Lésbicas

Gabriel Mourão
Em Português
Published in
4 min readMar 4, 2015

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O primeiro ponto da Paulista, vindo da Consolação, é um lugar especial à noite. Todo dia, uma parcela muito grande das pessoas esperando ônibus ali comigo saíram também da Letras, provavelmente vieram de lá até a Paulista no mesmo ônibus que eu e apresentam o perfil socioeconômico que se espera de um curso de uma universidade pública, ainda que a Letras não seja, por assim dizer, a quintessência dos cursos de universidades públicas em termos de perfis socioeconômicos. O resto das pessoas varia entre quem saiu agora do cursinho do LFG (reconhecíveis pelos Vade Mecuns (plural latino é o caralho) a tiracolo), quem estava no Happy Hour até agora (identificados pela camisa social pra fora da calça), o mendigo eventual e um ou outro perdido.

Uns dias atrás, eu passei um bom tempo, lá. Corri atrás do meu ônibus por dois quarteirões, mas ele passou reto do ponto e eu, dois ou três metros atrás, só pude xingar mentalmente a todos os demais no ponto por não terem dado sinal. Os demais eram as duas meninas que não combinavam, o mendigo (esse logo foi embora), a menina chinesa, o cara que eu conheço mas fingi não ter visto e o homem pobre. E eu, que fiquei ali por um bom tempo.

O que eu fiz, então, foi tentar entender as duas meninas, porque elas não combinavam nada. Uma estava de shorts jeans e era toda tatuada, achei apropriado para o calor, para a hora, para o ponto de ônibus, mas a outra estava com um vestido-capa preto e longo, também de shorts por baixo, e parecia mais era que ia pra alguma festa. Só que elas estavam juntas e conversando e parece que indo pro mesmo lugar e eu fiquei ali, tentando entender, até que uma olhou pra outra, acho que vi um sorriso de aprovação, um “Bora!” sorrido, e então a tatuada levantou um braço, passou pelo ombro da de vestido, riram as duas já de olho fechado e se beijaram. Foi só aí que eu percebi que era óbvio que elas eram um casal e que eu não ter percebido era sintomático, mas não é disso que eu quero falar aqui.

Imediatamente, assumi minha melhor postura de impassividade e dei de ombros quando o homem pobre, logo na minha frente, virou de olhos arregalados e apontou pra elas com o polegar. Diante da minha indiferença, ele se dirigiu pro cara que eu conhecia e fingia não ver, que estava estrategicamente às minhas costas, gesticulou sem nenhum esforço de discrição (não eram gestos obscenos, era mais como se ele não acreditasse na própria sorte de existir, de estar naquele ponto de ônibus, de testemunhar duas meninas se beijando e se abraçando e não sendo nada tímidas com as mãos) e começou uma relativamente animada conversa com o sujeito que eu conhecia, mas ele não. A amizade instantânea de dois caras sem absolutamente nada em comum exceto estarem ambos na presença de um casal de lésbicas. Ainda ouvi quando alguém, em algum lugar, assobiou.

E tudo isso, óbvio, é sintomático, mas não é disso que eu quero falar aqui.

O que eu quero falar é de mim. Quero falar do eu estóico e austero no ponto de ônibus, olhando de esguelha pro homem pobre e balançando a cabeça, censor. O eu advogado e estudante de Letras, versado nos Direitos Humanos e nas lutas da Esquerda, o eu que já foi padrinho no casamento de um casal de lésbicas, que tem um amigo drag queen, que comemorou a confirmação de que Korrasami é canône e que se sentiu tão superior ao cara de boné jeans às onze horas da noite, o cara de camisa polo listradinha e gola esgarçada, o cara tão evidentemente marginalizado até naquele ponto de ônibus.

O que eu quero é imaginar o quanto minha pose, meu paternalismo mal disfarçado e minha condescendência dizem sobre meus próprios preconceitos, minha própria ideia de mim mesmo. Eu ter imaginado magnânima a minha postura ali foi uma declaração por si só, foi o mesmo que ter ido até elas e lhes dado a bênção, como se elas precisassem da minha aceitação, do meu consentimento para se beijar — ou, pior, como se fosse eu quem estava fazendo algo heróico naquele ponto de ônibus, justamente por não fazer nada. Quando eu pensei com reprovação no comportamento do homem pobre, nem percebi que a grandeza que eu via em meu próprio gesto era resultado direto de eu ver a mim mesmo como o juiz do que é socialmente aceitável, de modo que era só pela minha mentalidade esclarecida que as duas podiam desfrutar o privilégio daquele ponto de ônibus. Naquela hora, eu fui o representante prototípico do modelo básico pelo qual todos os demais têm que se medir: o a essa altura já famoso homem branco e hétero, com dinheiro na conta e ensino superior, o padrão do qual todos os outros, ainda que muitos, ainda que uma maioria de fato, são apenas variantes cuja existência eu admito ou não em minha convivência, em meus pontos de ônibus, na minha Paulista.

Lógico que o sujeito foi um babaca, mas eu fui outro, duplamente babaca, por elas e por ele. Triplamente babaca por não ter, na hora, me achado um babaca.

O papelão que eu fiz lá, no fim, só não foi maior porque as duas estavam suficientemente concentradas uma na outra, e não deram bola nenhuma pra mim.

Ufa!

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