«Toda a literatura é educativa»

SRE . Madeira
Educatio Madeira
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10 min readMar 2, 2017

Ana Margarida Ramos em entrevista

Ana Margarida Ramos
A Direção Regional de Educação (DRE) organizou a conferência Promoção da Leitura em Portugal: uma revolução silenciosa, no  Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira.O Educatio entrevistou a conferencista convidada. Doutorada em Literatura e Professora Auxiliar na Universidade de Aveiro, Ana Margarida Ramos é investigadora e autora de diversos livros, artigos e trabalhos científicos na área da Literatura para a Infância e Juventude.

Tem um percurso de investigadora que abarca inúmeras áreas da literatura, em especial da infantojuvenil. Em que se diferencia uma obra infantil de uma juvenil?

Essa é uma pergunta complicada, até porque as fronteiras entre a própria infância, adolescência e juventude não são, às vezes, muito claras ou muito rígidas. De qualquer forma, nós temos alguns critérios que nos ajudam nesse processo: desde logo, a extensão da obra, a complexidade narrativa ou temática, os desafios que ela coloca ao leitor no sentido de o obrigar a refletir ou até a posicionar-se criticamente sobre o mundo, sobre si próprio e sobre os outros.

Nessa medida e apesar de, durante muito tempo, a literatura juvenil ter estado associada àquele tipo de coleções muito codificadas que nós chamamos de Formula Fiction, portanto, narrativas de aventuras e de mistérios, hoje em dia não são só esses livros que cabem no domínio juvenil.

Essa é a literatura de fronteira. É aquela literatura que, muitas vezes, ajuda os jovens a começarem a ler os livros da literatura dita institucionalizada.

Não gosto de dizer literatura para adultos porque parece uma coisa estranha, mas é essa literatura de fronteira que está um pouco entre os dois mundos, o da infância e depois o outro, o dos adultos.

A ilustração pode trazer densidade a uma obra e é muito usada na literatura infantojuvenil. No seu pensamento, a ilustração é parte do paratexto, da narrativa paralela, mas também pode ter uma leitura semiológica?

A ilustração é, cada vez mais, um elemento que integra o próprio significado do livro.

Em alguns casos, a ilustração pode ser um complemento ao texto, mas há livros que podem sobreviver perfeitamente sem ilustração.

Quando nós retiramos a ilustração e lemos só o texto, eles continuam a fazer pleno sentido, mas, quando está presente e é uma ilustração de qualidade, acrescenta sentidos à leitura do próprio texto.

Nessa medida, é aquilo a que chamo de “arte aplicada”, “arte provocada”, porque ela parte de um determinado contexto. É gerada por um texto, ajuda a contextualizá-lo, mas não se limita a essa repetição ou a esse complemento. Pode inclusivamente abrir portas para outras histórias, outros mundos.

Quando uma ilustração é boa é um encontro feliz entre texto e imagem.

Eu costumo dizer aos meus alunos que um bom ilustrador não se define tanto pelas questões técnicas e de estilo e, enfim, de traço, de desenho, de mão, mas distingue-se, justamente, pela capacidade que o ilustrador tem de ler o texto, de o interpretar, de o compreender e de, através da sua criação artística, lhe acrescentar mundos, lhe acrescentar significados.

Como se avalia a qualidade de uma obra infantojuvenil: pelo interesse que desperta no jovem leitor ou pelo caráter educativo que lhe é atribuído pelos adultos? Exige-se um livro onírico ou reflexivo?

Insisto na ideia de que o grande valor do texto literário — seja para crianças ou para adultos — é ser literário, é ter qualidade literária.

A questão educativa é uma questão que esteve presente na génese da própria literatura infantil, mas os primeiros textos escritos para um leitor criança visavam educar essa criança; às vezes só educar e pouco mais, mas também entreter, em alguma medida.

A literatura infantil deve ser, em primeiro lugar, literatura de pleno direito e ter qualidade literária, qualidade estética, qualidade artística.

Tudo o resto vem por acréscimo.

Toda a literatura é educativa. Toda a literatura passa uma mensagem.

No entanto, pelo contrário, quando um livro é escrito para crianças com o sentido de as educar, com o sentido de passar uma determinada mensagem, geralmente deixa de ser literatura e passa a ser outra coisa diferente.

Nessa medida, eu defendo de forma muito empenhada esta ideia do valor e da qualidade literária dos textos e costumo dizer aos mediadores de leitura, aos professores, quando vão escolher um livro, que esse tem de lhes dizer alguma coisa.

Se um livro não disser alguma coisa aos mediadores de leitura, não há motivo nenhum para que vá dizer alguma coisa às crianças.

Costumo até dizer que, se o livro infantil não me comove ou não me faz rir ou se não me emociona, por que razão iria divertir, emocionar ou comover uma criança?

A criança não tem menos competências do que eu.

Por isso, a escolha de bons livros deve passar exatamente por esta dimensão artística. Mesmo que pensemos que a criança não compreende tudo o que lê, ninguém nos garante que, quando nós lemos um livro, também compreendamos tudo o que o livro tem para nos dizer.

No contexto ibero-americano, estudou a expressão das guerras, das revoluções, das ditaduras e das democracias na literatura infantojuvenil. Existe, ou não, um dilema ético na fronteira entre literatura com valores e literatura com ideologias quando se dirige a crianças ou a jovens?

Esta questão está também um bocadinho relacionada com a questão anterior.

Estes trabalhos são trabalhos feitos em equipa, portanto, em grupo com uma rede de investigadores portugueses, espanhóis, da América Latina e do Brasil — onde se fala português e onde se fala castelhano. São de uma rede de investigadores ibero-americanos de que faço parte e, nesta medida, as conclusões a que chego não são minhas, mas são de um grupo de trabalho coordenado por uma professora galega, a professora Blanca-Ana da Universidade de Santiago de Compostela.

É uma questão muito interessante e muito relevante, que me obriga a pensar numa série de coisas, nomeadamente, numa ideia de que…

não há literatura sem ideologia, seja para crianças ou seja para adultos.

Mesmo quando uma literatura se abstém de ter um posicionamento ideológico, isso também já é um posicionamento ideológico.

Quando nós pensamos em algumas correntes literárias de há alguns séculos, em que os escritores se fechavam na sua torre de marfim e se isolavam da realidade e não queriam nenhum contacto com ela, isso tinha que ver com a realidade e o contexto em que estavam inseridos.

Quando uma autora, como Luísa Ducla Soares, em 1972, publica, em Portugal, na ditadura, um livro chamado “O Soldado João” — a história de um rapazinho de aldeia que vai para a tropa e que se recusa, quase, a fazer a guerra, que prefere andar a servir comida aos soldados e a tratar-lhes das feridas ou mesmo a tocar corneta — , isso é um texto que se posiciona ideologicamente no Portugal da guerra colonial, em 72 e sem nenhuma referência à guerra colonial.

Esse texto, se calhar, é um texto mais antibelicista do que um texto que viesse com uma agenda, por exemplo, antiguerra.

Este é o grande poder da literatura para crianças ou para adultos; é esta capacidade de nos pôr a pensar sobre o mundo em que vivemos.

Um texto como este não perde atualidade, porque aquele soldado João funciona para Portugal durante a guerra colonial, mas, se calhar, também funciona hoje em relação àquilo que está a acontecer na Síria ou noutro sítio qualquer deste planeta.

Infelizmente, as guerras continuam presentes.

Nessa medida, acho que a literatura infantil, e não só, é sempre, ou pode ser sempre, profundamente ideológica.

O seu trabalho sobre a prosa de cordel remete para a tradição, mas pressente-se o seu interesse pela contemporaneidade. É artisticamente lícito reescrever um clássico literário para o adaptar ao presente?

Essa também é uma questão controversa.

Gosto de questões controversas.

Aqui, quando falamos de clássico da literatura, penso que não estamos a falar só dos textos da literatura oral, porque esses, obviamente, vamos continuar a reescrevê-los, a recontá-los.

E agora temos esta tendência para os parodiar, para os subverter, para escrever histórias em que as fadas passam a ser más, as bruxas passam a ser boas, os lobos já não comem porquinhos, os capuchinhos vermelhos andam atrás dos lobos, enfim, estas coisas todas.

Sobre as adaptações das grandes obras, devo dizer-lhe que um clássico pode ser bem adaptado a outra obra literária e, nessa medida, ter imensas qualidades e levar os leitores, depois, à leitura dos clássicos.

Eu tenho essa experiência pessoal. Lembro-me de ter lido os “Lusíadas” e a “Peregrinação”, de Fernão Mendes Pinto, adaptado pelo Adolfo Simões — umas coleções da Verbo, antigas, ilustradas, lindíssimas — e isso não impediu que, mais tarde, eu lesse as obras originais.

Estou, por exemplo, a pensar nos clássicos de Homero adaptados pelo Frederico Lourenço; são livros fantásticos, quer a “Odisseia” quer a “Ilíada” do Frederico Lourenço.

Estou a pensar, por exemplo, nos “Lusíadas” do Vasco Graça Moura para crianças, em que ele faz a sua adaptação, respeitando a estrutura métrica, estrófica e rítmica dos “Lusíadas” de Camões.

Essas adaptações são obras-primas. Têm aquele fundo e intertexto que deu origem àquelas obras e isso funciona.

Agora, quando a adaptação é de qualidade duvidosa ou quando o único objetivo é manter o enredo — e há algumas por aí, mas vou abster-me de dar exemplos — aí, eu acredito que as adaptações não acrescentam grande coisa ao panorama literário. Às vezes, isso acontece com as próprias traduções.

Há traduções tão boas que funcionam autonomamente como obras quase individuais, em que o tradutor também se transforma (um bocadinho) em coautor dessas produções.

Por isso, diria que não há uma regra e, mais uma vez, diria que a questão da qualidade literária é fundamental para fazermos a separação entre o trigo e o joio.

Quais são as tendências contemporâneas que identifica na literatura infantojuvenil, nomeadamente em Portugal?

Estamos a par das tendências globais da literatura infantojuvenil. São tendências que passam um bocadinho pela manutenção daquilo que já vem de trás.

Continuamos a ter a presença de um grande filão de textos reescritos da tradição oral e eu creio que isso se vai manter sempre.

Há esta ideia de que, nos últimos anos, se não fosse a literatura infantojuvenil, alguns destes textos estariam perdidos. Aquela prática antiga dos avós contarem histórias aos netos — que vinham da tradição oral e que não estavam escritas — está a perder-se um bocadinho. Por causa das transformações da sociedade, os netos já não estão com os avós, pois os avós continuam a trabalhar, mas essa é uma tendência que se irá manter sempre.

Outra tendência é o esbatimento de fronteiras entre a literatura para crianças e a literatura para adolescentes e mesmo para adultos.

Cada vez aparecem mais livros ilustrados que, na sua aparência, parecem literatura infantojuvenil — pelas ilustrações muito abundantes, às vezes quase só ilustração — mas depois quando nós os lemos percebemos que não se dirigem só e especificamente a crianças.

Cada vez mais há esta elisão das fronteiras, com aquilo a que chamamos uma literatura “cross over”.

Eu utilizo a expressão em inglês porque realmente não existe uma tradução. Talvez seja uma literatura transversal que, ao mesmo tempo, se dirige a públicos muito heterogéneos.

Depois diria que há uma certa influência daquilo que são as tendências contemporâneas da literatura para o questionamento, para a paródia, para a subversão — aquilo a que nós chamamos a pós-modernidade.

A metaficção acontece cada vez mais, até em textos para leitores muito pequeninos e, claro, sempre com esta ideia de que, à medida que os textos se dirigem a leitores mais crescidos, estas estruturas se complexificam.

E depois surge a ideia de novos temas, aqueles que nós associamos às tendências mais fraturantes ou os mais desafiadores.

Temas que foram tabu durante muito tempo na literatura infantojuvenil também começam a aparecer de forma muito intensa.

São questões ligadas à guerra, ao terrorismo, à literatura infantojuvenil ou ligadas à sexualidade — por exemplo, a homossexualidade, as questões de transgénero. Deixa de haver tabus ou temas que não possam ser tratados neste segmento literário.

Que revolução silenciosa está, afinal, a acontecer na promoção da leitura em Portugal?

Essa foi uma metáfora que escolhi para o título da conferência porque é uma transformação que tem vindo, de facto, a acontecer nas últimas décadas.

Já temos esta revolução silenciosa como adquirida e quase nem damos por ela.
Temos a tendência para nos queixarmos e não nos damos conta de como, em Portugal, estão a acontecer coisas muito interessantes a este nível.

Antes do 25 de Abril, a taxa de analfabetismo em Portugal era de quase um quarto da população — há indicadores que até apontam para números mais elevados — e agora, pela primeira vez, em 2015, os resultados do PISA colocam-nos acima da média da OCDE em todas as áreas: na leitura, na matemática e nas ciências.

Ana Margarida Ramos sobre os resultados de Portugal no PISA

Isto não acontece por acaso. Acontece porque houve uma série de iniciativas que ocorreram ao longo de décadas.

Por isso, isto não é uma questão de um governo ou de outro, de uma política ou de outra, mas é a questão de uma atenção continuada em distintas áreas da leitura.

Aí, eu destacava a rede de bibliotecas públicas, a rede de bibliotecas escolares, as mudanças na formação de professores (inicial e continuada), os programas escolares que têm insistido na leitura e nas competências de leitura.

Basta-me, por exemplo, ter estado com os professores no Arquivo e Biblioteca Pública Regional, na Sala Infantil.

Se pensar que há 40 anos, quando eu era uma criança, não havia um espaço parecido com este… Claro que não basta ter os espaços, é preciso promover, formar os públicos, atrair as crianças e as famílias para estes espaços. Estamos a dar passos muito interessantes a este nível.

Em alguns casos, estamos a funcionar como exemplo para países que sempre vimos como referências.

Por exemplo, as bibliotecas escolares em Portugal têm merecido — por parte dos nossos parceiros europeus, inclusivamente países da Europa do Norte — um reconhecimento e uma atenção muito especial.

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