Análise: “O céu da meia-noite”, de Lily Brooks-Dalton
“O céu da meia-noite”, de Lily Brooks-Dalton, foi o livro enviado pela TAG Curadoria no mês de março. Diz respeito a dois personagens que enfrentam, cada um a sua maneira, as dificuldades de comunicação, tanto interpessoal quanto pessoal, ou seja, o diálogo consigo mesmo. Em um mundo (ou em um Espaço) silencioso, Augie e Sully devem enfrentar a necessidade de diálogos internos para encontrar o sentido de suas vidas e a luz de seus futuros.
Começo a análise dizendo que está sendo difícil escrevê-la. Faz alguns dias que terminei o livro e ainda assim não estou conseguindo concatenar os sentimentos advindos com a leitura. O principal sentimento é de que as comoções e reflexões aparecem enquanto a leitura está acontecendo, mas assim que fechamos o livro, ela se esvai. Não é algo duradouro que nos faz ficar pensando sobre o livro, sobre os personagens e sobre a obra. Não quer dizer que é um livro ruim, mas é fugaz: não tem algo que você tire, ou pelo menos não teve algo que eu consegui levar comigo.
Vou ser um pouco mais detalhista sobre o enredo antes de me aprofundar neste tópico.
O livro se passa em dois núcleos diferentes: um é aqui na Terra, com Augustine, um senhor de idade que mora no Ártico, em uma base de pesquisa de observação espacial que fica durante grandes períodos do ano no escuro ou no claro (daí que vem o sol da meia-noite, período em que não escurece). Como a narrativa se passa mais ou menos no período de um ano, podemos experienciar ambas as condições com ele. Certo dia, todos foram evacuados da base (havia boatos de guerra) e Augie decidiu que ficaria, mesmo que fosse para morrer ali. Fica, assim, sozinho, até encontrar uma menina escondida em um dos quartos, Iris, e percebe que tem que cuidar desta criança aconteça o que acontecer. Depois da evacuação, o pesquisar nunca mais consegue entrar em contato com outros seres humanos e, portanto, vive ali sozinho com Iris, apenas.
Temos também o núcleo da Aether, nave espacial que fez uma viagem a Júpiter para poder estudar suas luas e agora retorna para a Terra. Quando Augie perde o contato com as pessoas aqui no planeta, o mesmo acontece com os tripulantes da missão, então estão sem comunicação voltando para um planeta em que talvez já não exista mais civilização. Este núcleo é focado em Sully, especialista em comunicação que tenta, através de rádio e outras formas de comunicação, encontrar alguém que possa lhe dizer o que aconteceu.
Assim, a narrativa se desenvolve com estes dois personagens tentando se comunicar com quem lhes faz companhia (se tiver), tentando encontrar um ao outro (qualquer um, na verdade, para ter mais informações do que está acontecendo) e também tentando comunicar-se consigo, cada um de sua própria maneira, buscando no passado justificativas — ou embasamentos — para a situação que enfrentam no momento.
Apenas para já deixar claro, caso seja parte da sua curiosidade: não ficamos sabendo o que aconteceu com o resto da Terra.
Assim como “A mulher ruiva”, entendi que trata-se de um livro sobre ciclos, sobre histórias não encerradas e como esses finais delimitados são importantes. Uma amiga muito querida sempre me lembra de não deixar portas abertas por onde passar, pois um dia um monstro (pode ou não ser um bicho papão que acaba sendo muito bonzinho, assim como pode ou não ser um coelhinho fofo mas com dentes extremamente afiados) pode sair de lá de dentro e acabar com tudo, ou quase tudo. Este raciocínio teria feito maravilhas para ambos os personagens do livro, que passam páginas e páginas refletindo sobre ações do passado que não necessariamente teriam feito diferente, mas que os atormentam a ponto de não conseguirem dadas como superadas.
Não que a superação seja tão importante assim (o que pode soar um pouco contraditório), mas saber lidar com as coisas e ficar efetivamente confortável com elas, nem que seja chamando-as pra tomar um chá de vez em quando, previne que venham arrebentando todos os diques construídos para que elas fiquem represadas. Uma boa terapia sempre pode fazer esses milagres. Não vejo o superar como nunca mais pensar sobre algo, mas como enxergar os espinhos da situação e já não se machucar mais com ele — entender que não se tratam de espinhos, só uma espécie esquisita de folha modificada.
Voltando ao livro, não senti um desenvolvimento que tenha sido crível. Ok, Augie deixa de lado sua apatia com o mundo cuidando de Iris (e não quero soar prepotente ao dizer que suspeitava desde o princípio sobre ela, mas foi uma boa surpresa entender a justificativa de sua existência e quem ela realmente era) e desenvolve um amor por ela, mas não consegui identificar na obra um processo, uma ligação real entre os dois. Se Iris era a forma de Augie repensar sua vida, suas escolhas e entrar em contato com tudo que deixou pra trás buscando um conhecimento superior universal e etc etc, quer dizer que o momento catártico deveria ter uma construção real e um ápice ainda maior, e não uma frase solta no final e um parágrafo. Apesar de tudo, não senti nele uma LIGAÇÃO com a criança, ele sempre diz algo nas linhas de “ok, não sei onde está Iris, mas uma hora ela aparece (fodasse)”. Outro fato que me incomodou muito é que vemos narrado (mais de uma vez aliás, e isso se repete com outros pontos do livro) o quanto Augie é inteligente e o quanto é premiado e o quanto abriu mão (querendo, sem se importar) para estar ali, mas isso não é MOSTRADO na narrativa. Se é tão incrível e maravilhoso e sensacional, MOSTRE QUE É, nem que seja explicando pra criança algo científico ou o que o valha para trazer alguma credibilidade ao personagem, e não fazendo-o subir em uma moto de gelo e atravessar sei lá quantos quilômetros.
Essa foi outra cena que me incomodou um pouco, N parágrafos sobre essa jornada e sobre dormir na barraca e quando algo acontece que pode ficar interessante e dar um impacto, é resumido em poucas palavras: bate a moto em uma pedra escondida, sai voando, não quebra nenhum osso, levanta e continua andando até o destino.
Indo para a nave espacial, bem: Sully também é bastante antipática, apesar de ser uma das pessoas que se dá bem com todos na nave, também composta de personagens antipáticos. O que mais me chamou atenção foi o russo mal humorado, Ivanov, que é completamente secundário e talvez seja o que mais tenha se desenvolvido na narrativa (no background, Ivanov deixa de ser ranzinza para tornar-se pró-ativo e compreensivo. Além disso, é o personagem que batalha internamente com o silêncio da Terra pois vê a perspectiva de sua família não existir mais. Sully também pensa na filha, mas não no destino dela, apenas na forma com que a tratava e como deve estar feliz com a nova mamãe). A falta de ligação com (e entre) os personagens foi tamanha que um deles sai flutuando pelo espaço, morto, e não teve repercussão real e palpável, só um choro aqui e outro ali.
Bom, Sully trabalha com a comunicação da nave. O que é irônico, uma vez que não consegue nem se comunicar consigo, de certa forma. Passa o tempo todo tentando contato com a Terra e anotando os dados das luas de Júpiter. Quando não está fazendo isso, pensa na mãe, Jean, e de como foi abandonada por ela quando ela construiu uma nova família. Bônus desse núcleo: Harper, o comandante da nave, tem uma paixonite por Sully que surge do nada e termina significando muito, mas não vemos Sully tomando uma iniciativa ou mesmo pensando muito nisso, mas no final, chegando na Terra, permite-se sentir tudo, inclusive amor por Harper. Quase um deus ex machina do romance romântico.
Mais fundo na análise — e nos spoilers — quando Augie e Sully finalmente conseguem contato um com o outro, temos a primeira brisa fresca e um diálogo muito bem construído, e isso já no final do livro. Ufa! Agora vai. Não foi: o diálogo dura menos de uma página. E, breve como foi, falando sobre as coisas na Terra (que Sully está com saudade), a astronauta já consegue perceber um profundo isolamento e teimosia que persegue Augie pela vida toda. Em uma conversa de poucos minutos? Sobre um urso? Achei forçado. A única redenção desta passagem é que Sully só percebe isso pois sente o mesmo em si.
O ponto que realmente me cativou dessa narrativa: Sully pensa — ad eternum — em sua mãe, Jean. Ficamos sabendo que Jean era uma cientista sobre comunicação por rádio e focada em exploração espacial. Augie teve um caso — dentro os inúmeros que teve, se é que alguém conseguiu acreditar nisso — com uma mulher que ficou grávida e quis ter o filho, sendo abandonada por Augie depois dessa decisão (sim, muito íntegro). Descobrimos, depois de muitos pensamentos dos dois sobre esses fatos, que eles tem uma ligação: Jean era a mulher que Augie abandonou e, assim, Sully é filha de Augie. Maravilhoso, achei incrível. Mas também tenho um ponto negativo sobre isso: quando temos as informações na mão para fazer essa descoberta, o nome de Jean começa a ser repetido à exaustão em ambos os núcleos, o que me fez sentir que ela estava sendo esfregada na minha cara como se eu não tivesse a capacidade de ter percebido essa ligação ainda, meio que subestimando minha inteligência. Some a isso o fato de histórias e reflexões serem feitas mais de uma vez com quase as mesmas palavras (tipo um copie e cole) e temos a autora quase te mandando um direct te chamando de estúpido. Pelo menos, foi o que senti.
Augie — como vim descobrir depois de uma das sincronicidades irresistíveis dos últimas dias a serem elaboradas em outra postagem — faz referência direta a Santo Agostinho, que, assim como nosso personagem do livro, foi mulherengo no começo de sua vida. Agostinho (Augustine, em inglês), tem uma relação peculiar com ursos, pois se compara a eles (?). No livro em análise, o personagem principal também tem uma relação peculiar com ursos, na verdade um, apenas: ele acredita estar sendo seguido por um urso polar e, no final de sua vida, encontra o urso morrendo na beira de um lago, se aninha a ele e ambos morrem. É um paralelismo interessante: ele vê o urso solitário em um lugar, foge com a menina para buscar uma cabana com uma antena de rádio (e assim tentar melhor contato com humanos mundo a fora) e, depois de alguns meses ali, vê o urso solitário novamente à beira do lago, assim como Augie, recém ciente (do que soube o tempo todo, de certa forma), de que Iris não era real.
Sim, sua companheira era uma projeção o tempo todo. Uma projeção de seu tempo perdido, de sua filha abandonada (chamada Iris Sully, alias, como descobrimos nas últimas linhas do livro) e dos inúmeros ressentimentos internos e portas entreabertas que deixou em sua vida, durante o espaço-tempo em que esteve presente.
Augie acaba sendo um personagem bem complicado de se conectar, e Sully me parece rasa, superficial. Ainda assim, nos importamos com o destino deles apenas pela trajetória que acompanhamos: a morte de um e a chegada de outro em um mundo que é, em uma palavra, uma incógnita.
Achei MUITO interessante a questão do sol da meia-noite, inclusive tive vontade de ficar um ano em um ambiente assim para testar meu psicológico (boa sorte nos surtos, Heitor) com 6 meses de sol e 6 meses de escuridão. No sol, penso que seria uma espécie de Midsommar, mas ao mesmo tempo seria experimentar o sumiço de horas e compromissos: ora, se é sempre claro, importa a o hora de dormir, de acordar, de comer? É tudo sempre a hora que se quer. No período noturno seria uma coisa meio terror, meses de uma letargia confusa e uma vontade desesperada de drinks, discussões, ceias, erotismo e cama.
Em suma, o livro é bom, eu diria. Longe de ser um dos melhores que já tenha lido e distante dos piores, é bom, com suas ressalvas. Uma leitura leve, de entretenimento, que termina sem dizer pra onde vai. A melhor reflexão sobre ele que li não é sobre o livro (pois é), mas sobre a função da literatura. Na revista enviada com a TAG, diz Giovana Bomentre em sua análise: … reconhecemos suas jornadas e lamentamos seus destinos. É isto o que quero da literatura: refinar a capacidade de lamentar a perda de coisas que sequer gosto.