Análise: Jogo Perigoso, de Stephen King

Heitor Guimarães
Em Suma
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5 min readApr 29, 2021

Pelo amor de Deus, homem…

Essa análise vem tardia comparada à quando terminei de ler esse livro, mas, como diz meu amigo João, “o ócio é importante para o rendimento”. Assim, dei algumas semanas entre leituras e análises. Enfim.

Eu tentei ler esse livro algumas vezes já. Foram três, contando essa que consegui terminar. Como qualquer livro do Stephen King (a maioria dos que eu li, pelo menos), ele demora pra engrenar. A questão é que ele demora muito pra engrenar. Tipo mesmo. E traz alguns clichês do autor que, se você já leu vários livros dele, você sabe que eles vão acontecer. É a questão das vozes, todas falando em simultâneo, é a questão de um acontecimento no passado que vai ser relembrado durante toda a história, enfim. Antes de dar o parecer, vou fazer um resumo (com spoiler, claro).

A personagem principal e seu marido vão até uma casa do lago que possuem para fazer uma brincadeira sexual, tipo um 50 tons de cinza bem mais suave, sabe? Só umas algemas nos pulsos dela. A questão é que não é não. E no meio disso, o maridão morre, com a personagem ainda algemada na cama.

Em uma leitura complementar, um livro também do Stephen King em que ele dá dicas a escritores (Sobre a Escrita) e que foi escrito mais ou menos na mesma época que Jogo Perigoso, ele deixa bem clara sua pretensão: a moça algemada na cama foi deixada lá por ele pra um exercício, uma forma de estudar o comportamento humano de como uma pessoa se resolveria em uma situação como aquela. Dá pra ver na agonia da moça, assim como é descrito pelo autor em seu ensaio, que ele não tem pretensão de ajuda-la, ele apenas narra o que ela faz e, se ela não faz nada, ele diz que ela não fez nada.

Presa na cama, o marido morto no chão, Jessie começa a ouvir vozes de várias mulheres e personagens com quem já conviveu, fases e faces dela mesma. E com isso, vai aprofundando o contato consigo mesma e lembrando sobre fatos e passagens de sua vida que influenciaram em estar onde está. Tipo aquele negócio de efeito borboleta, sabe? Todas as decisões que tomamos nos levam onde estamos hoje, sem exceção.

E assim continua a narrativa. Será que Jessie consegue sair da cama e deixar suas algemas para trás? Será que alguém chega e a tira das algemas? Será que alguém chega e fica observando-a, quase nua, enquanto se toca? Será que há algum contato com o sobrenatural que chega e milagrosamente salva Jessie e revive seu marido? Ou a estupra? Enfim, leitorzinho, você pode ler o livro ou continuar a resenha para descobrir.

“MEU DEUS, HOMEM, O QUE ESSA POBRE COITADA FEZ PRA VOCÊ?!”

Ler Jogo Perigoso é perguntar isso pro Stephen King o tempo todo. Com a moça presa na cama, o livro é monótono por boa parte dele. Não que nada aconteça, mas eu não senti que houve uma sustentação real em todo aquele quadro. Jessie faz várias coisas para tentar se livrar, e várias coisas acontecem ao seu redor para que a narrativa não fique monótona, mas A MIM, não funcionava.

Até que, após insistir em mais um capítulo e relevar mais uma digressão desinteressante sobre uma personagem perdida que vai ficar rasa pelo resto da história, mas que terá sua importância eventual (mais uma vez, um clichê do King), nos percebemos engajados na luta de Jessie, sentindo sua sede e seus medos, revivendo com ela seu passado.

Jessie relembra, algemada, que foi assediada por seu pai. Relembra de como tinha um afastamento da mãe. Relembra de como afastou a melhor amiga e a terapeuta que quiseram um dia que ela se abrisse sobre esse episódio. O motivo de ter se casado com o marido. A voz e a força que tinha de quando era criança.

Em meio ao turbilhão encarado por Jessie, uma enigmática figura surge no quarto durante a noite e fica observando-a. Toda essa linha de narrativa é uma história a parte, desenvolvida no final do livro como uma adição desnecessária, mas inteiramente interessante para a história. Veja, não há motivos para que as duas histórias (a da figura e a de Jessie) se encontrem, mas a existência dela (como uma força sobrenatural ou não, o que só descobrimos no final) impulsiona Jessie ainda mais em sua luta para sair de suas algemas.

A introdução dessa figura é um capítulo que vale pelo livro inteiro. Os paralelos que King traça com o conto “O Corvo”, de Edgar Allan Poe, me trouxe arrepios na espinha de cima a baixo, e a figura foi tão bem construída, pálida no canto do quarto, encarando a acorrentada Jessie na cama, que eu determinei que eu não poderia ler os capítulos noturnos durante a noite, por medo de, na minha fértil imaginação, acordar no meio da noite e ver a mesma pálida figura me convidando a jogar à ela todos os meus anéis.

Jogo Perigoso tem sua dose de terror, de monotonia e de mutilação. Claro, é outro clichê do King, não é? E não é ruim, os temas repetidos do autor fazem dele que é, com todo o sucesso e tudo o mais. Também trás seu humor muitas vezes de mal gosto, mas que, admito, muitas vezes me fizeram dar risada.

O Netflix fez um filme bem interessante sobre. Tomam certas liberdades, claro, como excluir as vozes e deixar a Jessie ser atormentada apenas por ela mesma e pelo ex-marido. Mas foi uma estratégia BEM interessante, eu gostei.

Em suma, Jogo Perigoso é… mais um livro do King. Não é meu favorito, mas também não é o pior que eu li (ou será que é? Não sei ranquear, só sei que não é o melhor — que também não sei dizer qual é). Vale a pena a leitura pelo capítulo da criatura, que termina o livro como um foragido tenebroso da polícia — que não faz nada contra Jessie, que corta o pulso e quase despela inteiramente uma das mãos para se livrar de uma das algemas e alcançar as chaves. O perigoso, nesse livro, é o tempo de demora pra engrenar e o clichê ao fã, que pesa mais neste do que nos outros. No entanto, para o novo leitor, deixa o gosto de quero mais. Vale a pena investir, King é sensacional, nunca é demais.

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