Análise: “A mulher ruiva”, de Orhan Pamuk

Heitor Guimarães
Em Suma
Published in
12 min readMar 3, 2021

“A mulher ruiva”, de Orhan Pamuk, foi o livro enviado pela TAG livros, Curadoria, no mês de janeiro de 2021. Conta a história de um rapaz que, abandonado pelo pai e precisando de dinheiro para pagar o cursinho, começa a trabalhar como aprendiz com um cavador de poços. Nesse meio tempo, conhece uma mulher (ruiva) que mudará toda sua vida, ou apenas colocará em movimento todo o destino que já foi traçado anteriormente pela força das Crenças. Esta é a sinopse mais clara que consigo dar sem me arriscar a dar algum tipo de spoiler, não é hora para eles. Mas em algumas linhas, será.

A obra de Pamuk me era desconhecida. Na verdade até o nome dele me era desconhecido. Este é o primeiro ponto que me faz gostar da TAG, é uma ótima forma de conhecer novos autores e novas culturas. Hoje em dia, com a baixa propagação literária, minha maior fonte para conhecer outros autores e outras histórias são vídeos de canais no YouTube que falam sobre livros. Na verdade, não tenho nem tanta paciência pra conhecer novos canais, então fico sempre com os mesmos e sigo aprendendo e conhecendo com base naquele indivíduo. Assim, é muito bom ter alguma forma de entrar em contato com novas fontes de leitura e novas maneiras de ver o mundo.

Antes de partir para uma análise mais aprofundada, ressalto que este livro deixa o leitor muito pensativo durante e depois da leitura, tendo entrado facilmente em alta conta no meu ranking.

Como um bom livro narrado em primeira pessoa, nos faz desconfiar das palavras que lemos na perspectiva do personagem principal, e desdobramentos que acontecem durante a narrativa nos faz analisar vários acontecimentos de diferentes pontos de vista. Como diz Tatiana Feltrin, trata-se de um “livro cebola”, com diversas camadas a serem retiradas e analisadas, levando-se em conta diversas pistas deixadas pelo autor durante a narrativa, diversas passagens do eu-lírico que podem ser revisitadas com olhos diferentes pós-narrativa e, ainda, uma dúvida comparada ao “traiu ou não traiu” da literatura brasileira, tudo isso interligado com o fio condutor de uma peça grega que já foi fonte de extenso trabalho psicanalítico, bem como um obscuro (pelo menos no mundo ocidental) poema que inverte a citada anteriormente.

A partir daqui, começa a análise aprofundada de “A mulher ruiva” (com spoiler).

No começo do livro, já entendemos que Cem vai começar a história de uma forma, com uma mentalidade, e terminar com outra. Isso fica claro pela mudança de sonhos em sua vida: de escritor à geólogo. Também no primeiro parágrafo, já ficamos cientes de que o livro se tratará de uma (ou várias) relações entre pai e filho.

Durante a narrativa, Cem passa pela turbulência de ter sido abandonado por seu pai e adquire, assim, outra figura paterna, na figura de seu mestre. A viagem para uma cidadezinha perto de Istambul (que posteriormente integrará a cidade) já serve como um rompimento de sua vida anterior como estudioso aspirante a escritor, fascinado por Édipo Rei, abrindo caminho para os acontecimentos que o levarão a se tornar geólogo.

Durante o tempo em que não estavam cavando o poço, Cem e seu mestre desciam até o centro da cidade para que pudessem comprar mantimentos e tomar café. Em uma dessas visitas, o rapaz conhece a mulher ruiva que dá nome ao livro, uma atriz de teatro itinerante que lança à ele um olhar como se o reconhecesse de algum lugar, um dos muitos motivos que faz Cem logo se apaixonar por ela.

Depois de algumas semanas, o rapaz assiste uma de suas peças e é “seduzido” (um grande ponto de debate a ser discutido posteriormente) por ela, tendo uma noite de amor em seu apartamento emprestado enquanto seu marido estava fora. No outro dia, cansado, Cem acidentalmente deixa um balde cair de cima do poço em direção ao seu mestre, que estava lá embaixo. Depois de um baque e falta de resposta do mestre, assume o auxiliar que o homem está morto, e por isso foge para sua cidade natal e deixa tudo pra trás.

Tal acontecimento repercute em sua vida tremendamente: sempre na dúvida e com medo do que pode acontecer, nunca tendo a real certeza do que houve com seu mestre, decide fazer geologia, fascinado com os diferentes tipos de terra que viu e sentiu durante a escavação, casa-se e abre uma construtora. Também começa a se aprofundar em seu estudos de Édipo Rei e entra em contato com um antigo poema chamado Shahnameh, ou A Épica dos Reis, escrita no século X por Ferduzi e que conta sobre a mitologia árabe.

Em certa passagem deste poema, um jovem, fruto de uma relação de uma noite só, parte em busca de seu pai para colocá-lo no trono. Assim, enfrenta, em batalha, um soldado mais velho conceituado como bravo lutador. O soldado acaba por matá-lo e, neste momento, percebe que trata-se de seu filho, que morre sem saber ter sido morto pelo próprio pai. Ou seja, em relação direta com Édipo, há o inverso: sem o conhecimento de ambas as partes, uma mata a outra. No grego, parricídio. No persa, filicídio.

É interessante notar o ponto do incesto. Em Édipo, o príncipe casa-se com sua mãe e tem filhos com ela, e quando descobre tal fato, fura os próprios olhos. Daí surge o Complexo de Édipo, teoria freudiana que afirma que todos os filhos voltam-se contra os pais para tomar seus lugares. Na Épica dos Reis, não há a questão do incesto, mas há também a abordagem cíclica do nascimento e assassinato presente dentro do seio familiar.

E este é o ponto principal da narrativa de “A mulher ruiva”: trata-se de um livro de ciclos.

Depois de uma campanha publicitária que o torna famoso, Cem recebe uma carta de um rapaz que alega ser seu filho (e fica comprovado que o é), fruto da relação de uma noite só com a Mulher Ruiva. Parte então em uma busca para conhecê-lo, tendo passado toda a vida sem ter notícias do rapaz, que se sente abandonado pelo pai. Ao finalmente voltar para a cidadezinha em que cavou o poço com seu mestre tantos anos atrás (e achou que o tinha deixado morto) e onde mora o seu filho, tem um confronto com vários demônios pessoais: descobre que seu mestre não havia morrido por suas mãos (e sim posteriormente, de outra maneira), conversa sobre o passado com a Mulher Ruiva e, ainda, conhece um rapaz muito suspeito que o leva até o antigo poço e acaba por revelar ser seu filho.

E aqui que este resumo (digno de um em suma), termina: o corpo de Cem é encontrado no fundo do poço, com um tiro no olho e sem água nos pulmões. Segundo seu filho, a arma que Cem portava disparou sozinha depois de ele e o pai começarem a se agredir. O leitor não fica sabendo o que realmente aconteceu, uma vez que a narrativa feita por Cem finda na hora em que cai no chão com seu filho e a arma…

Posteriormente, temos um relato pela Mulher Ruiva de como foi sua vida até as visitas na prisão para ver o filho. Descobrimos que ela teve um relacionamento com o pai de Cem (portanto, com o avô de seu filho), ajudou o mestre de escavação a sair do poço e também convenceu o filho a escrever uma narrativa do ponto de vista de seu pai narrando os acontecimentos, mas que, para isso, tudo deveria começar desde quando aquele poço começou a ser escavado. Portanto, sim: toda a narrativa em primeira pessoa lida nada mais é do que um relato escrito pelo filho abandonado de Cem incorporando o próprio pai para contar todo o caminho que o levou da escavação do poço até o momento em que ele jazeria ali.

Cartas na mesa, destrinchemos:

O primeiro ponto é metalinguístico: com a revelação de que Enver, filho de Cem, é o verdadeiro eu-lírico escrevendo um relato de seu pai como narrador, toda a história perde a credibilidade. Ora, o próprio Enver escreve como se sentia em relação ao pai com os olhos dele, e esse sentimento não era bom. Raiva pelo sentimento de abandono, insatisfação com as opiniões políticas e sociais do pai, talvez até mesmo certo ciúmes pela qualidade de vida que tinha, nos leva a pensar o quanto daquilo realmente aconteceu e como foi pensado e analisado no momento da escrita. Apesar de sua mãe, Gülcihan, a mulher ruiva, pedir um relato honesto, o quanto podemos confiar nesta narrativa?

No mesmo sentido, quer dizer que o relato do acidente de Cem em relação ao seu mestre não teve fundamento, ao não ser pelas palavras do próprio mestre, que conheceu Enver quando este era criança. Não sabemos se foi realmente um acidente ou um crime premeditado por Cem (apesar de pouco provável). Além, o fato que amarra ainda mais profundamente esta história à análise freudiana e Édipo Rei: toda a descrição e obsessão que Cem tinha com a Mulher Ruiva sempre foi de Enver, seu próprio filho. A busca constante para outro vislumbre, o pensamento recorrente nela durante todo o tempo, a forma com que descreve em detalhes como se sente em relação à ela e a noite de amor que compartilham: fatos narrados por Enver utilizando seu pai como narrador.

“Por sua vez, ele segurava carinhosamente as mãos de sua mãe de sessenta anos nas suas e as beijava com a paixão de um amante” Gülcihan, em suas palavras, sobre como o filho beija suas mãos, pg. 293

Assim, a narrativa se transforma nas páginas finais, e tudo o que lemos de repente muda de figura e tem outro peso. Gülcihan afirma, em sua última parte da narrativa, escrita por ela mesma, que os mitos muitas vezes se tornam realidade, e isso se faz presente em toda a narrativa cíclica deste livro: A mulher até afirma que o pai de Cem, seu amante de outrora, lhe revelou que foi abandonado pelo pai. Assim, temos o abandono afetivo pela figura paterna presente praticamente na totalidade dos homens desta família, a busca por uma figura paterna, o incesto focado em apenas uma mulher, qual seja, Gülcihan, ou a Mulher Ruiva (O pai de Cem a tem como amante, anos depois seu filho se apaixona por ela e posteriormente o fruto dessa paixão também nutre obsessão pela mulher), bem como o parricídio (Cem “acidentalmente” fere sua figura paterna — o mestre — deixando-o para morrer e posteriormente seu próprio filho é acusado de mata-lo), todos pontos presentes em Édipo Rei, de Sófocles.

“Não se aproximem do poço”. As coisas que a gente ouve de velhos mitos e lendas terminam por acontecer na vida real. Gülcihan, pg. 271.

No entanto, devo pontuar que entendi o ciclo se cumprindo na história de Édipo Rei, mas senti falta do mesmo em relação ao Shahnameh. Não entramos em contato com filicídio nesta narrativa (por pouco, devo admitir). Enquanto lia e percebi que o rumo estava indo para um confronto entre Cem e Enver, achei que, como Édipo já havia estado presente, o desfecho natural seria a morte do filho pelas mãos do pai e o choro desesperado da mãe quando chegasse, até mesmo fechando o arco com a apresentação encenada pela Mulher Ruiva e fascinante para Cem há tantos anos.

Esse ponto fica ainda mais interessante se pensarmos que durante a narrativa, principalmente no final, temos o embate entre a cultura ocidental e a oriental. Se colocarmos cada uma das narrativas em seus lugares, vemos que Édipo, grego, luta pelo lado ocidental, enquanto Épica dos Reis, árabe, tem sua aliança firmada com o oriental (até por ser poema fundador de sua cultura). No momento de se confrontarem em A Mulher Ruiva, ganha a cultura ocidental, a porção edipiana da narrativa, através do personagem que defende nas últimas páginas que a ocidentalização e o individualismo está acabando com os turcos. Enfim, a ironia.

Fica ainda mais profundo se apontarmos que o tiro no olho de Cem, acidental ou não, pode ser diretamente relacionado aos furos nos olhos de Édipo como redenção pelo incesto do qual faz parte.

Em relação à esta cena, o mistério que permanece é como aconteceu a morte de Cem. Foi um disparo acidental? Foi um tiro intencional?Pai e filho estavam discutindo e acusando um ao outro de abandono, tanto do modo de vida turco quanto da figura paterna, além de analisarem o real significado dessa figura dentro da vida humana e o que ela deveria representar. Com medo do que o filho pode fazer contra ele, uma vez que aquele já começa a discorrer sobre o que tem vontade de fazer (como furar seus olhos e jogá-lo no poço), Cem tira sua arma para se proteger. Começa então uma briga à margem do poço, ambos caem no chão tentando ter o controle da arma e… Cem é encontrado posteriormente com um tiro no olho e sem água nos pulmões, ou seja, estava morto quando atingiu a água no fundo do poço. Ele caiu por si próprio ou foi empurrado? Morreu durante a queda? Ou Enver teria arrastado seu corpo sem vida e jogado no poço? Se foi legítima defesa, por que teria tido essa frieza?

Ficam as perguntas no ar, assim como a traição de Capitu.

Se essa narrativa foi desenvolvida por Enver para que pudesse convencer o juiz de que não teve intenção de matar o pai (como sugere Gülsihan), não faria muita diferença.

No entanto, alguns detalhes nos fazem refletir sobre o que Gülcihan realmente pensa sobre o filho: na sua parte da história, narra como conheceu o pai de Cem e Cem e como foi o crescimento de Enver, uma criança e um adolescente que sempre tinha rompantes de raiva, orgulho obstinado e um ódio no olhar. Afirma muitas vezes que acredita que seu filho é inocente, mas também dá muitas pistas de que talvez nutra, apesar de não querer admitir, em seu íntima, uma suspeita em relação à ele. A principal passagem que deixa isso claro é quando diz se refrear de perguntar-lhe porque colocou uma bala no olho do pai. Some ao fato de afirmar vezes sem conta de como acredita do fundo do coração ser o menino inocente e novamente desfiar as provas que demonstram isso, algumas delas que atuam até mesmo contra ele.

Ficam mais algumas perguntas como resquício da narrativa: A mulher ruiva realmente acredita na inocência do filho? O plano de livrar o garoto deu certo, depois da leitura da narrativa pelo juiz? Seríamos nós, os leitores, os juízes de Enver? Matou ou não matou? Eis a questão.

A pintura “Ivan, o Terrível, e o Seu Filho Ivan em 16 de Novembro de 1581”, de Ilia Repin, diz respeito ao momento em que o czar percebe que matou o filho depois de um momento de fúria. Podemos fazer uma ligação direta desta obra do realismo russo ao Shahnameh, poema fundador da mitologia persa muito abordado em “A Mulher Ruiva”.

Tem um ramo do Direito, chamado Direito Sistêmico, que estuda a Constelação familiar. A constelação diz respeito a um modo de pensar que entende que as pessoas acumulam, de forma consciente ou não, energias e acontecimentos de várias gerações e, por isso, os ciclos e histórias se repetem até acontecer a libertação daquele “nó”. Lembrei-me diversas vezes desse ramo de estudo durante a leitura deste livro, é bastante interessante.

Não tão relacionado a história do livro em si, quero pontuar uma passagem interessante em que “Cem” diz que, ao entrar e sair dos museus, levava consigo o sentimento de vidas efêmeras, a rapidez com que caiam no esquecimento e como é leviano pensar que um punhado de fatos espalhados aqui e ali podem ensinar algo sobre a finalidade humana e o sentido da vida. Tal marcação me fez pensar realmente nos artefatos dos museus que podemos ver e que são só objetos que estão ali sendo mostrados, que muitas vezes nos trazem uma ideia de passado que realmente não diz nada, são objetos adornados e com toda a beleza do mundo, claro, mas que demonstram algo que ficou para trás. Como esses objetos podem fielmente reproduzir um sentido humano ou uma finalidade humana? Não que observar o belo não seja importante, pelo contrário, mas qual a carga real de sentido ali?

Além disso, o que faz aqueles objetos estarem ali e não outros? Significado? Beleza? O que faz a história de alguém ter mais destaque que a história de outra pessoa? Sua repercussão política? Certamente não o índice de sofrimento humano ou o tanto de história que aquela pessoa tem pra contar. Se algo que as pessoas da literatura ou qualquer um que já sentou pra conversar com os avós sabe é que todo mundo tem uma vida incrível por trás que renderia bons livros. Mais do que isso ainda, por quanto tempo as histórias serão lembradas, ou é tudo um processo cumulativo? Quando o revisionismo histórico chega e diz “ok, talvez seja hora de parar de ensinar isso na escola ou na academia, temos outros fatos mais importantes pra cobrir”? Quando deixamos as pessoas para trás?

Em suma, “A Mulher Ruiva”, de Orhan Pamuk, deixa muito claro que o Nobel do autor foi mais do que merecido. Com uma narrativa envolvente e que chama a atenção do leitor com suas inúmeras linhas de pensamento, digna de memes de cortiça na parede e um olhar vidrado enquanto liga fatos com um pedaço de lã vermelho, Pamuk traz em sua obra peças e poesias atemporais, reflexões psicanalíticas, revelações perturbadoras e questões sem resposta, mas que deixam o gostinho de plenitude e explosão mental. A finalidade não é saber se matou ou não, assim como não é saber se traiu ou não, mas perceber os ciclos da vida, da tragédia e da História.

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