Compartilhamento biográfico

Alex Bretas
Educação Fora da Caixa
6 min readAug 24, 2015

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Olhando com atenção e carinho para o nosso passado

O compartilhamento biográfico é uma das atividades que compõem o trabalho biográfico, cujo maior expoente no Brasil é a médica Gudrun Burkhard. O processo consiste em levantar acontecimentos e histórias de nossas biografias e compartilhá-las num pequeno grupo, de modo a se exercitar a escuta e a suspensão de julgamentos e interpretações.

Geralmente conduzido em períodos de quatro a sete dias de imersão, o trabalho em grupo com a biografia pode ser adaptado a diferentes contextos e demandas.

Por quê?

Cada biografia humana é um tesouro infindável de histórias, significados e potenciais aprendizados. Ancorada nos extensos estudos biográficos realizados por Rudolf Steiner, fundador da antroposofia, e por Bernard Lievegoed, antropósofo e médico holandês, a médica brasileira Gudrun Burkhard tem dedicado sua vida ao propósito de disseminar a potência reveladora de se trabalhar a própria biografia. Em seu livro “Tomar a Vida nas Próprias Mãos” ela diz:

“Quando encontramos uma pessoa que há muito tempo não vemos, ocorre um fato interessante. Primeiro tentamos lembrar-nos de seu nome, de onde a conhecemos, há quantos anos isto ocorreu, e começamos a contar o que aconteceu em nossas vidas desde aquele último encontro. Contamos um pedaço de nossas biografias, e com isso a lembrança vai aparecendo, cada vez mais nítida, diante de nós. Se fizermos este levantamento da história da vida de maneira sistemática, estaremos então fazendo um trabalho biográfico”.

Ainda segundo Gudrun, o propósito de se trabalhar a biografia não é ficarmos algemados ao passado, e sim integrá-lo ao presente para que possamos viver com mais liberdade. Elaborar, integrar e aceitar o passado tornam-se, então, atividades cruciais para que criemos conscientemente nosso futuro.

No caso específico do compartilhamento biográfico — que responde apenas por uma pequena parte do universo dos trabalhos com a biografia — , o grupo aparece como componente primordial. Escutar a história de vida de alguém com o apoio de um pequeno grupo de pessoas pode nos ajudar a perceber:

  • A diversidade e a riqueza de contextos em que cada pessoa está inserida, o que amplia nossa noção de complexidade e capacidade de empatia;
  • A sabedoria do outro, expressa não apenas no “somatório de conhecimentos oficiais”, mas principalmente na narração dos aprendizados informais;
  • As melhores maneiras de realmente apoiar uma pessoa num momento de crise, as quais geralmente se alinham mais a uma postura de escuta e acolhimento e menos àquela que julga e aconselha;
  • A humanidade que nos une, por mais que sejamos absolutamente diferentes.

Como?

O compartilhamento biográfico geralmente é precedido por um resgate biográfico. Para tanto, a antroposofia toma como referência os setênios, períodos de sete em sete anos que comportam diferentes fases do desenvolvimento humano. Há uma extensa bibliografia a respeito das fases da vida entendidas sob essa perspectiva, que não será tratada aqui.

A forma mais simples de se conduzir um resgate biográfico é pedir a cada pessoa para rememorar, individualmente, acontecimentos e histórias de vida desde sua primeira lembrança (no entanto, existem certos compartilhamentos que focalizam determinado período ou tema específico). Nesse momento, a divisão por setênios pode atuar de forma didática para ajudar a memória a trabalhar. Os participantes vão anotando as lembranças que vêm à mente, até chegarem nos dias atuais.

Em seguida, é hora de preparar o campo para os compartilhamentos começarem. Um grupo de compartilhamento deve ser composto de três a cinco pessoas, e caso o número de participantes seja maior, somente é preciso dividir os grupos. A duração do encontro dependerá das circunstâncias, mas é recomendável separar ao menos de duas a três horas para que as trocas não sejam superficiais.

Ao orientar o grupo para o início de um compartilhamento biográfico, é preciso ter em vista que se trata de um momento ao mesmo tempo muito potente e delicado. Também é necessário atentar que:

  • Cada pessoa compartilha somente o que quiser e se sentir à vontade com o grupo;
  • A escuta do grupo é o elemento mais importante a ser cuidado, de modo a se prezar pela suspensão de julgamentos e interpretações;
  • Não deve haver interrupções durante o relato do outro, a não ser no formato de perguntas;
  • Ao se fazer questões, é preciso saber distinguir o que é mera curiosidade nossa (evitando esse tipo de pergunta), e o que pode ser realmente importante para que o outro explore ainda mais certas passagens de sua biografia;
  • O grupo é responsável por cuidar do tempo, de forma que cada pessoa possa relatar sua história num período adequado e equivalente às demais.

O compartilhamento biográfico é uma das abordagens utilizadas nos Círculos de Doutorandos Informais (CDIs), uma série de encontros proposta pelo projeto Educação Fora da Caixa cujo propósito é ativar novos projetos de aprendizagem autônomos. No caso dos CDIs o foco do trabalho biográfico é voltado para o contexto educativo, o que significa que as histórias resgatadas e compartilhadas têm em comum um tema específico.

Círculo de Doutorandos Informais de São Paulo.

Os relatos dos CDIs realizados em São Paulo e Belo Horizonte contam um pouco sobre como foram os trabalhos biográficos que fizemos. Destaco abaixo um trecho do relato de Belo Horizonte:

“Após resgatarem individualmente suas histórias de vida relacionadas à aprendizagem, era a hora de se ver a partir do outro. Os compartilhamentos biográficos ocorreram em trios, de modo que cada um pôde exercitar diferentes papéis: o de contador de histórias; o de escutador que olha nos olhos; e o de colheitador, aquele que ‘ouve pela mão’ ao colocar no papel a essência das histórias que eram compartilhadas”.

Um ponto interessante de se trabalhar em trios é que cada um pode assumir um papel completamente distinto: alguém começa relatando sua biografia, outro assume o papel de interlocutor e o terceiro faz um registro, que pode assumir a forma de um desenho, texto ou outra a qual a pessoa se sinta mais à vontade. É recomendável que uma das pessoas do grupo também assuma a responsabilidade por cuidar do tempo (total e de cada biografia relatada).

Após a primeira pessoa contar suas histórias de vida, ocorre uma troca de papéis para que outra possa iniciar o seu relato. As trocas acontecem até que todos tenham compartilhado suas biografias.

Ao final, é interessante que haja um momento de conversação coletiva com o objetivo de promover um espaço de reflexão para o grupo, que poderá dialogar sobre suas percepções e aprendizados durante o processo. No CDI, chamamos esse momento de colheita:

“Ao retornarmos para o nosso círculo, as sementes, já brotadas, começaram a se desenvolver e a dar frutos. “Como me senti experimentando os diferentes papéis?”; “O que foi mais marcante ou desafiador pra mim?”; “Quais os aprendizados que levo comigo desta experiência?”. Essas foram algumas perguntas que animaram nossas conversas de colheita”.

A principal questão para alguém que queira conduzir um compartilhamento biográfico é conseguir criar um espaço acolhedor, confiável e seguro. Nos relatos dos CDIs eu conto um pouco sobre as estratégias que temos utilizado para configurar esse espaço. Há possibilidades diversas, desde brincadeiras, uma boa decoração e opção por locais ao ar livre, mas o essencial é cuidar para que todos tenham voz e não se sintam julgados nem pressionados.

Gudrun Burkhard diz que o compartilhamento biográfico permite presentearmos uns aos outros com o que temos de mais precioso: nossas histórias de vida. Ao contá-las, conseguimos visualizá-las com mais consciência e nitidez. O fato de se estar em grupo é fundamental para que isso aconteça.

Para saber mais:

Burkhard, Gudrun. “Tomar a Vida nas Próprias Mãos: como trabalhar na própria biografia o conhecimento das leis gerais do desenvolvimento humano”. Editora Antroposófica, 4ª edição, São Paulo, 2010.

Este texto faz parte do livro Kit Educação Fora da Caixa, um kit de ferramentas para quem quer sair da caixa da educação.

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Alex Bretas
Educação Fora da Caixa

Alex Bretas é escritor, palestrante e fundador do Mol, a maior comunidade de aprendizagem autodirigida do Brasil. Saiba mais em www.alexbretas.com.