Livros que são a cara de São Paulo & do Rio

Luísa Costa
Eixo Newsletter
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4 min readApr 25, 2022
Pula no mar, cai na avenida, conta um conto (Crédito: Eduardo Gabão / Rodrigo Tetsuo Argenton)

Um olho no passado e outro no futuro

Livros que sejam a cara do Rio, outros que sejam a de São Paulo: um só seria uma careta, um Frankestein, a face miscigenada vesga com um olho no passado, e outro no futuro.

Um amigo (paulista) me disse que a cara do carioca só poderia ser representada por um NFT, mais especificamente este daqui. Se a marca desse povo haveria de ter sua impressão em bytes, outro amigo (carioca) me diz que a cara do paulista é nenhuma: uma ausência, alguém que você mal terminou de perguntar as horas e já escapou em linha reta na estação de metrô, deixando a esquerda livre.

Restou a mim, mineira, fazer um arrazoado das faces que eu vi tardiamente (essepê aos 17, errejota aos 22) com obras que me fizeram intui-las, reconhecê-las, ou perder-me nelas.

Os paulistas me pareceram um rastro sob a então inédita garoa: vem um pobre, fica rico, vem um rico, fica pobre, ou são todos brancos e ricos? Mário de Andrade escreveu, na sua “Lira Paulistana”, conjunto de poemas publicado no ano da sua morte, em 1945, que deu o tom da minha alma ao lidar com a neblina à brasileira. Nele, a “Garoa de Meu São Paulo”, musicada por Ná Ozetti e Luiz Tatit para o Museu da Língua Portuguesa, é quase um fado sobre uma cidade em que se encontra de tudo, mas não se vê muito direito.

Foi de lá, do lado do museu, na Estação da Luz, que vi os trens que levam para longe do centro e são o paraíso dos ambulantes. Reconheci “O Último Trem da Cantareira”, de Antonio Arnoni Prado, também em sua ausência: hoje um espaço branco no mapa ferroviário, ladeado pelo trem que vai até o aeroporto de Guarulhos (e ainda nos deixa a ver aviões), uma rica malha ferroviária levava transeuntes àquela São Paulo de crianças aprontando na rua como se fosse cidade de interior.

Elas, ainda ansiando por um futuro na vida, entre galinhas e a névoa de trigo dos primeiros pães do dia, ao mesmo tempo que a República se alvoroçava com a Semana de 1922, onde Mário de Andrade ainda não desenhava os borrões das garoas. No Tremembé da infância de Arnoni, hoje os trens não chegam mais e o “progresso” são microônibus lotados. Ah!, e também o primeiro fast-food sem atendentes humanos da capital.

Chega de SP: se por lá o progresso desconectou uma vida rural de suas vias férreas, mas impôs à periferia toda e qualquer esquisitice da nossa pós-modernidade… quero falar de um fazendão do Rio antigo. Um rosto emburrado fora pro então Engenho Novo tentar recriar sua vida e remoer a pergunta mais dissimulada da literatura brasileira: “ain, Capitu me traiu ou não, hein?”.

Era 1875 ainda, o subúrbio tinha outra cara, mas a loucura humana já vinha de centênios. E dessas idiossincrasias escreveu bem Machado de Assis, o colosso da nossa literatura e cabeça da Academia Brasileira de Letras. Seus livros percorriam um Rio que mal encontrei, mas pude seguir imaginando. Marcou seu “Dom Casmurro” e a rua de Matacavalos, onde o sorumbático Bentinho viveu com a mãe em um sobrado — hoje é a Riachuelo, ainda a desembocar na Lapa.

O Engenho Novo segue um subúrbio, mas urbano. Mesmo tentando reproduzir lá o casarão de sua infância, o casmurro anti-herói de Machado mostrou que o tempo leva tudo, mas nem sempre traz respostas.

Entre curas malfeitas, a vida segue, e as questões da alma seguiram a vagar os 40 graus do Rio em uma bolha digna de Projac arquitetada por Clarice Lispector. Ela não era dali — sua principal personagem, Macabéa, também não — , mas soube como ninguém imprimir suas “neuroses de guerra” no cartão-postal carioca com Lóri, em “Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres”.

Uma professora primária vivendo em Ipanema (ah!, os herdeiros) com o coração a descobrir caminhos pela vaga, ou pelas ruas que a levavam a seu Ulysses em Santa Teresa. O Rio, para mim, era assim. Até por meus pés na rodoviária Novo Rio e ligarem o maçarico.

Pega a visão: aqui empregada não usa uniforme e nem avisa que vai atender a porta, como na novela do Manoel Carlos. Querem me levar pra Botafogo de táxi por 200 reais, tá ligado? Eu não tava. Nas ruas até Copacabana, quem dava rolézim saiu de um conto de Geovani Martins, em “O Sol Na Cabeça”, e as expressões que pulavam no meu ouvido encontravam espaço no meu mineirês.

O desenrolo era forte na Rocinha ou em qualquer outra ponta de morro, os mamilos polêmicos do Rio onde a alegria samba no pipoco e o medo da polícia é maior que o de um coração partido. Qual é a cara do Rio? Sem neurose, são várias, e enquanto eu falo do Rio, São Paulo já chegou em 1962 e eu nem vi.

E lá, parou. Encontro no “Viva Vaia”, de Augusto de Campos, as palavras em blocos como o concreto armado que se acumula na Avenida Paulista, apesar de sua periferia seguir a transbordar. “Arte longa, vida breve, (…) grita grafa grava uma única palavra: GREVE”.

As rainha do transporte multimodal piram, mas também gritam. Crédito: Página do Augusto de Campos http://www.augustodecampos.com.br/greve.html

A cidade que não para, e vive de zunido, entra em suspensão. Qual a sua cara? Todas, nenhuma, e o bolovo, ó: 135 reais.

Nos livros citados acima, em outros que coloco abaixo, proseio aqui a literatura que corre com o Brasil e não para a sorrir pra foto:

Dentro da noite, de João do Rio
História de Gente Alegre, de João do Rio
Garoa do meu São Paulo, de Mário de Andrade
Greve, de Augusto de Campos

Esse texto foi publicado originalmente em abril de 2022 na Eixo. Clique aqui para assinar a newsletter gratuitamente.

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