Análise: Nêmesis, de Philip Roth

Heitor Guimarães
Em Suma
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5 min readApr 29, 2021

O quanto uma narração sobre pólio pode ser sobre COVID?

O livro enviado pela TAG Curadoria no mês de abril.

Nêmesis foi minha primeira leitura de Philip Roth. Paradoxalmente, este é o último livro publicado pelo autor. Foi o livro de Abril enviado pela TAG Curadoria e traz de maneira extremamente clara, tudo o que estamos vivendo, mesmo que retratado no meio da segunda guerra mundial e escrito em 2010.

O livro conta a história de Bucky, um forte professor de Educação Física que não pode ir combater na guerra devido aos grossos óculos. Isso o deixa confinado em sua cidade em um calor escaldante (e extremamente bem retratado), encontrando seus alunos em uma parque diariamente para mantê-los ativos durante o verão. É quando, tímida, uma doença começa a surgir do outro lado da cidade, eventualmente chegando até seu bairro. É a poliomielite.

Assim, Bucky vê a doença se espalhando entre seus alunos e fica em dúvida quanto continuar com o parque aberto ou fechá-lo, entre seguir a vida fingindo que nada está acontecendo ou pedir para as crianças, principais afetadas, ficarem em casa. Tudo fica pior quando seus alunos começam a morrer.

Parece familiar?

Bucky tem contato com vários familiares que acham que ele tem sua parcela de culpa no espalhamento da doença. Ora, ele não quer fechar o parque. O professor acredita que não há necessidade disso, uma vez que não consegue pontuar exatamente a forma com que a doença é espalhada, já que não havia sido estudada a fundo. Assim, acompanhamos avalanches de fake news, opiniões obtusas sobre ter a doença surgido em uma população específica e depois se espalhado, sobre instalar o pânico e sobre ser uma grande conspiração para matar um povo determinado.

É, definitivamente, é familiar.

Para fugir da doença que se espalha entre as crianças e, ao mesmo tempo continuar sendo útil, Bucky aceita um emprego em um acampamento de crianças onde trabalha sua namorada. Lá, ele torna-se treinador de natação e começa a auxiliar no bom andamento do acampamento, vivendo sua doce vida com a namorada em uma ilha isolada.

Até que a pólio chega ali também e o acampamento é fechado.

O professor começa a se perguntar se ele é quem é o vetor da doença.

Começa assim a parte final da história.

No começo do século passado, uma mulher chamada Mary Mallon pegou febre tifoide, em uma gravidade super baixa. Ela ficou bem, mas a filha de seu chefe (ela era criada da família) teve tifo e morreu.

Depois de algum tempo, Mary foi trabalhar em um restaurante. Muitos dos clientes morreram de febre tifoide. Foi então que perceberam que ela tinha parte nisso e ficou internada durante três anos. Veja, Mary era saudável, mas ela era um vetor que espalhava febre tifoide.

Ao ser liberada de sua internação, Mary voltou a cozinhar. E as pessoas voltaram a pegar febre tifoide. Assim, Mary foi internada definitivamente, ficando 23 anos em quarentena. Quando faleceu, sua autópsia constatou que ela ainda era vetor da febre tifoide. Aportuguesado, seu nome ficou conhecido como Maria Tifóide.

POIS MUITO QUE BEM.

Nêmesis é uma leitura rápida, de um dia. Mas o impacto que traz consigo perdura durante algum tempo. Seu enredo é extremamente atual, muito muito atual mesmo, de modo que conseguimos ouvir no nosso dia a dia, em tempos de pandemia, todas as frases e gritos utilizados pelas mães ao xingarem Bucky por continuar reunindo seus filhos nas praças, bem como as teorias descabeçadas sobre a transmissão da doença.

A escrita de Roth é extremamente flúida e rápida, não perde o momentum. Ver as reflexões de Bucky sobre o aumento do número de casos e aumentos no número de mortes bate na nossa porta, ou melhor, derruba, uma vez que esse é o sentimento diário da maioria dos brasileiros desde março de 2020. O sentimento de incapacidade de Bucky também traz à lembrança o fato de que somos impotentes frente ao vírus, e no caso do professor ainda tem um gosto ainda mais amargo por saber que também era considerado impotente frente à segunda guerra mundial.

O professor trava, assim, duas batalhas simultâneas contra, me arriscando a ser maniqueísta, o bem e o mal. Ele vence alguma?

Bucky é Maria Tifóide de poliomielite. Na verdade, em termos. É uma forma de pensar: Ele leva a pólio ao acampamento, talvez era vetor para os garotos do parque. Quando a doença efetivamente o atinge, ele fica meses acamado. Culpando-se, ele não deixa a namorada seguir com os planos de casar-se com ele, pois se considera inválido por suas sequelas, além de se considerar um lixo por acreditar que era o responsável pela doença das crianças (muitas morreram). Na minha opinião, é a forma correta de se pensar.

Mas, em reflexão, também podemos pensar que não, ele não era vetor, ele pegou a pólio no acampamento, uma vez que dormia ao lado do garoto que teve o primeiro caso. Mas, neste caso, como a pólio chegou no acampamento? Bucky foi o último a chegar, uma semana antes do primeiro caso acontecer.

Bucky torna-se autopunitivo, vivendo o resto da vida com as sequelas da poliomielite que o impede de continuar praticando exercícios físicos e seguir seus sonhos acadêmicos e familiares. Também se confina dentro de si mesmo, não permitindo-se viver e levando consigo o fantasma de seus erros para sempre. Não consigo dizer que não faria o mesmo, por mais destrutivo que isso parece ser. Entendo a posição de Bucky negando todos aqueles que tentam ajuda-lo.

Você conseguiria deixar de lado essa responsabilidade? Aliás, você iria se considerar responsável?

Trazendo a reflexão para o momento atual, qual a sua responsabilidade ao ter ido em uma festinha sem máscara com os migos na sexta e no almoço de família no domingo? Deu tudo certo depois de alguns dias? Ou o vovô começou com uma tossezinha seca e terminou com caixão e vela preta?

Como um virginiano que torna tudo sua responsabilidade, minha posição e atitude é definida.

Reprodução do vírus da poliomielite

Em suma, Nêmesis poderia ter sido escrito ano passado, mês passado, ontem! Poderia substituir-se a pólio pelo corona e teríamos a mesma história, completamente verossímil, igualmente triste, igualmente aterradora. A qualidade de sua escrita nos leva a não querer largar o livro, e a proximidade dele nos coloca no centro de um enredo efetivamente real, completamente humano. É a leitura ideal para os tempos de pandemia, a reflexão precisa do que vivemos e sobre a responsabilidade inerente de sermos, todos, vetores potenciais. Em suma², continuemos em casa, quarenteners.

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