Análise: “O Deserto dos Tártaros”, de Dino Buzzati, ou sobre as horas que passamos no forte.

Heitor Guimarães
Em Suma
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10 min readMar 1, 2021
Esse livro aí é o comentado nesse texto aqui

A literatura italiana tem, em seu grande arcabouço, um dos livros mais significativos do século XX, escrito pelo jornalista Dino Buzzati. O autor tinha medo de que estava, com o tempo, perdendo sua vida entre as linhas que escrevia no folhetim em que trabalhava e, assim, escreve “O Deserto dos Tártaros”, tornando, sob a perspectiva de Giovanni Drogo, a espera algo louvável.

Em primeiro momento, devo dizer que sempre fico receoso em não entender muito bem todas as nuances dos temas trazidos nos textos que leio. Ora, é com toda certeza responsabilidade do autor deixar que o texto fale por si (caso tenha mais interesse no tema, leia sobre “A Morte do Autor”, de Roland Barthes), mas a interpretação cabe exclusivamente ao interlocutor, e, como bom virginiano, sempre procuro interpretar da forma que mais se aproximaça da perfeição, seja ela qual for.

O livro diz respeito a um rapaz, Giovanni Drogo, que é designado para passar um tempo em um forte, o forte Bastiani. Ele guarda a fronteira norte do país onde se passa a história e há relatos que há muitos anos vieram inimigos, tártaros, deste local. Assim, a responsabilidade do forte é guardar a fronteira norte para que uma invasão deste povo não torne a acontecer. No entanto, não há sinais em absoluto que uma invasão desta pode acontecer em qualquer ponto, do presente e do futuro, mas a atmosfera que existe no forte impõe que tal fato pode acontecer a qualquer tempo. Assim, Drogo segue o conselho do capitão do forte e se propõe (como se tivesse real escolha) a ficar ali durante quatro meses, podendo posteriormente pedir uma transferência por motivos médicos. Depois de conseguir entrar na rotina do forte e se acostumar com ele, no entanto, Drogo percebe que pode passar mais algum tempo ali esperando a invasão tártara, caso algum dia esta resolva acontecer, e, com isso, compartilhar de toda a glória que a guerra contra este povo pode de trazer.

Ele já está acostumado à rotina do forte, ele já sabe o que acontece e como acontece e já tem familiaridade com as pessoas. Assim, percebe-se em Drogo que já assume uma posição de conforto dentro do forte, é sua decisão ficar ali

Temos a tendência a achar que a posição de conforto não é algo bom. Quando citada em alguma conversa, aparece com um tom pejorativo, um sentido de estar preso em algum lugar pois ali não há novidades, não há surpresas e também não há fuga da rotina. No entanto, não entendo muito o motivo para tanto. Ora, todo ser humano busca o conforto onde está, e se não está efetivamente em uma posição confortável, corre atrás dela. A insatisfação existente já é em si só uma quebra do paradigma da posição de conforto, indicando que a própria perspectiva de não sair de uma posição por ser confortável já quebra a sensação de conforto. Se algo está errado a ponto de se perceber que está em uma posição de conforto e algo deve ser feito para sair dela, já não é mais uma posição de conforto em si mesma. A visão própria em posição de conforto já anula a si mesma, uma vez que o pensar sobre ela já indica uma vontade de partir, significando que não é tão confortável como poderia ser. Ainda neste sentido, qual o problema em se permanecer na posição de conforto? Ora, Drogo resolve ficar no forte por já saber toda a rotina dali e se sentir confortável ali, e sinto que a finalidade principal não é a posição de conforto por ele adotada, mas a perspectiva irreal de futuro e vislumbres que não existem no plano real, de certa forma, por um tempo.

Drogo permanece anos no forte, mais de trinta no total. Com isso, percebemos a passagem do tempo, percebemos como as coisas acontecem e como elas vão se desenvolvendo. Conseguimos perceber as modificações que se desenrolam nas linhas de comando e como as decisões diferentes afetam o forte, bem como a história de invasão tártara perdendo forças. Percebemos Drogo se afastando de sua família e de suas buscas por um futuro diferente daquele em que se encontra pois fica preso em uma esperança vã. O livro trata sobre ficar preso aguardando por dias diferentes e não tomar atitudes para que esses dias sejam efetivamente diferentes.

No mesmo sentido, há que se pontuar que Drogo espera por algo que está fora de seu controle, que só poderia ser feito e decidido e colocado em pauta pelos tártaros. Ora, não há o que o rapaz fizesse que força-se os tártaros a saírem de suas tocas ou ocas ou casas ou arranha céus e cruzassem a fronteira norte e entrassem, tais quais tempestades, pelo forte. Em uma relação direta com o leitor, não há que se dizer que (uma das) lições que devem ficar é de que devemos correr atrás do que queremos, mas de perceber quando algo não está ao nosso alcance e controle e quais decisões tomaremos frente a este fato. Drogo passa sua vida toda trabalhando no forte e esperando a invasão dos tártaros, algo que não estava em seu controle e o fez esperar até os últimos dias. Os tártaros chegam, afinal, mas Giovanni já está muito debilitado para sequer encará-los pela luneta, tendo sido arrastado para fora do forte no dia que seria o ápice de sua vida, o momento que esperou a vida toda.

Assim, o deserto dos tártaros é um grande descampado onde algo pode acontecer a qualquer momento, mas isso não significa que realmente vai acontecer algo. É este o ponto principal desta narrativa: nós temos de identificar os desertos da nossa vida e saber quando virar as costas para eles. Ora, todos teremos os nossos fortes e todos temos o tempo a ser passado nele, os clarins a tocar, as rondas a se fazer, mas isso não quer dizer que precisamos fazer de todas as nossas escolhas e de todas as nossas perspectivas um forte Bastiani. Nesse sentido, devemos saber olhar para as oportunidades e saber quando se trata de um deserto e quando se trata de efetivamente uma sombra no deserto que é, sem dúvidas, um exército! Ora, um deserto por si só é uma paisagem inóspita, então qual é o sentido de ficarmos esperando e esperando algo crescer e vingar ali?

Também é importante o fato de sabermos diferenciar o que é nosso deserto e nosso forte e o que é o dos outros. Para ser mais claro, nem todos os fortes que queremos sitiar é um forte que vale a pena. Mais do que isso, às vezes precisamos abrir mão de um forte que nos é querido no coração para termos o vislumbre de dias melhores e de resultados mais palpáveis. Drogo fica em seu forte, que é próximo de seu coração e não tem relação ou ligação alguma com seu DEVER de vida. Em algum momento dentro dos quatro meses que passa ali, percebe que QUER ficar no forte, QUER lutar com os tártaros, QUER ter a glória. Muitas vezes, parece que ficamos no forte por uma obrigação, que estamos no forte porque nos mandaram ficar ali através de uma assinatura de algum superior. Não é bem assim, muitas vezes o estar no forte é um sentimento de pertencimento nele, o que nada tem relação com o sentimento de posição de conforto. O forte muitas vezes faz parte de maneira tão intrínseca na vida das pessoas que elas não conseguem, ou mais importante, não querem deixa-lo.

Chega o “Deserto dos tártaros” justamente para nos fazer analisar esta questão: estamos no forte porque precisamos, queremos, ou já nos escapou a perspectiva de sequer conseguirmos sair dele?

1. Da necessidade de estar no forte: Sejamos claros em dizer que, nesta análise, o forte está sendo encarado como um trabalho. A necessidade de estar no forte é a necessidade do emprego. A maioria das pessoas precisam de uma fonte de renda, e o emprego é o que promove esta renda. Assim, para muitas pessoas, o estar no forte e olhar o deserto é uma necessidade básica. Não dá pra simplesmente abrir mão do forte e dizer que se cansou de esperar pelos tártaros, pois há outros inimigos fora do forte que vão chegar bem rápido caso resolva sair dele: fome, miséria, pobreza. Some tudo isso a uma pandemia que não tem fim e se agrava um pouco mais a cada dia que passa e teremos que ficar dentro do forte, perder a vida lá dentro, em termos, é melhor do que estar fora dele.

2. De querer estar no forte: Vamos mudar, para um melhor entendimento do segundo ponto, o significado de forte. Nesse sentido, ele não deve ser encarado como fonte de necessidade básica, ainda que deva ser encarado como um emprego e fonte de renda. Aqui, o forte é visto como um emprego em que queremos estar, um daqueles sonhos de emprego que buscamos alcançar. Por vezes, pode nem ser um grande sonho, algo que faça grande sentido ou que trará uma glória tão grande como a luta contra o invasores nortistas, mas é um forte em que queremos trabalhar e frequentar, um deserto que dá gosto de esperar e observar em busca do exército. Qual a capacidade que podemos ter de olhar o forte do outro e dizer que não vale a pena perder a vida dentro dele, se é exatamente isso que quer o sentinela? Drogo talvez se encaixe neste ponto. Passa o tempo e caem as peles, desgasta-se a pedra e mudam-se os parentes, mas Drogo fica no forte por deliberada vontade, em certo ponto e certo sentido, equem poderá julgá-lo? A espera faz parte de sua vida, e dá um sabor estranho na boca pensar que aguarda-se algo que pode ser que nunca chegue, mas é disso que sobrevive Drogo e faz-se parte do forte. Pode se argumentar que fica por posição de conforto, pode se argumentar que fica simplesmente por não querer viver outra rotina, mas, se fica simplesmente porque quer, pode julgá-lo? Ora, atire a primeira pedra quem nunca foi Drogo, então. Para deixar claro: estar no forte por ser uma vontade intrínseca é uma coisa, já ficar nele por medo de sair (e conhecer outras rotinas e outras culturas e, quem sabe, outros fortes), é outra.

3. Quando não há outra saída: O terceiro ponto do forte é quando não há outra saída, estar no forte é a única opção que se tem. É como se fosse uma extensão do primeiro ponto, somado com o tempo de permanência ali. Drogo também passa por este ponto: em um período de sua vida, já se vão tantos anos de espera que não há outra coisa a se fazer, não há outra forma de se encarar a questão ou onde ir, esperar no forte pelos tártaros é tudo que ele tem. Chega um ponto em que está tão embrenhado na rotina e na vida do forte, no dia a dia dele, que não sabe fazer mais nenhuma outra coisa.

De qualquer forma, o forte existe e cobra seu preço, de todos nós, assim como de Drogo. Olhando por outros olhos toda a narrativa, talvez o foco seja a espera por algo, não necessariamente o ficar parado em algum lugar à espera de algo. Veja, são coisas diferentes: esperar por algo não quer dizer que precisamos não fazer nada nesse meio tempo.

Muitas vezes, durante a espera por dias melhores, que vislumbramos por algum motivo e imaginamos que, afinal, temos direito a eles, nós desenvolvemos outras coisas, por vezes desconexas e não correlatas, mas que dê alguma forma distorcida vai, em algum momento, se encontrar com aquilo que almejamos. Essa é a espera por algum dia em que há rendimento, ou seja, mesmo que não exista ligação de uma coisa com outra, não se fica parado esperando que as coisas caiam do céu, que é a espera sem rendimento, em que se fica parado esperando por algo. Esta é reprovável, se algo neste contexto todo chega a ser. Ora, realmente não há rendimento e não há ação para transformações na vida. Não há desenvolvimento e, infelizmente, esta é opção que faz Drogo em sua estadia no forte. Apesar de ser uma escolha deliberada estar ali (a partir de certo ponto), quer ali permanecer e não conseguir maneiras de ir para outro lugar e ter a posição de conforto seu peso na decisão, o aspecto que pode ser julgado na atitude de Drogo e quiçá analisada nas atitudes que todos tomamos, é este aspecto de não rendimento. Este é o ponto que nos deixará sempre parados e presos no mesmo lugar efetivamente, aguardando por dias melhores que não virão. É referente a este aspecto que temos de tomar as rédeas de nossas vidas realmente em busca de nossos sonhos e de nossas ambições.

É bem claro que todos temos nosso forte e nosso deserto para observar, mas isso não quer dizer que não podemos desenvolver ideias e perspectivas correlatas, ao mesmo tempo, enquanto aguardamos os tártaros. De um ponto de vista planejador, puramente virginiano, o desenvolvimento de novas habilidades enquanto se espera o estrangeiro pode muito bem descortinar abrir vários horizontes para que busquemos construções que não sejam fortes e não envolvam ficar incontáveis minutos olhando o imenso descampado, rogando à Deus que apareça um mísero invasor.

A conclusão que se chega é que nem todo forte é negativo em si, e nem todo deserto resume-se em perda de tempo e desespero. Reprovável é a perda de tempo pelo ócio e a falta de habilidade em criar, por si mesmo, outros tipos de perspectivas que possam envolver a saída do forte, que pode prover até mesmo segurança, em alguns casos, neste meio tempo. Assim, Bastianis devem ser analisados caso a caso, de forma à trazer a reflexão como cada um enfrenta o seu forte, qual o peso e o significado que a espera eterna pelos tártaros tem em cada um, e se a verdadeira espera inútil se dará por um sonho ou pelo trabalho. Ninguém tem assegurado dias melhores, mas, com efeito, para os dias melhores chegarem depende da gente, assim como a escolha de saber quando deixar o forte e ir para outro, ou deixar os fortes em geral e realmente se aventurar pelos recantos da cidade. Drogo prefere ficar no Bastiani e encarar de frente a vazia ameaça dos tártaros, mas, no final das contas, foi uma escolha dele. Quem poderá, destarte, julgá-lo?

O detalhe é que os tártaros chegaram. Tarde demais, mas chegaram.

Atire a primeira pedra quem não encara, hoje, um deserto de tártaros.

O resumo da análise, um comentário final do livro, a lição que fica (neste) leitor, em suma:

O tempo perdido em espera pelos dias melhores pode ser aplicado em desenvolvimento de habilidades que efetivamente podem ajudar na concretização deles, sendo mais bem relacionadas com o sonho que visa a alcançar, partindo-se do princípio de que sonho esteja relacionado com ações que podemos tomar por nós mesmos.

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