Com bois e arado: a realidade de quem produz para uma nação e precisa de dignidade

Antonio Mendonça
É, gente
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8 min readOct 22, 2018

Nossa reportagem foi até a propriedade de uma agricultor familiar em que o avanço das novas técnicas de produção agrícola ainda é tímido. Para uma classe que produz 70% dos alimentos consumidos no país, fica evidente a necessidade de mais investimentos

Bois realizando o trabalho de arado nas terras. Foto: Antonio Mendonça.

Sol quente em uma destas tardes de primavera. Ao relento do sol das 16 horas da tarde, está seu Luciano de Lara, 46 anos, dois bois, uma canga, um arado e a terra vai sendo preparada lentamente para receber as sementes. Enquanto grande parte das lavouras do país passam por um intenso processo de mecanização, as condições sociais impõem ao agricultor a quase obrigatoriedade de se trabalhar no campo com ferramentas consideradas por muitos como arcaicas.

Morador do pequeno município de Bom Jesus do Sul, cidade de 3.700 habitantes do sudoeste do Paraná, Luciano é proprietário de 4 alqueires de terra, que conseguiu com muito esforço, mas quando precisa ir a campo se vê obrigado a lançar mão da junta de bois e do arado para poder lavrar algumas áreas de serra.

Agricultor usando tração animal para o plantio do milho com a plantadeira, que é muito semelhante ao arado. Foto: Antonio Mendonça.

Ali se planta milho, mandioca, cana, pastagens para as 10 vacas que produzem a média de 2 mil litros de leite mensais que garantem o sustento dele e da esposa Zenilda Rodrigues, já que os filhos hoje vivem na cidade. Hoje a vida do agricultor está um pouco melhor, mas naquela região tirar sustento no campo nem sempre foi e é uma tarefa fácil.

“A gente era uma família grande e pobre de oito irmãos, e pra tirar o sustento todos tinham que trabalhar. Aos 10 anos aprendi a lavrar. A gente preparava a terra para plantar trigo, e depois do período colhíamos o produto a foice de mão. Quando a gente plantava milho não tinha esse negócio de colheitadeira a gente quebrava na mão, as terras eram dobradas e a única forma de produzir nelas era com o apoio dos bois. Às vezes a terra era muito dobrada os bois disparavam ladeira a baixo e a carga de milho tombava e a gente tinha que carregar tudo de novo. Era muito sofrido. Se não bastasse isso em muitas lavouras ficavam os tocos de árvores, pois muitas vezes a gente derrubava o mato e ficava o tronco com as raízes, quando a gente ia lavrar tinha que cuidar para que a pá (fica na cepa do arado que é o suporte que leva o aço ao chão para que a terra seja virada, ver foto 02), porque às vezes a pá ficava presa a raízes e até mesmo pedras que existiam debaixo da terra e como os bois estavam puxando o arado a certa velocidade havia um impacto que podia machucar tanto os animais quanto o lavrador. A coisa nem sempre é moleza.”

Cepa, suporte central que leva a pá ao chão. Foto: Antonio Mendonça.

A vida de lavrador por vezes reservava e reserva perigos.

“Já fazia mais ou menos uns 2 anos que eu já sabia lavrar eu estava arando a terra em um lugar um pouco distante da casa de onde a gente morava. Já era perto das 11 horas da manhã, eu estava cansado e a junta de bois era mais ou menos um metro e meio mais altos do que eu. Eu era franzininho, tinha lá uns 30 quilos quando muito, já estava voltando para casa e então decidi tirar a brocha dos bois, que é a corda que passa por baixo dos canzis que pendem a canga no pescoço dos animais durante o trabalho. Ao afrouxar a brocha de um dos bois eu esqueci de tirar a brocha do outro animal. Um dos bois que ficou com a brocha presa a canga no pescoço, assustado para se livrar dela, deu um pulo rápido e aquela canga veio para meu lado numa velocidade assustadora passando rente a minha barriga. Tive sorte que a madeira não me atingiu, senão teria sido meu fim, acredito que teria morrido, visto que eu estava sozinho na roça e talvez não teria ninguém pra me socorrer”, diz o agricultor com um ar de alívio na testa.

Mas segundo seu Luciano não era só no momento de lavrar que havia riscos de sofrer acidentes.

“Já passei situações em que me feri no momento da colheita do trigo naquela época a colheita era manual na base do corte a foice. Uma vez errei o golpe no momento do corte e foice que geralmente é muito afiada acertou minha perna. Não pude continuar trabalhando. Tive que ir para casa, minha perna estava esvaindo muito sangue. No momento de trilhar os grãos também era perigoso, a gente tinha e tem ainda que tomar muito cuidado. Se você colocar sua mão no cilindro que debulha o milho tu é arrastado para dentro o mesmo acontece para que fica aparando a bolsa que vai receber os grãos. Se a bolsa enrolar no cilindro lateral pode enrolar teu braço junto, graças a Deus nunca aconteceu uma tragédia destas com a gente”, diz o agricultor.

Olhando para o passado, seu Luciano não tem muitas saudades e diz que hoje muitos agricultores sofrem de problemas de saúde devido ao excesso de força que realizaram no trabalho rural. Mas hoje a situação está um pouco mais calma. Nos locais onde a terra é plana, com o subsídio do município, um destocamento e retirada de pedras é realizado, a partir daí a terra não precisa mais ser lavrada a bois, que são substituídos pelo trator de uma das seis patrulhas mecanizadas que atendem os pequenos agricultores do município. Eles pagam uma taxa e o serviço é realizado em um tempo mais rápido, sendo possível focar o trabalho em outras áreas da propriedade.

“Os bois ainda são usados, mas não da forma que a gente fazia antigamente. Hoje os bois passam mais tempo no potreiro do que trabalhando. Antes se levava uma, duas semanas para arar toda a terra, hoje isso ocorre em uma manhã. As áreas íngremes a gente planta pastagem perene ou faz potreiro, a vida melhorou bastante”, diz seu Luciano Mendonça.

Modelo de trator usado nas patrulhas agrícolas do município de Bom Jesus do Sul/Foto: Felipe Carvalho

Há mais ou menos 18 anos a produção agrícola na maioria das propriedades rurais da região era oriunda da plantação de milho, feijão e trigo, sendo que em grande parte desses lotes, que têm superfície íngreme, o cultivo era todo manual, desde o preparo da terra com o arado, plantadeira, e carroças a tração animal, colheita, no caso do milho feita à mão e a separação dos grãos feitas pela trilhadeira.

Trigo

No caso do trigo a terra era preparada com um instrumento chamado grade, responsável por cobrir as sementes de trigo. A colheita era realizada com foices, sendo que o trigo era cortado e separado em feixes. Depois, era trilhado na trilhadeira, que é tocada por um motor, geralmente um do modelo Branco, Monte Gomes, Tobata ou Agrale. O mesmo processo ocorria com feijão.

Foto: Facebook / Reprodução. Trilhança do milho. Ao fundo a trilhadeira separando os grãos da espiga. A técnica ainda é usada em muitas propriedades do sul do país.

Trabalho arcaico se mescla com a alteração do modelo de produção

Hoje a principal renda das famílias não mais vem das plantações e sim da produção leiteira que ganhou corpo e corresponde por boa parte da renda dos pequenos agricultores.Seu Luciano não nega que as vezes bate a saudade de algumas coisas que ficou na memória, mas que não deseja voltar ao tempo em que a vida era mais difícil.

“Hoje viver no campo melhorou bastante. Há 20 anos você não tinha muitas condições para buscar financiamento da safra e da propriedade, mas aí o país foi se desenvolvendo e a gente conseguiu ter acesso a financiamentos. E foi aí que fiz a pastagem para alimentar as vacas, melhorei a higiene de minha estrebaria, comprei ordenha, resfriador. A coisa mudou tanto que deu até para trocar o fuscão que a gente tinha antes por carro melhor.”

A produção leiteira que traz ao agricultor uma renda mensal, mas ainda se planta milho, mas hoje este é usado na maioria dos casos para o trato dos animais. Feijão, arroz, mandioca e batata são plantadas para consumo próprio.

No início da década de 2000, eram implantadas no estado várias unidades de beneficiamento e produção de produtos do campo denominadas como Fábrica do Agricultor e foi nessa leva que, no município de Bom Jesus do Sul, foi criada uma cooperativa e com os recursos do governo do estado, deu-se início à construção de uma estrutura, que depois de alguns meses passou a receber e processar a produção leiteira, destinada a produção de queijo. A partir desse momento a prefeitura em parceria com a Emater passou a trabalhar juntamente com os agricultores para ampliar a produção que até então era tímida. Os agricultores passaram a receber apoio e aderiram a novas técnicas de manejo e produção. Ocorreu nesse período também um significativo melhoramento das pastagens. Em 2001, segundo dados da prefeitura municipal e da Farbom (cooperativa local), a produção anual de leite era de 900 mil litros ao mês. Já 2017 registrou uma produção aproximada de 4 milhões de litros de leite.

“De uns tempos pra cá o nosso trabalho tem ficado mais fácil. A gente vive mais tranquilo nas propriedades, mas eu vejo que o pessoal por aqui anda meio desconfiado contra o futuro. De um tempinho pra cá os investimentos estão diminuindo e a gente não vê com tanta intensidade aquele trabalho de valorização do nosso produto. Mas apesar de tudo temos saúde, não nos falta comida e assim vamos levando”, diz seu Luciano com emoção no olhar.

Enquanto parte do meio rural do país teve a mecanização implantada no inicio da década de 1960, uma parte dos agricultores da nação ainda padecem e são obrigados a trabalhar com meios arcaicos. Essa gente clama por mais atenção do governo, pois não falta vontade para trabalhar e produzir e fazer milhões de famílias dignas com café, almoço e janta.

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