, decidimos que eu deveria ir, mas mesmo assim eu não estava seguro…)

Faltando menos de 24 horas para o início da viagem, fui de manhã fazer um exame de sangue de rotina. Na longa fila, tive tempo de refletir sobre a decisão de ir ou não ir. Acreditei: “eu vou”. Ao tirar sangue, foi a primeira vez na vida que desmaiei. Acordei no banco da enfermaria, mas fiquei absolutamente sem lugar: enjoo, dor de cabeça, fraqueza, tontura…

Recuperei, mas me senti molenga durante o restante do dia. Trabalhei muito, até a noite, tentando adiantar as coisas para caso eu escolhesse viajar. Novamente conversei com a Ana. Discutimos. Contudo, de súbito a clareza se fez, ainda escorregadia. Há poucas horas do meu voo de ida, comprei a passagem de volta. Relaxei um pouco e, de madrugada, fui arrumar as malas com a ajuda da Ana. O que deu pra dormir foi um cochilo, e logo eu estava de pé, caminhando para o táxi, depois para o avião, depois para a primeira rodoviária, então a segunda e, quando menos esperava, havia chegado no sertão.

Fonte: Anne Rocha.

Ao longo da semana anterior ao Caminho, o que ocorreu foi que resgatei um padrão biográfico que me acompanhara desde a infância. O padrão ameaçou me circunscrever nas mesmas reações que eu já havia tido frente a situações que me tiram da zona de conforto: ansiedade — medo — não ir ou não persistir. A primeira vez que me recordo disso ter acontecido foi ainda criança, quando parei de fazer aula de capoeira antes de ser batizado — isto é, receber minha primeira corda. Fui à cerimônia de graduação e presenciei todos os meus colegas sendo reconhecidos. Chorei à beça.

A segunda vez aconteceu quando a escola organizou uma excursão para a Serra do Caraça. Eu já estava dentro do ônibus, com tudo arrumado, mas minutos antes do início da viagem saí abruptamente dali. Nervoso e ofegante, disse aos meus pais que não dava conta de viajar. Voltamos pra casa, e o primeiro lugar que me enfiei foi no banheiro.

Mais recentemente, lembro de algumas outras situações semelhantes. Nos dias que antecederam o Caminho a dúvida era: faz sentido deixar esse padrão agir de novo? Eu já havia estudado um pouco sobre os padrões biográficos segundo a antroposofia, e claramente essa repetição se afigurava como um. Minha reação típica era uma defesa aceitável ou um medo que merecia ser transformado? Mais do que isso: o que me esperava “do lado de lá”? Testando um agir diferente daquele que havia me acostumado, o que meus olhos veriam de novo? Essa curiosidade de chegar à outra margem foi o que me impulsionou. Além da missão de trazer um pedacinho do sertão pra Ana.

Fui pro Caminho. Lá, um dos outros caminhantes me contou sobre o sábio índio Don Juan, que tinha um jeito simples (não exatamente fácil) de tomar decisões importantes. Don Juan, conforme nos apresenta Carlos Castañeda, assim ponderou:

“Esse caminho tem um coração? Se tiver, o caminho é bom; se não tiver, não presta. Ambos os caminhos não conduzem a parte alguma; mas um tem coração e o outro não. Um torna a viagem alegre; enquanto você o seguir, será um com ele. O outro o fará maldizer sua vida. Um o torna forte; o outro o enfraquece.”

Toda vez que chegávamos a uma encruzilhada (e foram várias) eu pensava nisso. Assim também foi meu processo de escolher por caminhar: cheio de reviravoltas. Coração é agir com coragem. Isso é tudo o que a vida quer da gente, me ensinou Rosa.

Entendendo o Caminho e o sertão

Acabou que eu fui. O Caminho do Sertão é uma jornada sociocultural e ambiental, de inspiração literária, que em 2015 convidou 50 caminhantes a atravessarem parte do trecho percorrido por Riobaldo em “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, rumo ao Liso do Sussuarão. Já em sua segunda edição, foram 160 km pelos vales dos rios Urucuia e Carinhanha, feitos a pé durante sete dias. Quem propõe e organiza o Caminho é o Instituto Rosa e Sertão, junto da Agência de Desenvolvimento Integrado e Sustentável do Vale do Rio Urucuia e do Centro de Referência em Tecnologias Sociais do Sertão — Cresertão — , com o apoio de prefeituras locais e outras organizações parceiras. Há a possibilidade de a iniciativa firmar-se futuramente como uma rota perene de turismo de base comunitária, assim como diversos outros caminhos já existentes no Brasil e mundo afora.

Por entre mato, gado, cantos, ribeirões, veredas, causos, sabedorias e muita areia, o Caminho desafia quem o trilha a prestar mais atenção ao que tem ocorrido no sertão. A persistente beleza convive infelizmente com as alarmâncias.

“A água antes dava pra mergulhar, agora se passar lá num tampa nem a sandália do pé”. A preocupação de Seu Aleixo, morador do Barranco do Carinhanha, aponta para um fenômeno que tem se intensificado rapidamente no território sertanejo: a desertificação. Durante a caminhada, passamos por vários pontos em que antes existiam veredas — o oásis sagrado do sertão — , mas que agora estão completamente secas. Nesses lugares, dos buritis só sobraram os tocos.

Vereda morta. Fonte: Anne Rocha.

A desertificação e outros desequilíbrios ambientais estão associados à expansão desenfreada do agronegócio na região. Vimos plantações de soja a perder de vista e ficamos sabendo de aviões que despejam agrotóxicos em áreas vizinhas a cidades. Avistamos desertos verdes — florestas de eucaliptos — e rebanhos imensos (um deles quase nos pisoteou!). Não muito longe de onde estávamos, Unaí orgulha-se de ser “a cidade do agronegócio” e de ostentar o sexto maior PIB agropecuário nacional segundo o IBGE (dados de 2011). O que está por trás desse manejo massificado da terra é uma visão desenvolvimentista, justamente o oposto do que a obra de Rosa procura resgatar.

Segundo Gustavo Meyer, as mensagens de desenvolvimento propagadas pelos grupos hegemônicos, com seus símbolos de poder no meio rural — a colheitadeira, por exemplo — entram em embate com a visão que busca reconhecer a sabedoria cultural dos povos sertanejos. Essa dualidade é a mesma que se operou em 1956, ano que marca o início da construção de Brasília, de um lado, e o lançamento de “Grande Sertão: Veredas”, de outro. Juscelino Kubitschek, ícone do desenvolvimentismo brasileiro, representava o discurso da “ocupação do vazio”; Guimarães Rosa buscava enaltecer a oralidade, a riqueza cultural e a simplicidade das comunidades do sertão. Deste lado, não há vazio algum.

Entretanto, houve um caso em que a obra de Rosa foi utilizada para criar vazios. A criação do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, último destino da caminhada, ocorreu às custas da expulsão dos moradores que historicamente povoavam a região. Mundinho, ex-prefeito de Chapada Gaúcha, relembrou os dizeres de um habitante do território que virou parque:

“Só foi possível criar o parque poque nós vivemos nele durante séculos e o preservamos. Agora isso está sendo usado contra nós”. Mais uma vez, a lógica predominante abusa de seu poder e desestabiliza as culturas tradicionais. Por que é importante preservar essa diversidade de manifestações humanas? Paul Feyerabend acreditava que a convivência pacífica de diferentes modos de vida é essencial para o desenvolvimento da humanidade. Frente a um novo desafio coletivo, quanto mais saberes e estratégias estiverem disponíveis, melhor. Mais ao fim da vida, Paul também passou a reconhecer o valor das trocas interculturais. O que é preciso atentar nesse quesito é a forma com que se dão essas trocas: elas dão voz e beneficiam a todos os envolvidos? Agridem um dos lados? Contribuem para celebrar ou destruir?

Junto com as alarmâncias ambiental e cultural, outra dimensão que o Caminho ajuda a aguçar o olhar é a política. Dentro dela, a questão da distribuição de terras no território do sertão é a que mais preocupa. Se os Vales do Urucuia e do Carinhanha viraram alvo dos investidores do agronegócio, esse movimento ajudou a deflagrar outro, de proporções semelhantes, mas no sentido oposto: as ocupações de terra. Ouvimos de uma liderança dos pequenos agricultores um relato emocionante a respeito de uma grande ocupação realizada na fazenda de um político. Ocupamos toda a sala da casa de Dona Geralda, na Fazenda Menino, para ouvir as histórias de quando ela foi perseguida e torturada pela ditadura militar por supostamente ser “comunista”, uma palavra que ela sequer arriscava um significado.

Essas três dimensões — ambiental, cultural e política — conectadas conformam o mote do Caminho do Sertão: “da luta pela terra à luta pela Terra”. Ao fazer o Caminho, essa frase preencheu-se de sentido pra mim. Acredito que ela representa uma evolução crucial para os movimentos sociais agrários brasileiros, visto que incorpora de vez a “pegada” ambiental à pauta dos sem-terra. Ao fazer a junção de pleitos distintos, o Caminho revigora todos eles e os apresenta, num novo patamar, aos caminhantes. Quem se dispõe à travessia tem acesso a um olhar contra-hegemônico unificado: o próprio sertão. Somos invadidos pelo sertão primeiro pelo caminhar, depois pelo dialogar, e só depois é que vamos digerindo mentalmente tudo o que presenciamos. O Caminho foi pensado assim de propósito: trata-se de uma itinerário de aprendizagem que se faz muito mais pela via da experiência do que pela instrução.

Ao refletir sobre todos esses aspectos, os caminhantes são instigados a olhar mais atentamente para si mesmos. Neste sentido, existe no Caminho uma quarta dimensão filosófico-existencial que coloca em xeque nossa visão antropocêntrica de mundo. O pressuposto dessa crença é que nós humanos somos seres superiores: estamos acima de todas as coisas somente porque adquirimos consciência reflexa e, com ela, povoamos o planeta. De certa forma, somos distinguidos dos demais seres, inferiores. Estamos distanciados do ser-tão.

Mas, “toda vez que eu dou um passo, o mundo sai do lugar”. A cada passo, a cada encontro com as comunidades sertanejas, a cada ciranda, a cada banho na vereda, nossa forma de ver o mundo saía do lugar. Ao nos sentirmos mais próximos das pessoas e parte da paisagem, acolhíamos o sertão de fora e o sertão de dentro da gente. Sertão é brincadeira semântica: é Ser Tão, é Ser Tao, é Vir a Ser Tão. A etimologia da palavra remete à terra distanciada, oculta nos interiores além-mar, que carece de alteridade. Surpreendentemente, viver o sertão é uma experiência muito hospitaleira e generosa, e é justo isso que o Caminho busca proporcionar. Lá, naquele lugar que antes não víamos, eles nos viram e nos reconheceram (e ainda fizeram comidas deliciosas pra nós!) Para o povo geraizeiro, comer na casa de alguém e conversar na cozinha já é causo de intimidade.

Fonte: Anne Rocha.

Nas comunidades que visitamos, parecia não haver separação entre as pessoas e o sertão. Havia integração e com-vivência com o território. Ao sentir as dores da caminhada, meu ego foi se diluindo, como se tivesse sido jogado no Ribeirão de Areia. Ao perceber a amorosidade dos que encontrávamos pelo caminho, o ego foi dando lugar ao eco. Talvez seja isso que o Otto Scharmer queira dizer quando fala da transição de uma consciência egossistêmica para uma consciência ecossistêmica. Na Teoria U, um passo importante é vivenciar as margens do sistema, aqueles lugares cruciais para entendermos determinada questão em profundidade. Descobri que o sertão é uma das principais margens para se compreender o Brasil, e o Caminho é seu acesso privilegiado.

Sete dias saindo do lugar

Para fazer entender o sertão do povo baiangoneiro, o Caminho propõe “pousarmos” em sete destinos, vários deles comunidades tradicionais. Senti que minha viagem ao noroeste de Minas começou mesmo quando desembarquei em Unaí, cidade próxima à Brasília na qual precisei pegar outro ônibus para chegar à Sagarana, local de início da caminhada. Em Unaí conheci meu primeiro companheiro caminhante, o Ricardo, de São Paulo. Almoçamos juntos e ele me contou sobre seu trabalho no teatro com o “Grande Sertão: Veredas”. Algo que ele disse me marcou: “toda a minha vida ajuda a dar vida aos meus personagens. Morar na periferia, jogar futebol, isso influencia no Riobaldo que eu faço”. Ricardo é auto e alterdidata em teatro. Fiquei pensando como todo trabalho (e toda experiência educativa) deveria abrir espaço para cada um poder “colocar na mesa” suas histórias e singularidades.

Entramos no ônibus para Sagarana. Sentíamos a descida íngreme em direção ao Vale do Urucuia (às vezes também sentíamos o cheiro de borracha queimada do freio do ônibus). A paisagem do cerrado a cada quilômetro ficava mais interessante. Chegados em Sagarana, a árdua tarefa de montar as barracas somente com a luz das lanternas. Fizemos os primeiros contatos com os moradores, a organização e entre nós caminhantes. Após o jantar, festejamos muito no bar da Maria, o “point” de Sagarana. Teve cachaça, conhaque, conversa animada, forró e o sanfoneiro mais animado das Gerais, o Denílson. Fui tomado pela alegria do sertão!

No dia seguinte, sábado, participamos de uma roda de apresentações na geodésica do Cresertão. Foram horas deliciosas e necessárias para que todos se re-conhecessem. Todos se apresentaram no centro do círculo, como iguais. Num mar de falas sinceras e emocionantes, fiquei com a pérola da Esther na cabeça: “me outrar para encontrar o meu olhar”. Domingo, primeiro dia de caminhada, fomos de Sagarana à comunidade de Morrinhos. Logo no início já comecei a caminhar lado a lado com a Anne, carioca de mão cheia que se tornou minha parceira durante todo o Caminho. Foram 31 km e minha chegada em Morrinhos foi sofrida. Não consegui interagir com os moradores o tanto que gostaria por conta de bolhas no pé e dores fortes no joelho. No entanto, Seu Ademílson, morador do pequeno vilarejo, ofereceu sua casa para os caminhantes tomarem banho e lá eu pude conversar um pouco com ele. Sua paixão por Morrinhos ficou evidente.

Segunda-feira. Saímos de Morrinhos às seis da manhã (acordávamos quase sempre às quatro e meia) rumo à Vila Bom Jesus. 34 km que viraram 38 por causa de uma mudança imprevista no trajeto. Logo no início, um nascer do sol belíssimo, mas que contrastava com a paisagem terrestre tomada pelo monocultivo de soja. Seu Ademílson disse que a vinda do agronegócio gerou empregos na comunidade — todo ponto de vista é a vista de um ponto, não é?

Fonte: Diego Zanotti.

O segundo dia foi o mais puxado de todo o percurso, e eu acabei não completando o trecho. Sempre que alguém não tinha condições de terminar a caminhada do dia, uma kombi ficava disponível para nos levar até o destino mais próximo. Ela era pilotada pelo Adão, um menino prodígio de 21 anos que dirigia como ninguém e se tornou o ídolo da caminhada.

Ao pousarmos em Vila Bom Jesus, tratei logo de armar minha barraca e ficar quieto dentro dela. Não estava exausto, mas sentia muita dor nos pés. Tive vontade de chorar, mas não consegui. A crise — compartilhada por alguns outros colegas — me levou a cochilar, e quando acordei ouvi um outro caminhante, o Rogério, dizendo que sabia como tratar as bolhas. Havia um pé de limão no lugar em que estávamos, e ele pegava os espinhos do limoeiro para secar as erupções. Depois passava arnica e fechava com gaze e esparadrapo, artigo de luxo no sertão. Parece bobagem, mas esse momento foi a minha virada de chave: eu poderia ficar dentro da barraca fingindo de morto e caçando planos para ir embora mais cedo, ou eu poderia pedir ajuda ao Rogério. Resolvi pedir ajuda, coisa não muito fácil pra mim. Enfaixei o peito dos pés e renovei minha confiança na jornada.

Fonte: Anne Rocha.

Dormimos. Na terça, um dia comemorativo: eram “só” 14 km! E com direito a cachoeira no meio do percurso. Foi uma festança só, e teve roda de samba e ciranda. Tomei banho na cachoeira mesmo com os pés estourados. A sensação era de redenção e de força interior, por ter vivido pra ver tamanha beleza. Chegamos ainda de dia na Fazenda Menino, um reduto de histórias tristes e felizes das Gerais. Ouvimos algumas delas e tive a certeza de que as histórias são as nossas ferramentas mais ancestrais de aprendizagem. Precisei refazer meus curativos eu mesmo, dado que a fila para os “podólogos do sertão” (alguns caminhantes que eram requisitados por seus conhecimentos informais de enfermaria, e também por terem muito esparadrapo) estava imensa.

Quarta-feira, lembro-me de terminar o percurso de 25 km da Fazenda Menino até o Córrego Garimpeiro feliz da vida. Caminhei sozinho na parte final do trecho e me libertei do tênis, ficando apenas de meias — alguns locais eram de areia funda e o tênis dificultava a caminhada.

Caminhando de meias no sertão. Fonte: Anne Rocha.

Andar sozinho foi uma experiência meditativa, sem muitos pensamentos e profundamente ritmada. Pude respirar o agudo silêncio do sertão. Ao chegar no Córrego Garimpeiro, um lugar rústico e sem luz, tomei banho de vereda e fiz cocô à noite no mato atrás de um bambuzal. Caguei de medo!

No dia seguinte, quinta, passamos por vários riachos e veredas no trajeto do Garimpeiro à comunidade do Ribeirão da Areia. Cada uma mais bonita que a outra, mas meus pés sofreram sendo molhados tantas vezes (a maior dica que eu havia recebido antes de viajar era não molhar os pés durante a caminhada, por conta das bolhas). Subimos num morro e vimos todo o esplendor do sertão, altivo. No último trecho do dia demos falta de alguns caminhantes, e descobrimos que haviam ficado perdidos no caminho! Ficamos preocupados… Sol se pondo, já em Ribeirão da Areia, avistamos novamente nossos amigos, resgatados pelos guias.

Sexta-feira, era chegado o percurso inédito que muitos esperavam: o Vão dos Buracos. O trecho, de trilhas estreitas, subidas difíceis e chão amarelo era comentado por muitos de nós desde o início do Caminho. Nesse dia, não tive condições de caminhar. Pulei na kombi do Adão e cheguei cedo ao último pouso, na cidade de Chapada Gaúcha. Aproveitei para conhecer a cidade enquanto esperava os demais caminhantes chegarem. A chegada aconteceu já era noite, e fomos recepcionados em grande estilo no XIV Encontro dos Povos do Grande Sertão Veredas, um grande evento voltado para celebrar as culturas tradicionais da região. Emocionados, fizemos uma grande roda e nos abraçamos todos. Fomos recebidos com música e sob os olhares curiosos dos moradores da cidade.

No sábado, último dia do Caminho, fomos de Chapada Gaúcha até o Parque Nacional Grande Sertão Veredas. Caminhada leve, 10 km, já em clima de despedida. À noite, fizemos uma roda de conversa que rendeu depoimentos fascinantes, e todos ficaram livres para celebrar o fim da travessia no Encontro dos Povos. Debilitado, só dei conta de comer alguma coisa e fui dormir. Domingo era hora de viajar de volta pra casa, e eu e mais um grupo de caminhantes fomos a Arinos, cidade próxima a Chapada Gaúcha, para podermos embarcar na rodoviária de lá. Ao chegar, o Fidell, um dos guias do Caminho, convidou-nos para passar o dia em sua casa, já que nossos ônibus só sairiam à noite. Comemos, bebemos e conversamos, sem ver o dia passar. Despedimo-nos todos: havia chegado o momento de retornar.

Histórias e reflexões do caminhar

Os aprendizados que uma experiência como o Caminho do Sertão podem despertar vão se acumulando dia após dia após o retorno pra casa. Uma figura importante para que a travessia tenha feito sentido pra mim foi o Almir Paraca, uma liderança importante do sertão mineiro e uma espécie de embaixador do Caminho. Paraca foi prefeito de Paracatu e deputado estadual por Minas Gerais, mas se mostrou humildemente a nós caminhantes como um exímio contador de histórias. Quase um guru do sertão. Ele perdeu um olho aos seis anos e, por ser taxado como “diferente”, começou desde cedo a se interessar pela questão da alteridade.

Duas histórias contadas pelo Paraca me marcaram profundamente. A primeira diz sobre um andarilho que se perde no mato à noite e acaba encontrando um homem com uma lanterna. Animado, caminha rápido até ele e o pergunta sobre o melhor trajeto até a casa mais próxima. Ao se aproximar, o andarilho percebe que o homem é cego. “Mas, porque o senhor carrega uma lanterna se não consegue enxergar?”. “Para que você pudesse me encontrar. Juntos agora descobriremos o caminho”. Essa história revela o poder de se “fazer encontrar”, isto é, a importância de se mostrar ao outro e de saber pedir ajuda. Isso foi o que eu passei no Caminho, por exemplo, no momento crucial em que solicitei auxílio ao Rogério. Preciso trabalhar minha dificuldade em pedir ajuda às pessoas.

A segunda história é uma metáfora que aproveita o relevo acidentado do Vão dos Buracos, o penúltimo trecho da caminhada. Percorrer o Vão é, como Paraca disse, um “processo ascensional” — uma subida difícil que, como toda subida, separa terras mais baixas e mais altas. “Quais valores e modos de vida eu quero posicionar no topo?”; “O que prefiro deixar lá embaixo?”. A analogia opera no sentido de despertar em nós a urgência de priorizar o que mais importa em nossas vidas. Não só os “o quês”, mas principalmente os “comos” e os “porquês”. Eu não atravessei o Vão dos Buracos. E acredito que isso denota exatamente os valores que escolhi preservar: não ultrapassar meus limites, honrar os sinais que meu corpo emite, buscar manter meu equilíbrio.

Buscando equilíbrio no Vão dos Buracos.

Logo na primeira vez que deixei de completar um trecho e precisei “pedir a kombi”, essa reflexão já havia despertado em mim. Outros caminhantes também não se sentiam em condições de continuar e entraram no carro. Entre um mar de frustrações e humores ácidos, eu permaneci em silêncio e fiquei pensando… “Existe uma crença meritocrática forte por trás dessa sensação de fracasso”. Já tínhamos compreendido que o Caminho não era uma competição entre nós, mas será que havíamos entendido que não se tratava de uma competição da gente com a gente mesmo?

Há certos padrões que estão arraigados lá no fundo. O Caminho do Sertão, ao permitir fincar os pés no presente e respirar nossas reflexões, abre portas para que comecemos a transformá-los. O ato de caminhar é capaz disso porque, como William Ury diz, permite-nos vivenciar uma jornada “da hostilidade para a hospitalidade”. Sendo ele um mediador de grandes conflitos internacionais, eu já havia lido algumas de suas histórias, mas Ury acabou foi me fornecendo a primeira pista de que eu queria de fato caminhar. Em sua fala no TED, intitulada O caminho entre o “não” e o “sim”, ele apresenta a ideia do Caminho de Abraão e questiona a plateia:

“Quantos de vocês já tiveram a experiência de estar numa vizinhança estranha, ou numa terra estranha, e alguém totalmente estranho, completamente estranho, chega até você e lhe mostra cordialidade, talvez o convide à sua casa, lhe dá algo para beber, lhe dá um café, lhe dá uma refeição?”

Para William Ury, a experiência de hospitalidade é a essência do Caminho de Abraão, uma iniciativa análoga ao Caminho do Sertão que busca promover o desenvolvimento socioeconômico sustentável e a aproximação entre os povos do Oriente Médio. Imagine a magnitude de uma ação como essa numa das regiões mais conflituosas do planeta! Fazer a travessia da hostilidade, do distanciamento e da apatia para a hospitalidade, a conexão e a empatia também vale para o sertão. É Ser Tão. A generosidade e a gratuidade como contrapontos ao mundo bélico e mercantilizado que teimamos em viver.

Existem inúmeros outros caminhos pelo mundo. Desde o famoso Caminho de Santiago de Compostela, na Europa, até o Caminho da Luz, na zona da mata mineira, o que aproxima boa parte deles é o propósito dos caminhantes de se religarem a si mesmos e à natureza e de perseguirem uma vida mais essencial. De certo modo, caminhar nestes moldes pode ser considerado uma jornada em busca de sabedoria.

Pra mim, ter decidido ir e concluído o Caminho do Sertão foi uma experiência única. O medo me acompanhou até o último dia em Arinos, e aquelas horas finais foram absolutamente importantes para que eu realmente sentisse que havia terminado o percurso (o Caminho também me ensinou algo importante sobre terminar as coisas). Como uma vez ouvi o Daniel Larusso dizer, “o medo é a lembrança de que estamos vivos”. É bom estar vivo.

Antes de iniciar a jornada, cada caminhante recebia dois presentes: um anel de tucum e um patuá. O anel representava a aliança que fazíamos com o sertão durante os sete dias e a luta dos povos sertanejos (os anéis de tucum eram utilizados pelos escravos como símbolo de resistência). O patuá era uma espécie de amuleto que, no nosso caso, continha frases do Grande Sertão: Veredas.

Durante a roda de conversa que fizemos ao final do Caminho, revelamos o conteúdo dos nossos patuás ao grupo e contamos como as frases haviam nos impactado. Minha frase foi “o sertão é quando menos se espera”. Só agora consigo compreendê-la. Quando menos esperei, consegui permanecer no kakasana. Quando menos esperei, fui pro Caminho e permaneci nele até ficar com saudade. Quando menos esperei, simplesmente fez sentido contar essa experiência neste livro. Quando menos esperei, o sertão me viu, vivo. E eu senti, vivo, o sertão.

Fonte: Fharah Mahrmud.

Referências

Caminho de Abraão. Disponível em: http://caminhodeabraao.org.br.

O Caminho do Sertão. De Sagarana ao Grande Sertão: Veredas. Pelo cerrado e suas culturas, de pé! Disponível em: https://ocaminhodosertao.wordpress.com.

Feyerabend, Paul. A Conquista da Abundância. São Leopoldo, RS, Editora Unisinos, 2005.

Nando Pereira. Na dúvida, sem medo ou ambição, pergunte-se: “esse caminho tem coração?” (Carlos Castañeda). Dharmalog. Blog sobre auto-conhecimento. Disponível em: http://dharmalog.com/2011/06/15/na-duvida-mas-sem-medo-ou-ambicao-pergunte-se-esse-caminho-tem-coracao-carlos-castaneda.

Prefeitura de Unaí. Unaí é destaque no site da Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento de Minas Gerais. Disponível em: http://www.prefeituraunai.mg.gov.br/pmu/index.php/2012-12-21-16-56-25/agropecuaria.html.

Scharmer, Otto. Liderar a Partir do Futuro que Emerge: a evolução do sistema econômico ego-cêntrico para o eco-cêntrico. 1 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014.

William Ury. O caminho entre o “não” e o “sim”. TED Talk. Disponível em: http://www.ted.com/talks/william_ury?language=pt-br#t-1103736

Este texto faz parte da série de casos inspiradores do livro da Educação Fora da Caixa. Veja as outras três cenas que já publicamos: Cinese | AIESEC | UnCollege Brasil.

Dedico essa cena à Ana Luiza, que foi a líder do meu Caminho desde muito antes de eu começar a trilhá-lo. Obrigado, branca! Agradeço de forma muito especial também a todos os amigos caminhantes e membros da organização do Caminho: sem vocês, a travessia não teria acontecido!

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Alex Bretas
Educação Fora da Caixa

Alex Bretas é escritor, palestrante e fundador do Mol, a maior comunidade de aprendizagem autodirigida do Brasil. Saiba mais em www.alexbretas.com.