Parada do orgulho gay de washington dc, 2012 - wikimedia

Eu Odeio Héteros

Minha tradução do texto “I Hate Straights”, retirado do documento “THE QUEER NATION MANIFESTO”, espalhado por Nova York em junho de 1990

Diogo Brüggemann
4 min readJul 2, 2013

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EU ODEIO HÉTEROS

Eu tenho amigos. Alguns deles são héteros.

Ano após ano, vejo meus amigos héteros. Eu quero vê-los, ver como eles estão, trazer novidades às nossas longas e complicadas histórias, experimentar alguma continuidade.

Ano após ano eu continuo percebendo que os fatos da minha vida são irrelevantes para eles e que eles não me ouvem completamente, que eu sou um apêndice dos acontecimentos de um mundo maior, um mundo de poder e privilégio, das regras de instalação, um mundo de exclusão. “Não é verdade”, argumentam meus amigos héteros. Existe uma certeza na política do poder: aqueles deixados de fora imploram pela inclusão, enquanto os incluídos garantem que esses já fazem parte. Homens fazem isso com mulheres, brancos fazem isso com negros, todo mundo faz isso com a comunidade LGBT.

A linha divisora, consciente e inconscientemente, é a procriação… e aquela palavra mágica - Família. Muitas vezes as famílias das quais fazemos parte nos renegam quando descobrem quem nós somos realmente e, para piorar, somos impedidos de ter nossas próprias famílias. Somos punidos, insultados, expulsos, tratados como insubordinados quando se trata de criar filhos, condenados se tentamos e condenados se nos abstemos. É como se a propagação da espécie fosse uma tarefa tão frágil que sem obrigá-la como uma doutrina, a humanidade fosse voltar ao lodo primitivo.

Eu odeio ter que convencer héteros de que lésbicas e gays vivem numa zona de guerra, que nós somos cercados por explosões as quais somos os únicos que parecem ouvir, que nossos corpos e almas são jogados aos montes, mortos de medo, ou surrados, ou estuprados, morrendo de pesar ou de doença, com nossas identidades roubadas.

Eu odeio héteros que não conseguem ouvir a raiva LGBT sem falar “Ei, nem todos os héteros são assim! Eu também sou hétero, sabe?”, como se seus egos não fossem acariciados ou protegidos o bastante nesse mundo arrogante e heterossexista. Por que deveríamos nos preocupar com eles em meio ao ódio trazido pela sua porra de sociedade? Pra que fazer a reafirmação do tipo “É claro, não quis dizer você. Você não age dessa forma.” Deixe-os descobrir por eles mesmos se merecem ser incluídos em nossa raiva.

Mas claro, isso significaria dar ouvidos à nossa raiva, algo que eles quase nunca fazem. Eles desviam, dizendo “Eu não sou assim” ou “olha quem tá generalizando agora” ou “Você vai conseguir convencer mais pessoas se for legal com elas…” ou “se você focar no lado negativo, vai estar dando mais poder pra essas pessoas” ou “você não é a única pessoa no mundo que está sofrendo”. Eles dizem “Não grita comigo, eu estou do seu lado” ou “Acho que você está exagerando” ou “Como você é cruel”.

Eles nos ensinaram que bons gays, boas lésbicas, bons trans não ficam com raiva. Eles nos ensinaram tão bem que nós não só escondemos deles nossa raiva, mas escondemos uns dos outros. Escondemos até de nós mesmos. Escondemos quando usamos drogas e nos suicidamos e quando nos esforçamos demais na esperança de provar que valemos a pena. Eles nos agridem, nos esfaqueiam, atiram em nós, nos bombardeiam cada vez mais e ainda assim nós enlouquecemos quando a comunidade LGBT sai nas ruas com cartazes do tipo “Bata de volta!” Na última década eles nos deixaram morrer em massa e nós ainda agradecemos ao presidente Bush quando ele planta uma porra de uma árvore, o aplaudimos por comparar pessoas com AIDS à vítimas de acidentes de carro que se recusam a usar cinto de segurança. Permita-se ter raiva. Permita que você tenha raiva pelo fato de que o preço que pagamos pela visibilidade é a constante ameaça de violência, violência anti-LGBT com a qual praticamente todo setor dessa sociedade contribui. Permita-se ter raiva. Permita que você tenha raiva pelo fato de que não há lugar nesse país onde nós estejamos seguros, não há lugar onde nós não sejamos alvo de ódio ou de ataques, ou de autopunição, o suicídio - do armário. A próxima vez que algum hétero tentar lhe acalmar por você expôr sua raiva, diga a ele que até que as coisas mudem, você não precisa de mais evidências de que o mundo gira às suas custas. Diga que você não precisa ver somente casais héteros fazendo compras na sua TV… Que você não quer mais nenhuma foto de bebês esfregada na sua cara até que você possa ter seu próprio filho. Sem mais casamentos, chás de bebê, bodas de prata, a não ser que sejam nossos irmãos e irmãs celebrando. E diga para que eles não dispensem você dizendo “Você tem seus direitos”, “Você tem privilégios”, “Você está exagerando”, “Você tem uma mentalidade de vítima”. Diga a eles “Se afasta de mim até que VOCÊ MUDE!” Vá embora e experimente um mundo sem os bravos e fortes gays, lésbicas e trans que são suas vísceras e cérebros e almas. Diga a eles que vão embora e só voltem depois de passar um mês andando de mãos dadas em público com alguém do mesmo sexo. Depois que eles sobreviverem a isso, só aí você vai dar ouvidos ao que eles têm a dizer sobre a raiva da comunidade LGBT.

Senão, mande-os calar a boca e escutar.

Este é o trecho final do manifesto passado de mãos em mãos no Dia do Orgulho Gay de Nova York, de junho de 1990. O restante do texto pode ser encontrado em inglês aqui.

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Diogo Brüggemann

Writer and English teacher with a Cinema and Literature masters degree, now studying International Relations. Writing about culture, media and everything else.