Pitangas

Gabriel Mourão
Em Português
Published in
2 min readOct 17, 2014

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O azedo e o doce de uma cidade ameaçada

Não sei que deu: São Paulo tá cheia de pitangas. Primeiro tivemos as amoras, claro, e elas ainda têm meu amor, mas agora pintaram as frutas da nova estação: pitangas por toda parte. Na minha rua, mesmo, pequetita que é, são cinco, seis, podem ser sete pitangueiras todas elas muito cheias de pitangas que se apresentam, se oferecem, apetitosas e perfeitas.

As pitangas mais vermelhas que já se viu!

Hoje, mesmo, na Paulista, parei a bicicleta perto da calçada, me empertiguei um pouco, estiquei a mão e tava lá: uma pitanga, vitória das vitórias. Não só uma pequena fruta vermelhíssima, de uma vermelhidão vermelha: cada pitanga é uma incursão selvagem no asfalto, um assombro um pouco exótico, se bem que tão nosso, parte azedo, parte doce, com a ambiguidade que precisam ter as coisas que nos chamam a ver o mundo.

Comi a pitanga, cuspi o caroço num gramado e me perguntei se alguma coisa ainda pode nascer nessa terra. Ai de mim: que vai ser de São Paulo, afinal?

Que vai ser de São Paulo - essa cidade de pitangas vermelhas que eu pego com um esticar das mãos sem sair da bicicleta - que vai ser dessa São Paulo agora cercada de aridez?! Que vai ser dessa cidade sobre a qual se estendem, continuam a se estender, as mãos do alquimista da seca, do ódio? Vão murchar nossas árvores, São Paulo, como nossos espíritos, e então ninguém vai saber que o mundo é azedo, mas também é doce. Que vai ser da gente, São Paulo?! Vão nos murchar em nós mesmos e viraremos seres pequenos, também, e ocos e secos, e jamais pararemos nossas bicicletas na Paulista, jamais olharemos para o alto, jamais estenderemos nossas mãos.

Que vão ser das pitangas, meu Deus, das pitangas vermelhíssimas, das pitangas azedas, mas também doces como essa São Paulo, como esse país?

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