Cena 4
O Caminho do Sertão
O kakasana exige coragem. Praticando yoga há algum tempo, entre constâncias e ausências, nunca havia conseguido permanecer corretamente nessa posição. Até que, quando menos esperava, consegui encaixar meus joelhos no topo dos braços. Doeu na hora e doeu por mais alguns dias. Saí da aula feliz.
Nesse dia glorioso, eu já sabia que havia sido selecionado para participar do Caminho do Sertão. O que eu não dava conta de responder com convicção, no entanto, era se de fato eu iria.
Faltava uma semana para a viagem. 160 km de pé por entre alguns dos cenários do Grande Sertão de Guimarães Rosa. Faltando quatro dias, comecei a me sentir resfriado. E resfriado é danado, porque não sabe se é gripe ou nada. Faltando três dias, à noite, fiquei com vontade de chorar, mas não consegui. Pensava: “está tudo tão bom, porque me meter numa coisa que desconfio seriamente que será difícil e dolorida?”. Faltando dois dias, conversei muito com a Ana, minha companheira, mas depois precisei escrever. Preenchi todo um arquivo do bloco de notas no computador com listas de argumentos. Estava convicto: “não vou”.
(Um parênteses para contar como a Ana se liga a essa história. A primeira vez que soube da existência do Caminho foi por meio da fala empolgadíssima dela. Fui um dos primeiros para os quais ela contou, já convidando para fazer a inscrição e ir caminhar com ela. Havia uma seleção. Aos 45 do segundo tempo, resolvi me inscrever. Não era apenas para acompanhá-la, eu realmente tive vontade, curiosidade. Eu fui selecionado, mas ela não. Devastados, decidimos que eu deveria ir, mas mesmo assim eu não estava seguro…)
Faltando menos de 24 horas para o início da viagem, fui de manhã fazer um exame de sangue de rotina. Na longa fila, tive tempo de refletir sobre a decisão de ir ou não ir. Acreditei: “eu vou”. Ao tirar sangue, foi a primeira vez na vida que desmaiei. Acordei no banco da enfermaria, mas fiquei absolutamente sem lugar: enjoo, dor de cabeça, fraqueza, tontura…
Recuperei, mas me senti molenga durante o restante do dia. Trabalhei muito, até a noite, tentando adiantar as coisas para caso eu escolhesse viajar. Novamente conversei com a Ana. Discutimos. Contudo, de súbito a clareza se fez, ainda escorregadia. Há poucas horas do meu voo de ida, comprei a passagem de volta. Relaxei um pouco e, de madrugada, fui arrumar as malas com a ajuda da Ana. O que deu pra dormir foi um cochilo, e logo eu estava de pé, caminhando para o táxi, depois para o avião, depois para a primeira rodoviária, então a segunda e, quando menos esperava, havia chegado no sertão.
Ao longo da semana anterior ao Caminho, o que ocorreu foi que resgatei um padrão biográfico que me acompanhara desde a infância. O padrão ameaçou me circunscrever nas mesmas reações que eu já havia tido frente a situações que me tiram da zona de conforto: ansiedade — medo — não ir ou não persistir. A primeira vez que me recordo disso ter acontecido foi ainda criança, quando parei de fazer aula de capoeira antes de ser batizado — isto é, receber minha primeira corda. Fui à cerimônia de graduação e presenciei todos os meus colegas sendo reconhecidos. Chorei à beça.
A segunda vez aconteceu quando a escola organizou uma excursão para a Serra do Caraça. Eu já estava dentro do ônibus, com tudo arrumado, mas minutos antes do início da viagem saí abruptamente dali. Nervoso e ofegante, disse aos meus pais que não dava conta de viajar. Voltamos pra casa, e o primeiro lugar que me enfiei foi no banheiro.
Mais recentemente, lembro de algumas outras situações semelhantes. Nos dias que antecederam o Caminho a dúvida era: faz sentido deixar esse padrão agir de novo? Eu já havia estudado um pouco sobre os padrões biográficos segundo a antroposofia, e claramente essa repetição se afigurava como um. Minha reação típica era uma defesa aceitável ou um medo que merecia ser transformado? Mais do que isso: o que me esperava “do lado de lá”? Testando um agir diferente daquele que havia me acostumado, o que meus olhos veriam de novo? Essa curiosidade de chegar à outra margem foi o que me impulsionou. Além da missão de trazer um pedacinho do sertão pra Ana.
Fui pro Caminho. Lá, um dos outros caminhantes me contou sobre o sábio índio Don Juan, que tinha um jeito simples (não exatamente fácil) de tomar decisões importantes. Don Juan, conforme nos apresenta Carlos Castañeda, assim ponderou:
“Esse caminho tem um coração? Se tiver, o caminho é bom; se não tiver, não presta. Ambos os caminhos não conduzem a parte alguma; mas um tem coração e o outro não. Um torna a viagem alegre; enquanto você o seguir, será um com ele. O outro o fará maldizer sua vida. Um o torna forte; o outro o enfraquece.”
Toda vez que chegávamos a uma encruzilhada (e foram várias) eu pensava nisso. Assim também foi meu processo de escolher por caminhar: cheio de reviravoltas. Coração é agir com coragem. Isso é tudo o que a vida quer da gente, me ensinou Rosa.
Entendendo o Caminho e o sertão
Acabou que eu fui. O Caminho do Sertão é uma jornada sociocultural e ambiental, de inspiração literária, que em 2015 convidou 50 caminhantes a atravessarem parte do trecho percorrido por Riobaldo em “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, rumo ao Liso do Sussuarão. Já em sua segunda edição, foram 160 km pelos vales dos rios Urucuia e Carinhanha, feitos a pé durante sete dias. Quem propõe e organiza o Caminho é o Instituto Rosa e Sertão, junto da Agência de Desenvolvimento Integrado e Sustentável do Vale do Rio Urucuia e do Centro de Referência em Tecnologias Sociais do Sertão — Cresertão — , com o apoio de prefeituras locais e outras organizações parceiras. Há a possibilidade de a iniciativa firmar-se futuramente como uma rota perene de turismo de base comunitária, assim como diversos outros caminhos já existentes no Brasil e mundo afora.
Por entre mato, gado, cantos, ribeirões, veredas, causos, sabedorias e muita areia, o Caminho desafia quem o trilha a prestar mais atenção ao que tem ocorrido no sertão. A persistente beleza convive infelizmente com as alarmâncias.
“A água antes dava pra mergulhar, agora se passar lá num tampa nem a sandália do pé”. A preocupação de Seu Aleixo, morador do Barranco do Carinhanha, aponta para um fenômeno que tem se intensificado rapidamente no território sertanejo: a desertificação. Durante a caminhada, passamos por vários pontos em que antes existiam veredas — o oásis sagrado do sertão — , mas que agora estão completamente secas. Nesses lugares, dos buritis só sobraram os tocos.
A desertificação e outros desequilíbrios ambientais estão associados à expansão desenfreada do agronegócio na região. Vimos plantações de soja a perder de vista e ficamos sabendo de aviões que despejam agrotóxicos em áreas vizinhas a cidades. Avistamos desertos verdes — florestas de eucaliptos — e rebanhos imensos (um deles quase nos pisoteou!). Não muito longe de onde estávamos, Unaí orgulha-se de ser “a cidade do agronegócio” e de ostentar o sexto maior PIB agropecuário nacional segundo o IBGE (dados de 2011). O que está por trás desse manejo massificado da terra é uma visão desenvolvimentista, justamente o oposto do que a obra de Rosa procura resgatar.
Segundo Gustavo Meyer, as mensagens de desenvolvimento propagadas pelos grupos hegemônicos, com seus símbolos de poder no meio rural — a colheitadeira, por exemplo — entram em embate com a visão que busca reconhecer a sabedoria cultural dos povos sertanejos. Essa dualidade é a mesma que se operou em 1956, ano que marca o início da construção de Brasília, de um lado, e o lançamento de “Grande Sertão: Veredas”, de outro. Juscelino Kubitschek, ícone do desenvolvimentismo brasileiro, representava o discurso da “ocupação do vazio”; Guimarães Rosa buscava enaltecer a oralidade, a riqueza cultural e a simplicidade das comunidades do sertão. Deste lado, não há vazio algum.
Entretanto, houve um caso em que a obra de Rosa foi utilizada para criar vazios. A criação do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, último destino da caminhada, ocorreu às custas da expulsão dos moradores que historicamente povoavam a região. Mundinho, ex-prefeito de Chapada Gaúcha, relembrou os dizeres de um habitante do território que virou parque:
“Só foi possível criar o parque poque nós vivemos nele durante séculos e o preservamos. Agora isso está sendo usado contra nós”. Mais uma vez, a lógica predominante abusa de seu poder e desestabiliza as culturas tradicionais. Por que é importante preservar essa diversidade de manifestações humanas? Paul Feyerabend acreditava que a convivência pacífica de diferentes modos de vida é essencial para o desenvolvimento da humanidade. Frente a um novo desafio coletivo, quanto mais saberes e estratégias estiverem disponíveis, melhor. Mais ao fim da vida, Paul também passou a reconhecer o valor das trocas interculturais. O que é preciso atentar nesse quesito é a forma com que se dão essas trocas: elas dão voz e beneficiam a todos os envolvidos? Agridem um dos lados? Contribuem para celebrar ou destruir?
Junto com as alarmâncias ambiental e cultural, outra dimensão que o Caminho ajuda a aguçar o olhar é a política. Dentro dela, a questão da distribuição de terras no território do sertão é a que mais preocupa. Se os Vales do Urucuia e do Carinhanha viraram alvo dos investidores do agronegócio, esse movimento ajudou a deflagrar outro, de proporções semelhantes, mas no sentido oposto: as ocupações de terra. Ouvimos de uma liderança dos pequenos agricultores um relato emocionante a respeito de uma grande ocupação realizada na fazenda de um político. Ocupamos toda a sala da casa de Dona Geralda, na Fazenda Menino, para ouvir as histórias de quando ela foi perseguida e torturada pela ditadura militar por supostamente ser “comunista”, uma palavra que ela sequer arriscava um significado.
Essas três dimensões — ambiental, cultural e política — conectadas conformam o mote do Caminho do Sertão: “da luta pela terra à luta pela Terra”. Ao fazer o Caminho, essa frase preencheu-se de sentido pra mim. Acredito que ela representa uma evolução crucial para os movimentos sociais agrários brasileiros, visto que incorpora de vez a “pegada” ambiental à pauta dos sem-terra. Ao fazer a junção de pleitos distintos, o Caminho revigora todos eles e os apresenta, num novo patamar, aos caminhantes. Quem se dispõe à travessia tem acesso a um olhar contra-hegemônico unificado: o próprio sertão. Somos invadidos pelo sertão primeiro pelo caminhar, depois pelo dialogar, e só depois é que vamos digerindo mentalmente tudo o que presenciamos. O Caminho foi pensado assim de propósito: trata-se de uma itinerário de aprendizagem que se faz muito mais pela via da experiência do que pela instrução.
Ao refletir sobre todos esses aspectos, os caminhantes são instigados a olhar mais atentamente para si mesmos. Neste sentido, existe no Caminho uma quarta dimensão filosófico-existencial que coloca em xeque nossa visão antropocêntrica de mundo. O pressuposto dessa crença é que nós humanos somos seres superiores: estamos acima de todas as coisas somente porque adquirimos consciência reflexa e, com ela, povoamos o planeta. De certa forma, somos distinguidos dos demais seres, inferiores. Estamos distanciados do ser-tão.
Mas, “toda vez que eu dou um passo, o mundo sai do lugar”. A cada passo, a cada encontro com as comunidades sertanejas, a cada ciranda, a cada banho na vereda, nossa forma de ver o mundo saía do lugar. Ao nos sentirmos mais próximos das pessoas e parte da paisagem, acolhíamos o sertão de fora e o sertão de dentro da gente. Sertão é brincadeira semântica: é Ser Tão, é Ser Tao, é Vir a Ser Tão. A etimologia da palavra remete à terra distanciada, oculta nos interiores além-mar, que carece de alteridade. Surpreendentemente, viver o sertão é uma experiência muito hospitaleira e generosa, e é justo isso que o Caminho busca proporcionar. Lá, naquele lugar que antes não víamos, eles nos viram e nos reconheceram (e ainda fizeram comidas deliciosas pra nós!) Para o povo geraizeiro, comer na casa de alguém e conversar na cozinha já é causo de intimidade.
Nas comunidades que visitamos, parecia não haver separação entre as pessoas e o sertão. Havia integração e com-vivência com o território. Ao sentir as dores da caminhada, meu ego foi se diluindo, como se tivesse sido jogado no Ribeirão de Areia. Ao perceber a amorosidade dos que encontrávamos pelo caminho, o ego foi dando lugar ao eco. Talvez seja isso que o Otto Scharmer queira dizer quando fala da transição de uma consciência egossistêmica para uma consciência ecossistêmica. Na Teoria U, um passo importante é vivenciar as margens do sistema, aqueles lugares cruciais para entendermos determinada questão em profundidade. Descobri que o sertão é uma das principais margens para se compreender o Brasil, e o Caminho é seu acesso privilegiado.
Sete dias saindo do lugar
Para fazer entender o sertão do povo baiangoneiro, o Caminho propõe “pousarmos” em sete destinos, vários deles comunidades tradicionais. Senti que minha viagem ao noroeste de Minas começou mesmo quando desembarquei em Unaí, cidade próxima à Brasília na qual precisei pegar outro ônibus para chegar à Sagarana, local de início da caminhada. Em Unaí conheci meu primeiro companheiro caminhante, o Ricardo, de São Paulo. Almoçamos juntos e ele me contou sobre seu trabalho no teatro com o “Grande Sertão: Veredas”. Algo que ele disse me marcou: “toda a minha vida ajuda a dar vida aos meus personagens. Morar na periferia, jogar futebol, isso influencia no Riobaldo que eu faço”. Ricardo é auto e alterdidata em teatro. Fiquei pensando como todo trabalho (e toda experiência educativa) deveria abrir espaço para cada um poder “colocar na mesa” suas histórias e singularidades.
Entramos no ônibus para Sagarana. Sentíamos a descida íngreme em direção ao Vale do Urucuia (às vezes também sentíamos o cheiro de borracha queimada do freio do ônibus). A paisagem do cerrado a cada quilômetro ficava mais interessante. Chegados em Sagarana, a árdua tarefa de montar as barracas somente com a luz das lanternas. Fizemos os primeiros contatos com os moradores, a organização e entre nós caminhantes. Após o jantar, festejamos muito no bar da Maria, o “point” de Sagarana. Teve cachaça, conhaque, conversa animada, forró e o sanfoneiro mais animado das Gerais, o Denílson. Fui tomado pela alegria do sertão!
No dia seguinte, sábado, participamos de uma roda de apresentações na geodésica do Cresertão. Foram horas deliciosas e necessárias para que todos se re-conhecessem. Todos se apresentaram no centro do círculo, como iguais. Num mar de falas sinceras e emocionantes, fiquei com a pérola da Esther na cabeça: “me outrar para encontrar o meu olhar”. Domingo, primeiro dia de caminhada, fomos de Sagarana à comunidade de Morrinhos. Logo no início já comecei a caminhar lado a lado com a Anne, carioca de mão cheia que se tornou minha parceira durante todo o Caminho. Foram 31 km e minha chegada em Morrinhos foi sofrida. Não consegui interagir com os moradores o tanto que gostaria por conta de bolhas no pé e dores fortes no joelho. No entanto, Seu Ademílson, morador do pequeno vilarejo, ofereceu sua casa para os caminhantes tomarem banho e lá eu pude conversar um pouco com ele. Sua paixão por Morrinhos ficou evidente.
Segunda-feira. Saímos de Morrinhos às seis da manhã (acordávamos quase sempre às quatro e meia) rumo à Vila Bom Jesus. 34 km que viraram 38 por causa de uma mudança imprevista no trajeto. Logo no início, um nascer do sol belíssimo, mas que contrastava com a paisagem terrestre tomada pelo monocultivo de soja. Seu Ademílson disse que a vinda do agronegócio gerou empregos na comunidade — todo ponto de vista é a vista de um ponto, não é?
O segundo dia foi o mais puxado de todo o percurso, e eu acabei não completando o trecho. Sempre que alguém não tinha condições de terminar a caminhada do dia, uma kombi ficava disponível para nos levar até o destino mais próximo. Ela era pilotada pelo Adão, um menino prodígio de 21 anos que dirigia como ninguém e se tornou o ídolo da caminhada.
Ao pousarmos em Vila Bom Jesus, tratei logo de armar minha barraca e ficar quieto dentro dela. Não estava exausto, mas sentia muita dor nos pés. Tive vontade de chorar, mas não consegui. A crise — compartilhada por alguns outros colegas — me levou a cochilar, e quando acordei ouvi um outro caminhante, o Rogério, dizendo que sabia como tratar as bolhas. Havia um pé de limão no lugar em que estávamos, e ele pegava os espinhos do limoeiro para secar as erupções. Depois passava arnica e fechava com gaze e esparadrapo, artigo de luxo no sertão. Parece bobagem, mas esse momento foi a minha virada de chave: eu poderia ficar dentro da barraca fingindo de morto e caçando planos para ir embora mais cedo, ou eu poderia pedir ajuda ao Rogério. Resolvi pedir ajuda, coisa não muito fácil pra mim. Enfaixei o peito dos pés e renovei minha confiança na jornada.
Dormimos. Na terça, um dia comemorativo: eram “só” 14 km! E com direito a cachoeira no meio do percurso. Foi uma festança só, e teve roda de samba e ciranda. Tomei banho na cachoeira mesmo com os pés estourados. A sensação era de redenção e de força interior, por ter vivido pra ver tamanha beleza. Chegamos ainda de dia na Fazenda Menino, um reduto de histórias tristes e felizes das Gerais. Ouvimos algumas delas e tive a certeza de que as histórias são as nossas ferramentas mais ancestrais de aprendizagem. Precisei refazer meus curativos eu mesmo, dado que a fila para os “podólogos do sertão” (alguns caminhantes que eram requisitados por seus conhecimentos informais de enfermaria, e também por terem muito esparadrapo) estava imensa.
Quarta-feira, lembro-me de terminar o percurso de 25 km da Fazenda Menino até o Córrego Garimpeiro feliz da vida. Caminhei sozinho na parte final do trecho e me libertei do tênis, ficando apenas de meias — alguns locais eram de areia funda e o tênis dificultava a caminhada.
Andar sozinho foi uma experiência meditativa, sem muitos pensamentos e profundamente ritmada. Pude respirar o agudo silêncio do sertão. Ao chegar no Córrego Garimpeiro, um lugar rústico e sem luz, tomei banho de vereda e fiz cocô à noite no mato atrás de um bambuzal. Caguei de medo!
No dia seguinte, quinta, passamos por vários riachos e veredas no trajeto do Garimpeiro à comunidade do Ribeirão da Areia. Cada uma mais bonita que a outra, mas meus pés sofreram sendo molhados tantas vezes (a maior dica que eu havia recebido antes de viajar era não molhar os pés durante a caminhada, por conta das bolhas). Subimos num morro e vimos todo o esplendor do sertão, altivo. No último trecho do dia demos falta de alguns caminhantes, e descobrimos que haviam ficado perdidos no caminho! Ficamos preocupados… Sol se pondo, já em Ribeirão da Areia, avistamos novamente nossos amigos, resgatados pelos guias.
Sexta-feira, era chegado o percurso inédito que muitos esperavam: o Vão dos Buracos. O trecho, de trilhas estreitas, subidas difíceis e chão amarelo era comentado por muitos de nós desde o início do Caminho. Nesse dia, não tive condições de caminhar. Pulei na kombi do Adão e cheguei cedo ao último pouso, na cidade de Chapada Gaúcha. Aproveitei para conhecer a cidade enquanto esperava os demais caminhantes chegarem. A chegada aconteceu já era noite, e fomos recepcionados em grande estilo no XIV Encontro dos Povos do Grande Sertão Veredas, um grande evento voltado para celebrar as culturas tradicionais da região. Emocionados, fizemos uma grande roda e nos abraçamos todos. Fomos recebidos com música e sob os olhares curiosos dos moradores da cidade.
No sábado, último dia do Caminho, fomos de Chapada Gaúcha até o Parque Nacional Grande Sertão Veredas. Caminhada leve, 10 km, já em clima de despedida. À noite, fizemos uma roda de conversa que rendeu depoimentos fascinantes, e todos ficaram livres para celebrar o fim da travessia no Encontro dos Povos. Debilitado, só dei conta de comer alguma coisa e fui dormir. Domingo era hora de viajar de volta pra casa, e eu e mais um grupo de caminhantes fomos a Arinos, cidade próxima a Chapada Gaúcha, para podermos embarcar na rodoviária de lá. Ao chegar, o Fidell, um dos guias do Caminho, convidou-nos para passar o dia em sua casa, já que nossos ônibus só sairiam à noite. Comemos, bebemos e conversamos, sem ver o dia passar. Despedimo-nos todos: havia chegado o momento de retornar.
Histórias e reflexões do caminhar
Os aprendizados que uma experiência como o Caminho do Sertão podem despertar vão se acumulando dia após dia após o retorno pra casa. Uma figura importante para que a travessia tenha feito sentido pra mim foi o Almir Paraca, uma liderança importante do sertão mineiro e uma espécie de embaixador do Caminho. Paraca foi prefeito de Paracatu e deputado estadual por Minas Gerais, mas se mostrou humildemente a nós caminhantes como um exímio contador de histórias. Quase um guru do sertão. Ele perdeu um olho aos seis anos e, por ser taxado como “diferente”, começou desde cedo a se interessar pela questão da alteridade.
Duas histórias contadas pelo Paraca me marcaram profundamente. A primeira diz sobre um andarilho que se perde no mato à noite e acaba encontrando um homem com uma lanterna. Animado, caminha rápido até ele e o pergunta sobre o melhor trajeto até a casa mais próxima. Ao se aproximar, o andarilho percebe que o homem é cego. “Mas, porque o senhor carrega uma lanterna se não consegue enxergar?”. “Para que você pudesse me encontrar. Juntos agora descobriremos o caminho”. Essa história revela o poder de se “fazer encontrar”, isto é, a importância de se mostrar ao outro e de saber pedir ajuda. Isso foi o que eu passei no Caminho, por exemplo, no momento crucial em que solicitei auxílio ao Rogério. Preciso trabalhar minha dificuldade em pedir ajuda às pessoas.
A segunda história é uma metáfora que aproveita o relevo acidentado do Vão dos Buracos, o penúltimo trecho da caminhada. Percorrer o Vão é, como Paraca disse, um “processo ascensional” — uma subida difícil que, como toda subida, separa terras mais baixas e mais altas. “Quais valores e modos de vida eu quero posicionar no topo?”; “O que prefiro deixar lá embaixo?”. A analogia opera no sentido de despertar em nós a urgência de priorizar o que mais importa em nossas vidas. Não só os “o quês”, mas principalmente os “comos” e os “porquês”. Eu não atravessei o Vão dos Buracos. E acredito que isso denota exatamente os valores que escolhi preservar: não ultrapassar meus limites, honrar os sinais que meu corpo emite, buscar manter meu equilíbrio.
Logo na primeira vez que deixei de completar um trecho e precisei “pedir a kombi”, essa reflexão já havia despertado em mim. Outros caminhantes também não se sentiam em condições de continuar e entraram no carro. Entre um mar de frustrações e humores ácidos, eu permaneci em silêncio e fiquei pensando… “Existe uma crença meritocrática forte por trás dessa sensação de fracasso”. Já tínhamos compreendido que o Caminho não era uma competição entre nós, mas será que havíamos entendido que não se tratava de uma competição da gente com a gente mesmo?
Há certos padrões que estão arraigados lá no fundo. O Caminho do Sertão, ao permitir fincar os pés no presente e respirar nossas reflexões, abre portas para que comecemos a transformá-los. O ato de caminhar é capaz disso porque, como William Ury diz, permite-nos vivenciar uma jornada “da hostilidade para a hospitalidade”. Sendo ele um mediador de grandes conflitos internacionais, eu já havia lido algumas de suas histórias, mas Ury acabou foi me fornecendo a primeira pista de que eu queria de fato caminhar. Em sua fala no TED, intitulada O caminho entre o “não” e o “sim”, ele apresenta a ideia do Caminho de Abraão e questiona a plateia:
“Quantos de vocês já tiveram a experiência de estar numa vizinhança estranha, ou numa terra estranha, e alguém totalmente estranho, completamente estranho, chega até você e lhe mostra cordialidade, talvez o convide à sua casa, lhe dá algo para beber, lhe dá um café, lhe dá uma refeição?”
Para William Ury, a experiência de hospitalidade é a essência do Caminho de Abraão, uma iniciativa análoga ao Caminho do Sertão que busca promover o desenvolvimento socioeconômico sustentável e a aproximação entre os povos do Oriente Médio. Imagine a magnitude de uma ação como essa numa das regiões mais conflituosas do planeta! Fazer a travessia da hostilidade, do distanciamento e da apatia para a hospitalidade, a conexão e a empatia também vale para o sertão. É Ser Tão. A generosidade e a gratuidade como contrapontos ao mundo bélico e mercantilizado que teimamos em viver.
Existem inúmeros outros caminhos pelo mundo. Desde o famoso Caminho de Santiago de Compostela, na Europa, até o Caminho da Luz, na zona da mata mineira, o que aproxima boa parte deles é o propósito dos caminhantes de se religarem a si mesmos e à natureza e de perseguirem uma vida mais essencial. De certo modo, caminhar nestes moldes pode ser considerado uma jornada em busca de sabedoria.
Pra mim, ter decidido ir e concluído o Caminho do Sertão foi uma experiência única. O medo me acompanhou até o último dia em Arinos, e aquelas horas finais foram absolutamente importantes para que eu realmente sentisse que havia terminado o percurso (o Caminho também me ensinou algo importante sobre terminar as coisas). Como uma vez ouvi o Daniel Larusso dizer, “o medo é a lembrança de que estamos vivos”. É bom estar vivo.
Antes de iniciar a jornada, cada caminhante recebia dois presentes: um anel de tucum e um patuá. O anel representava a aliança que fazíamos com o sertão durante os sete dias e a luta dos povos sertanejos (os anéis de tucum eram utilizados pelos escravos como símbolo de resistência). O patuá era uma espécie de amuleto que, no nosso caso, continha frases do Grande Sertão: Veredas.
Durante a roda de conversa que fizemos ao final do Caminho, revelamos o conteúdo dos nossos patuás ao grupo e contamos como as frases haviam nos impactado. Minha frase foi “o sertão é quando menos se espera”. Só agora consigo compreendê-la. Quando menos esperei, consegui permanecer no kakasana. Quando menos esperei, fui pro Caminho e permaneci nele até ficar com saudade. Quando menos esperei, simplesmente fez sentido contar essa experiência neste livro. Quando menos esperei, o sertão me viu, vivo. E eu senti, vivo, o sertão.
Referências
Caminho de Abraão. Disponível em: http://caminhodeabraao.org.br.
O Caminho do Sertão. De Sagarana ao Grande Sertão: Veredas. Pelo cerrado e suas culturas, de pé! Disponível em: https://ocaminhodosertao.wordpress.com.
Feyerabend, Paul. A Conquista da Abundância. São Leopoldo, RS, Editora Unisinos, 2005.
Nando Pereira. Na dúvida, sem medo ou ambição, pergunte-se: “esse caminho tem coração?” (Carlos Castañeda). Dharmalog. Blog sobre auto-conhecimento. Disponível em: http://dharmalog.com/2011/06/15/na-duvida-mas-sem-medo-ou-ambicao-pergunte-se-esse-caminho-tem-coracao-carlos-castaneda.
Prefeitura de Unaí. Unaí é destaque no site da Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento de Minas Gerais. Disponível em: http://www.prefeituraunai.mg.gov.br/pmu/index.php/2012-12-21-16-56-25/agropecuaria.html.
Scharmer, Otto. Liderar a Partir do Futuro que Emerge: a evolução do sistema econômico ego-cêntrico para o eco-cêntrico. 1 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014.
William Ury. O caminho entre o “não” e o “sim”. TED Talk. Disponível em: http://www.ted.com/talks/william_ury?language=pt-br#t-1103736
Este texto faz parte da série de casos inspiradores do livro da Educação Fora da Caixa. Veja as outras três cenas que já publicamos: Cinese | AIESEC | UnCollege Brasil.
Dedico essa cena à Ana Luiza, que foi a líder do meu Caminho desde muito antes de eu começar a trilhá-lo. Obrigado, branca! Agradeço de forma muito especial também a todos os amigos caminhantes e membros da organização do Caminho: sem vocês, a travessia não teria acontecido!
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