Natureza, Património e Educação

Entrevista a Miguel Pita

SRE . Madeira
Educatio Madeira
7 min readNov 17, 2015

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Entre uma caminhada e um mergulho no mar, falámos com Miguel Pita para sabermos algo mais sobre natureza, património e educação. As conversas são como as cerejas e esta não fugiu ao adágio.

EDUCATIO (ED)Apesar da complexidade do desafio, como se autodefine?
Miguel Pita (MP) — Sou, como se costuma dizer, um autodidata da natureza, porque nunca obedeci a regras; ainda hoje e cada vez mais, sou até um bocado solitário. Gosto muito da companhia das pessoas, mas, ao mesmo tempo, também gosto muito de andar só. É uma característica minha. Não gosto, no fundo, de seguir regras, nem de estar sujeito a outras pessoas. Gosto de fazer as coisas por mim. Quem quiser vem atrás de mim; eu não gosto de andar atrás dos outros. É um bocado isso.

ED Na sua mundividência, que riquezas próprias esconde a Região Autónoma da Madeira?
MP — A ilha da Madeira esconde sobretudo a natureza. Eu tenho alguma autoridade para poder dizer isto, porque eu conheço um pouco do mundo; conheço do mundo a parte natural, de andar pelas montanhas. O ano passado fiz uma grande viagem na Nova Zelândia e Austrália. A América do Sul, conheço quase toda. Mas também conheço as ilhas. E podemos comparar a Madeira com as ilhas atlânticas (que eu conheço quase todas): as Canárias, os Açores (todos a andar a pé), Cabo Verde (também metade das ilhas já percorri a pé), as Baleares. São essas ilhas que se podem comparar mais com a Madeira.
E não há dúvida que a Madeira tem um património natural fabuloso. Não é por acaso que é património da Unesco, pela sua flora, mas além disso pela beleza. Eu costumo dizer — fazem-me a pergunta de quais são as ilhas mais bonitas, se os Açores ou a Madeira — que não se pode comparar [a beleza], porque são completamente diferentes, são belezas diferentes. A Madeira tem uma beleza única.

Eu também refiro muito este aspeto: a Madeira deve ser, a nível do mundo, — isto é muito importante — das poucas regiões que têm, publicados, guias de viagem do século XIX (eu tenho vários). Guias que são livros de capa dura, com duzentas, trezentas páginas a falar da Madeira. O mais antigo que tenho é de 1860; em que, na descrição de como chegar à Madeira, ainda tem a opção do barco à vela, portanto foi no início do vapor; em que tem todos os capítulos desde “o chegar”, “onde ficar” (os hotéis da altura) e, sobretudo, a parte mais importante que é “o que fazer”. Aquilo que se podia fazer (é o maior capítulo) são os percursos pela natureza. Estão divididos em percursos de um dia até percursos de cinco dias (isto é interessante de ler). Por exemplo, ir ao Rabaçal já nessa altura era descrito pelos viajantes que vinham à Madeira e há gravuras lindíssimas do século XIX sobre o Risco. Nessa altura, era um percurso de três dias, porque era preciso um dia para ir de barco até à Calheta (o barco não era a motor, era à vela ou a remos), outro dia para ir a pé até ao Rabaçal e era preciso outro dia para voltar. O guia tem estas descrições.

Isto é que é importante que as pessoas tenham sempre presente: a beleza da Madeira é conhecida há muitos anos. Repito: deve haver poucas regiões do mundo com estas descrições tão antigas sobre a natureza.

EDComo vê a ligação entre espaço natural e espaço humanizado?
MP — O maior exemplo são as levadas, porque hoje são património da Madeira, muito ligado aos passeios, ao turismo, às caminhadas. Aliás, não há guia atual da Madeira que não fale nelas. Muitos passeios nem sequer são em levadas, mas é o nome que se dá.
As levadas não foram feitas para o turismo, foram feitas por necessidade de transportar a água de onde havia para onde não havia, normalmente do norte para o sul da ilha. Essa ligação teve e tem ainda hoje — porque essa água continua a ser transportada — um papel fundamental na vivência e na vida das pessoas. Hoje também é importante no turismo e na observação da natureza, pois as levadas levam-nos a sítios que, de outra forma, não conseguiríamos lá chegar.

EDA fruição do património natural e cultural depende do esforço educativo junto de crianças, jovens e adultos?
MP — Isso é muito natural em qualquer área. A educação começa sempre pelos mais novos. É como a preservação na parte dos resíduos, o nome vulgar do lixo. Hoje há uma maior educação a nível das escolas; nas próprias casas há muito mais cuidado em separar. Nos jovens, começa a educação ambiental.
Enquanto professor estive em muitos projetos ligados à natureza e noto que, hoje, em quase todas as escolas existe um trabalho muito grande a esse nível.
Estas novas gerações olham para a natureza de outra forma que não se olhava há uns anos. Por causa da educação ambiental, é a criança, hoje, que diz ao pai para não jogar o lixo para o chão. As novas gerações, felizmente, têm uma educação que os mais antigos não tiveram.

Até porque também há outras razões. Antigamente, o lixo era outro tipo de lixo e servia, conjuntamente com o estrume, para fazer os adubos. As pessoas juntavam o lixo num determinado sítio e usavam aquele lixo, depois, para adubar [a terra], era um lixo diferente. Hoje não, o lixo são os plásticos, são os vidros. São resíduos que têm de ser mesmo levados para os sítios certos, não se podem deitar na terra. Também tem esta vertente importante, a de percebermos que as coisas mudaram.

Mas, de qualquer maneira (eu já assisti a estas cenas), é a criança a chamar a atenção do pai: “Não deixes o lixo no chão!”.

EDConsiderando o passado e o presente da Madeira, qual é a relevância social, económica e cultural da formação especializada ligada à natureza, no futuro?
MP — Isto da formação de guias [de natureza] é evidente, porque já há escolas que formam pessoas. Eu noto que há muito mais gente conhecedora do que é a natureza, desde à fauna à flora, à própria formação da ilha. Nota-se que há muito mais informação, que as pessoas estão muito mais informadas, já não falando da quantidade de pessoas que hoje andam pela natureza.
Há aqui um fenómeno que é preciso realçar: de há meia dúzia de anos para cá, a quantidade de desportos que são feitos agora na natureza, o que é uma coisa muito recente. Eu falo à vontade porque há dez anos, no máximo, eu andava na montanha, pela serra e não encontrava ninguém. Era capaz de passar um dia, dois, três, quatro dias sem encontrar ninguém. Nessa altura havia gado na serra e podia encontrar um pastor, mas era raro encontrar madeirenses, encontrava alguns estrangeiros. Hoje em dia, felizmente, encontram-se muitos residentes a passear nas serras com as famílias e, também, muitas provas organizadas. Agora está muito na moda o trail na montanha. Fazem-se praticamente todos os meses e ao gosto de toda a gente: desde os curtos até aos grandes trails são feitos hoje aqui nas nossas montanhas.

ED Aceite o desafio e deixe-nos uma sugestão de atividade em família.
MP — Atividade em família (que felizmente vejo muito e cada vez mais) é passear, é andar, é caminhar na natureza e fazer o piquenique longe do carro, que é o mais importante. Aquele piquenique de há uns anos — em que as pessoas paravam o carro à beira da estrada, abriam o porta-bagagem, tiravam o garrafão de vinho e ficavam acolá à volta do carro — cada vez vê-se menos. É verdade, vê-se muita gente em família e é isso que eu sugiro que as pessoas continuem a fazer, porque vale a pena.

Miguel Pita de perfil

Na sua juventude praticou os desportos mais diversos, mas com o seu pai ganhou o gosto pelo mergulho subaquático e pelas caminhadas na serra. Foi fuzileiro naval e um dos primeiros mergulhadores encartados na Madeira, tendo ainda participado em regatas internacionais de grandes veleiros.

Formado pelo ISEF Lisboa, durante três décadas foi professor de Educação Física. Em 1979/80, estagiou na Escola Secundária de Francisco Franco, onde também lecionou no ano seguinte. De 1981/1982 a 2009/2010, foi professor da Escola Secundária de Jaime Moniz, embora de 19/06/2007 a 08/02/2010 tenha exercido funções como destacado no Gabinete do Secretário Regional de Educação e Cultura.
Lançou o desporto de aventura — com Rui Cunha e Filipe Figueiroa — no espaço natural da Região Autónoma da Madeira e lecionou Atividades de Turismo de Natureza na licenciatura em Turismo do ISCE.
Na sua companhia, as levadas ostentam segredos de outros tempos e, no fundo do mar, os seixos anseiam sempre por mais uma visita sua…

Fotografias Miguel Pita

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