Um olhar diferente sobre o Dançando com a Diferença

Entrevista a Henrique Amoedo

SRE . Madeira
Educatio Madeira
10 min readDec 29, 2016

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Fotografia: Júlio Silva Castro
Henrique Amoedo é diretor artístico da Associação dos Amigos da Arte Inclusiva — Dançando com a Diferença e da companhia de dança homónima, tendo lançado este projeto na Madeira em 2001.

Educatio (ED) — No seu percurso académico e profissional, o corpo humano em movimento está sempre presente. De onde vem este interesse?

Henrique Amoedo (HA) — Em primeiro lugar, vem da vida, porque não temos vida sem corpo. Ele tem de estar presente sempre em tudo. Mas, mais especificamente, tem mesmo que ver com a minha formação inicial de base — a licenciatura em Educação Física — e sempre com este interesse pelos estudos e pela investigação de tudo o que está ligado ao corpo. Depois, fiz uma especialização em consciencialização corporal e fui trabalhar com pessoas com deficiência e dança. Fiz um mestrado nessa área e o doutoramento, que estou concluindo agora, continua no âmbito da motricidade humana, com foco na dança.

O foco vem das e [está] nas pessoas, no corpo humano de uma forma geral.

ED — Uma pessoa é um ser único, mas integrado numa comunidade. Como consegue valorizar o potencial de cada pessoa com que trabalha?

HA — Eu não sei se consigo, mas pelo menos tento. No foco específico do Dançando com a Diferença, nós trabalhamos com pessoas com e sem deficiência.

A valorização do potencial, do que as pessoas têm de melhor, está na base daquilo que fazemos.

O que é impossível — o que são as dificuldades das pessoas com deficiência — é apontado, clinicamente, a todos os momentos. A literatura médica fala-nos sobre isso, o dia a dia fala-nos sobre isso, as dificuldades que as pessoas com deficiência encontram na sociedade mostram-nos isso.

O que temos na nossa perspetiva de trabalho é mudar isso e ter o foco no que são as capacidades. Isso nós descobrimos em aula, descobrimos no dia a dia e no trabalho com cada um. Acho que é aqui que está a perspetiva de valorização.

ED — Da deficiência passou-se para a diversidade. Qual é o conceito que se segue para a plena integração?

HA — Essa é uma pergunta um tanto difícil, mas eu acho que deveria ser um “não conceito”. Não deveríamos pensar em conceito, porque vamos variando de conceito.

A evolução dos conceitos é importante à medida que os mesmos evoluem.

Nós passámos a observar o objeto desse conceito de uma forma diferente, mas, na questão da deficiência ou da diversidade, era como se não fosse nada.

[Desejava] que as pessoas passassem a ser vistas como pessoas, única e exclusivamente, sem termos que delimitar ou pôr rótulos.

Fotografia: Júlio Silva Castro

De forma mais negativa ou mais positiva, todos os conceitos têm associada, a si próprios, uma série de apêndices sociais. Então seria melhor que não tivéssemos conceito, mas acho que ainda não vejo isso. Morrerei antes de isso acontecer.

ED — A linguagem pode servir para ocultar a diferença, para a evidenciar ou para a integrar. Neste caminho, a sociedade tem banido, paulatinamente, algumas palavras ou expressões. Afinal, uma pessoa é cega, invisual, portadora de cegueira ou portadora de uma diferença no seu sistema ótico?

HA — Se estamos falando de conceitos, ela é o que é.

Uma pessoa é cega e aqui, para mim, é ponto final.

Não temos que dar a volta e tentar florear e deixar mais bonito. Até podíamos falar qualquer coisa…

Nós temos de dizer o que a pessoa é, porque, a partir do que ela é e da sua individualidade, podemos construir outras coisas. Então, podemos negar [a exclusão].

Isto vale para os cegos, vale para todas as outras deficiências e vale para qualquer segmento da população que consideremos socialmente excluído. São o que são, nós somos o que somos e, a partir daqui, construímos outra coisa. Ainda a nível do conceito, a linguagem serve para irmos transformando isso, embora a linguagem por si só não seja importante.

A pessoa só vai se modificar a partir do momento que ela se aceitar.

Num primeiro momento isso é interno. Eu aceito-me enquanto cego, sei qual é a minha condição e só a partir daqui eu vou poder criar instrumentos para ter uma ativação com um foco mais amplo. Só a partir daqui é que eu vou poder contribuir, também, para que a sociedade me veja como cego, sim, mas não fique com o foco na cegueira, para que, dentro desta cegueira, a sociedade me veja como pessoa.

Mas, se eu não me aceitar como cego, eu não vou mudar. O cego aqui é um exemplo, isto vale para qualquer coisa.

ED — A Associação dos Amigos da Arte Inclusiva tem como face mais visível o grupo Dançando com a Diferença. O seu trabalho foca-se na arte, na inclusão ou na educação?

HA — Dentro da realidade que são as pessoas, nós temos de passar por tudo.

O nosso trabalho foca-se nas pessoas.

Em trabalho na sede da Associação dos Amigos da Arte Inclusiva

O nosso trabalho passa pela educação, passa pela saúde, passa pela composição das pessoas, enquanto pessoas, enfim, passa pela pessoa como um todo.

Se pensarmos numa estrutura mais organizada, dentro do sistema onde estamos, o nosso trabalho passa pela cultura, pela inclusão social e pela educação.

São três pontos que se ligam, pensando e tendo como foco a pessoa. Se eu pensar na inclusão social e na educação, tendo a pessoa como foco (como já referi), eu tenho isso ligado a dois pontos que são fulcrais no nosso trabalho, ou seja, a uma perspetiva educativa e a uma outra de apoio terapêutico. Estas são as duas fases iniciais do trabalho do Dançando com a Diferença. Eu tenho que apoiar todos os processos terapêuticos de que cada pessoa precisa. Às vezes, é preciso terapia da fala ou fisioterapia, enfim, a série de terapias que uma pessoa com deficiência precisa.

O trabalho de dança pode apoiar isso? Pode.

Isso está na primeira fase do trabalho. Depois, pode apoiar o processo educativo? Pode. Aqui vem a segunda fase. De seguida, damos o salto para tudo isto, mantendo o foco artístico. Aqui, eu tenho um objeto cultural: o objeto artístico. Então, o Dançando com a Diferença passa por tudo.

O foco está nestas três coisas. Se quisermos, o foco principal está na produção e no resultado artístico.

Nós temos de produzir resultados de qualidade estética e artística para conseguir que a sociedade olhe para as pessoas com deficiência de outra forma. Só que atrás disso tem toda a fase de preparação das pessoas com e sem deficiência. Então aqui entram os outros focos.

ED — A comunidade tem apoiado este projeto de longo prazo?

HA — Prefiro as comunidades, no plural, mas, de uma forma geral, sim.

A constituição do repertório do Dançando com a Diferença pensa no público que, afinal, está dentro dessa comunidade.

Pensa no público, porquê? Porque, de alguma forma, temos de educar ou sensibilizar o público, de tornar a nossa linguagem fácil ou compreensível aos olhos do público. Então, a constituição do repertório do Dançando com a Diferença é dividida em fases e ela também é pensada.

Há uma aliança entre o que eu quero com o público e o que eu quero para os intérpretes do Dançando com a Diferença.

Aqui, há um jogo entre o intérprete ser beneficiado com este processo e entre se pensar na modificação do público. Nós temos uma primeira fase — desde a constituição do “ Dançando com a Diferença”, que vai de 2002 a 2005 — a que eu chamo, internamente, de “balézão”. É quando tenho uma linguagem de dança que se assemelha ao que o público madeirense, naquela altura, reconhecia enquanto dança, ou seja, uma coisa muito mais próxima do que, tradicionalmente, as pessoas estavam acostumadas a ver.

A partir daqui, é como se houvesse uma rotura.

Grupo Dançando com a Diferença | “Levanta os Braços como Antenas para o Céu” | Coreografia: Clara Andermatt Fotografia: Júlio Silva Castro

Isso acontece com o “Levanta os Braços Como Antenas Para o Céu”, que é um trabalho da Clara Andermatt. Nesta obra, é a primeira vez que o público da Madeira vê pessoas com deficiência em cena com os seus corpos à mostra, com as suas diferenças expostas, com as suas deficiências físicas à mostra. Há um confronto com uma nova realidade.

Saio do modelo “balézão” e exponho as pessoas de outra forma.

Isso só foi possível porque os intérpretes foram preparados para tal. Não foi violento para eles. Foi violento para o público naquele momento e, depois, isso foi-se esbatendo e foi-se modificando.

A comunidade apoia, mas também é preparada para isso.

Continua apoiando, vai seguindo o nosso trabalho e vai modificando os seus gostos. Vê um trabalho nosso de que gosta e outro de que possa não gostar e, depois, de uma forma geral, as empresas, as entidades públicas e o público têm apoiado o Dançando com a Diferença. Como é óbvio, achamos sempre que é pouco e que podiam apoiar mais… Isso faz parte do ser humano, que nunca está feliz com o que faz e quer dar um passo além, mas eu não posso dizer que não apoiam o nosso trabalho.

Nós temos o privilégio de ser apoiados pelas empresas, pelas entidades públicas e pelo público na Madeira e fora da Madeira.

ED — Que colaborações inusitadas têm tido ao longo deste projeto?

HA — Procuramos não ficar restritos ao nosso universo de atuação, ou seja, não estarmos sempre restritos à dança.

Procurarmos estar unidos a outras formas de expressão artística.

Posso referir algumas delas, correndo o risco de me esquecer de alguma delas, como, por exemplo, o Gonçalo M. Tavares, que é um escritor importante neste momento. Já estivemos com o Gonçalo em diferentes ocasiões. A primeira vez foi num trabalho aqui na Madeira, em que ele observou o Dançando com a Diferença de diferentes perspetivas, como se fosse dividido em subgrupos e percebendo como observavam o mundo. Depois tínhamos outros três artistas: um da área de fotografia, que era o Júlio Silva Castro, o Paulo Sérgio Beju, um artista visual, e a Rubina Santos, uma designer de comunicação.

Cada um destes artistas observava essa relação de Gonçalo M. Tavares com o grupo.

Depois disso, já estivemos com o Gonçalo em várias ocasiões.

Há dois anos que produzimos um evento em colaboração com a Companhia Clara Andermatt, o Encontro Normal com a Diferença. Nesse encontro, convidamos artistas de diferentes áreas para estarem com o Dançando com a Diferença.

Temos trocas de três, quatro dias, em que estamos mesmo em residência artística. É um processo interno muito rico.

Já tivemos gente da área da performance, músicos, pessoas que trabalham especificamente para cinema, documentários, vídeo, enfim.

ENDLESS (coreografia de Henrique Amoedo) | Fotografia: Júlio Silva Castro

Não podemos estar mesmo fechados. Estamos falando de diferença e da singularidade de cada pessoa. Depois, cada uma dessas pessoas dentro da singularidade pode beneficiar ou não de diferentes áreas.

Temos previstas, ainda, no Dançando com a Diferença, colaborações dentro da área de Filosofia.

Não sei como vai ser discutir com o elenco do Dançando com a Diferença, se pensarmos nas pessoas com deficiência intelectual, como é que vai ser discutir Filosofia e Arte dentro do nosso próprio grupo… mas, isso são outros caminhos e laboratórios muito mais internos que a gente faz.

Estas colaborações inusitadas estão dentro deste âmbito mais interno e espero que, em algum momento, consigamos produzir alguns resultados nossos.

Tenho a certeza, e sei, que há coisas já publicadas. Além dos trabalhos de investigação dos que estão quotidianamente connosco, há investigadores que nos procuram.

Há trabalhos [científicos] feitos que resultam dos encontros com o Dançando com a Diferença.

Isto também é importante, porque estes artistas e essas colaborações inusitadas acabam contribuindo para que o trabalho inclusivo contamine, no bom sentido, o trabalho dessas outras pessoas, indo para outras áreas.

ED — Chegará o dia em que o grupo de dança não mais necessite de sublinhar essa diferença? Como antevê o futuro?

HA — Com essa pergunta eu posso dizer que antevejo o futuro com o meu desemprego (risos).

O conceito de dança inclusiva que foi criado em 2002, na minha dissertação de mestrado, é proposto enquanto conceito temporário.

Conceito de Dança Inclusiva (Amoedo, 2002)

Conceito que a gente trabalhava e que tinha de ser trabalhado até que chegasse o momento em que pudesse ser extinto. Foi por isso que brinquei, dizendo que antevejo o meu desemprego. Na realidade eu espero que sim. Eu queria muito que isso fosse normal, mas sei que ainda há imensos passos para que se consiga que isso seja verdade, mesmo no âmbito académico, Aqui, se falar dentro dos focos que eu disse antes, falará a parte educativa.

Todo este trabalho de dança, que as pessoas do Dançando com a Diferença fizeram de 2002 até 2016, não é reconhecido academicamente.

Não existe legislação que torne isso possível. O trabalho do Dançando com a Diferença não pode concorrer, ainda, a apoios nacionais e espero que isso seja modificado. Há uma luz no fundo do túnel que diz que sim…

Há tanta coisa para fazer aqui antes de podermos excluir o conceito e essa questão da diferença ou da diversidade ou da deficiência, ou seja lá como se queira dizer. Eu espero que sim, mas não sei se verei isso concluído, embora ache que vamos no bom caminho. Como já referi, anteriormente, temos vários apoios da comunidade no geral e isso é sinonimo, ou isso é reflexo, de que as pessoas aceitam o nosso trabalho.

Com a visibilidade que nós temos e com a nossa forma de trabalhar, conseguimos mostrar onde estão as lacunas.

Daí espero que isso se vá modificando e que contribua para o nosso trabalho, mas também para o de outros que surgiram depois de nós e que vêm surgindo a cada dia em Portugal, tendo o nosso como modelo.

Associação dos Amigos da Arte Inclusiva — Dançando com a Diferençahttp://dancando-diferenca.wixsite.com

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