O sebo solidário do Seu João

Ana Rodrigues
Em cada canto
Published in
5 min readSep 7, 2017

Às duas da tarde de um domingo quente, Matheus, filho do seu João Batista abre as portas de sua casa para mim. Enquanto aguardo seu pai, observo que o rapaz de vinte e poucos anos está ocupado consertando um fusca azul sem algumas peças no quintal. Lugar simples, cheio de materiais recicláveis e relíquias encontradas nas ruas de São Paulo, ou simplesmente deixadas na porta da casa que se destaca pela simplicidade na região do Ibirapuera.

Não é como se João Batista não quisesse falar sobre sua idade. Na verdade, Seu João faz dois aniversários e por isso não sabe responder qual dos dois registros está correto. A idade desaparece quando vem ao nosso encontro com um sorriso fácil e acolhedor, e a mão esticada para aproximar qualquer um que esteja disposto a ouvi-lo e trazer um pouco de novidade ao seu cotidiano. E se desculpa pela demora:

-Eu tava jogando vídeo game.

Homem que nunca pisou em escola, seu João aprendeu a ler e escrever sozinho e hoje se reinventa ao arriscar o inglês e o espanhol dos livros que encontra ou que recebe de doação. Se delicia ao contar que possui certificados do curso de vigilante e elétrica, mesmo sem os estudos primários, informando que é apenas um detalhe, mesmo que isso o impeça de conseguir um trabalho fixo.

A retribuição do sebo solidário

Descrevendo-o desta maneira, é impossível imaginar, o que um coração que aparenta ser tão inocente é capaz de promover. Seu João Batista, que nunca estudou, sentiu seu coração apertar ao perceber que os livros, meios de conhecimento e histórias, eram descartados e tornados lixo reciclável por suas capas e páginas. Assim, ao receber dois livros novos decidiu que não arrancaria suas capas, como sempre fez por costume, mas que os colocaria em um muro na frente de sua casa e arriscou pra ver se o valor singelo de R$ 2,00 causaria curiosidade e alguém.

Mesmo com seu sebo solidário funcionando há cinco anos, seu João lembra com carinho de sua primeira retribuição à vida.

-Passou um rapaz cabeludo, bem aparentado, louro. Lembro que o livro era o “Vade Macum”. Ele chegou perguntando “moço quanto custa aquele livro?”. Eu falei ”coloquei dois real ali, você dá o que cê quiser” (sic). Ele contou que procurou por aqueles livros na livraria Saraiva, e que custavam R$600,00 e o outro R$ 380,00. Falei pra ele aqui não é a livraria saraiva não, aqui é só R$ 2,00 mesmo.

Para quebrar seu antigo costume de rasgar as capas dos livros, seu João optou por colocá-los na entrada de sua casa e doá-los a quem precisa ou se interessa. O valor simbólico se mantém com o passar dos anos.

O tal rapaz cabeludo, que se apresentou como estudante universitário, levou parte do estoque de livros e ficou preocupado. Mas Seu João acalmou o menino:

-Meu amigo, isso eu arranco a capa, ponho no saco e vendo por 30 centavos o quilo, é como papel, é que eu tô com dó de jogar o livro fora e to colocando aqui.

Desde então, seu João coloca diariamente os livros no muro, salvando-os da destruição. E fica na expectativa de que a obra se torna amada por alguém, ao invés de se tornar parte da decoração da tal casa simples.

João Batista, dono do sebo solidário

Seu João fala dos livros e de outros tesouros guardados com carinho, como se fizessem parte da sua vida e alma. Sabe quando um livro será levado logo, ou se aquele é mais procurado que esse, e aos poucos ganhou a percepção do que as pessoas que passam por ali escolhem para carregar na bolsa ou embaixo do braço.

-Bíblia eu não posso colocar, sai até briga por causa de bíblia e livro espírita, mas as pessoas pegam muito livro de aventura. Quadrinhos, até eu gosto de quadrinhos! Até livros de culinária, é coisa que eu coloco e já sai na hora. Mas tem livro que fica três, quatro dias ou mais. Aí pra não estragar eu tiro e coloco outro dia.

O sebo solidário, criado por seu João, possui mais movimento do que ele imaginava com crianças, jovens e adultos passando pela Av. Professor Ascendino Reis. A curiosidade das pessoas que frequentam a região promovem uma grande rotatividade e enchem o coração daquele senhor que, mesmo sem estudar, evidencia em suas palavras que quer apenas incentivar a leitura e não espera nada em troca. Nem mesmo os R$ 2,00 que estão descritos em seu portão, com um buraco abaixo para que o valor seja depositado, caso a pessoa tenha vontade de ofertar.

Sem hora para retribuir

Com os livros expostos no portão, eles podem ser adquiridos a qualquer momento do dia ou da noite, por todas as pessoas que passam por ali e levam um pedaço do sorriso de seu João consigo.

Aquele homem, simples, vindo do Piauí em 1983 e que construiu sua família em meio à diversas dificuldades, traz esperança para a grande metrópole, possibilitando oportunidade e conhecimento a quem buscar, além de abrir seu coração para quem precisa de ajuda e cuidado.

-Eu acho bonito quando pegam um livro. Eu ponho pra isso, acho engraçado, acho bonito. Tem gente do interior que pergunta se tem alguém vendendo, só por curiosidade. Ai eu ponho roupa, sandália, agora to expandindo né. Eu vejo os caras pedindo na rua e coloco, aí vem alguém e pega.

Para seu João, ajudar não é uma obrigação, muito menos um favor, é algo que ele considera que deve vir do coração e sem esperar grandes retornos. Assim, ele coloca não só livros, mas roupas, sapatos, e tudo o mais que considera poder ajudar quem precisa.

-Tem gente que retribui. É como dizem “ conselho e café, toma quem quer”. Se quiser ajudar, o coração é que manda. O certo é ajudar! Quanto mais você ajuda, mais você é ajudado.

Desta forma, seu João vai levando a vida e proporcionando conhecimento e aprendizado a muita gente. Talvez tanta gente, que o homem de vida simples não seja capaz de contabilizar, mas mesmo sem pensar nos números, não para de retribuir tudo o que já recebeu.

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