EMBALANDO MATEUS E DRIBLANDO OBSTÁCULOS: O (RE)NASCIMENTO DA MÃE PRETA

Este texto é fruto de uma apresentação oral da autora no II Simpósio Brasileiro Sobre Maternidade e Ciência.

Olá, me chamo Jade sou mestranda em antropologia da UFBA e mãe solo. Trabalho com jovens mães negras em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Viajei mais de 2 mil quilômetros de avião e de ônibus sozinha com minha bebê de 8 meses para participar deste evento. Vim de tão longe para saber poucos dias antes que só teria 5 minutos para falar… Bom este é o meu RELATO/MANIFESTO sobre maternidade…

Primeiramente eu não sou nem vista enquanto cientista ou pesquisadora. O racismo é muito efetivo neste aspecto imprimindo em mim o signo do corpo desviante, do monstro, do sujo e do sexual. Desde que me tornei mãe e participei das diversas discussões sobre maternidade percebi que existia um imenso espaço que separa racialmente e economicamente a vivência de mães. Indignada com essa generalização da categoria mulher lhes trago uma pergunta antiga outrora tensionada pela Sojourner: MULHERES BRANCAS, NÃO SOU EU UMA MULHER? … E não sou eu UMA MÃE? Se conseguem ter essa compreensão então me respondam: POR QUE A DISCUSSÃO SOBRE MATERNIDADE AINDA ESTÁ CENTRADA NA EXPERIÊNCIA DE MATERNIDADE BRANCA POSTA COMO UNIVERSAL? Por que não estamos nos unindo contra ações de DESPEJO de mulheres negras e indígenas das moradias estudantis por estarem grávidas ou com suas crias? Suas pesquisam sobre maternidade chegam nas mães da quebrada? Vocês não se incomodam de nós negras sermos somente 3 neste evento? De acordo com o Mapa de Violência de 2015, o homicídio contra mulheres negras aumentou 54% nos últimos 10 anos enquanto o de mulheres branca diminuiu 9,8%. Das mulheres negras que criam seus filhos sozinhas, 64,4% vivem na pobreza. Notoriamente há uma falta GRAVE da abordagem étnico-raciais nas pesquisas de gênero. Muitas das teorias sobre maternidade são de caráter extremamente opressor para mães negras e/ou pobres que necessitam trabalhar fora de casa e que historicamente tiveram sua maternidade negada , seja por terem de cuidar dos filhos de brancas durante o período de escravização, exercendo o papel da ama-de-leite, seja por terem seus filhos vendidos por senhores de engenho, pela esterilização em massa durante da década de 80, ou por atualmente serem a grande maioria das mulheres que morrem durante o parto, por terem de cuidar de filhos de mulheres brancas como babás ou empregadas domésticas, e por terem seus filhos mortos pelo projeto de genocídio da população negra no Brasil. Os “ventres negados” são parte da história e atualidade de mulheres negras e pobres que não experienciam a mesma maternidade única, romantizada e santificada presente no senso comum e em muitas teorias biologicistas.

Mulheres brancas, principalmente as assalariadas, quem cuida de suas crias para que vocês possam pesquisar? Babás? Mulheres negras que na maioria das vezes possuem filhos e que amariam estar aqui como eu. Desde o movimento sufragista, que por muitas vezes se tornou nitidamente racista, mulheres brancas lutam pelo o direito de trabalhar ascendendo economicamente ao longo dos anos enquanto mulheres negras SEMPRE trabalharam. O que foi o processo de escravização não é mesmo? Infelizmente a maioria de nós, mulheres negras, ainda estamos exercendo as mesmas funções que eramos forçadas a realizar durante o processo de escravização. Estamos limpando a sujeira e a desordem que os brancos não conseguem lidar e cuidando, muitas vezes, amamentando e criando os filhos que os brancos não tem tempo para cuidar. E de nossas crias quem vai cuidar?

Venho trazer verdades inconvenientes. Romper com a máscara do silêncio que nos foi nos imposta. Como aponta Grada KILOMBA em Plantation Memories, as mulheres negras ocupam o terceiro espaço, um espaço vazio visto que a categoria mulher é universalidade na experiência da mulher branca e a categoria negritude na experiência do homem negro. Assim, a experiência de mulheres negras mães na pesquisa é extremamente complexa por ser é interpelada por uma série de vetores de opressão. Para Kilomba (2012) a boca é um órgão especial por simbolizar a fala e a enunciação que mediante ao racismo se torna um órgão de opressão por excelência que os brancos precisam controlar. Dessa forma, a boca se torna uma metáfora de posse. A máscara no sujeito negro previne o mestre branco de ouvir as verdades e ideias desconfortáveis do sujeito negro, o protege de reconhecer o conhecimento do “outro”. Nesta situação falar é praticamente impossível e quando a sujeita negra fala sua fala é interpretada como dúbia. Kilomba (2012) ressalta que o ato de falar é uma negociação entre aqueles que falam e que escutam, em que ouvir um ato de autorização para o falante; só é possível a fala se a voz é escutada. Mediante a este contexto, é de suma importância falar de opressões históricas vivenciadas por mulheres negras a partir de mulheres negras. Neste sentido o feminismo negro tem impulsionado essa possibilidade de reflexão “a partir de si” confrontando a ideia de mulher como o “outro absoluto” do homem, destituído de humanidade, ao buscar um ponto de imanência não calcado na civilização europeia e sua episteme. Para tanto a coreografia e o drible são os ingredientes indispensáveis que tornam possível alcançar o alvo do pensamento: manter a si mesmo em movimento” como aponta Renato Nogueira.

Buscando falar a partir de nós mesmo, mulheres negras mães, a autoetnografia se faz necessária na minha pesquisa como um rica experiência de investigação que me sensibiliza para o trabalho de observação etnográfica tornando-se processo e produto da pesquisa. Neste sentido, os enfrentamentos são muitos, nós estudantes cotistas somos subjugados desde o momento de inscrição no programa de pós graduação quando pessoas brancas despreparadas para lidar com o conhecimento negro avaliam nossos projetos. Estes avaliadores cometem um grande epistemicídio compulsoriamente pois a academia ainda não conhece o saber, o fazer e o pesquisar da pessoa negra. Por não existir um regulamento do sistema de cotas na pós-graduação muitas vezes as universidades as utilizam como medidas restritivas ou que não passam do papel. Então estamos diariamente driblando os obstáculos do racismo institucional que insiste em menosprezar o que não conhece e não reconhece enquanto legítimo e científico. Chegamos a ouvir absurdos como “você quer que eu tire dinheiro do meu bolso? Eu não tenho dinheiro” quando questionamos a distribuição de bolsas. Assim como outros estudantes negros, no processo de inscrição para a pós graduação recebi notas altas em todas as avaliações e uma relativamente mais baixa no projeto… Estaria uma banca branca devidamente pronta para lidar com saberes orgânicos? Eu acho que não. Quando enfim consegui me matricular a pessoa que foi escolhida para me orientar rejeitou assim fazer… Permaneci sem orientador até uma outra mãe solo se solidarizar com minha causa. Ninguém no meu PPGA trabalhava com tema mulheres negras, e aparentemente também não queriam orientar uma estudante grávida… Voltei a realizar trabalhos acadêmicos ainda na maternidade, minha licença maternidade foi em realidade regime de trabalho domiciliar. Hoje tive a oportunidade de contar com uma grande ajuda mas quando em geral quando frequento evento científicos chego até 10h sem ir ao banheiro. Sigo enfrentando imensos boicotes daqueles que não se conformam com a sujeita negra ativa dentro da pesquisa. Soube por um e-mail geral, menos de 2h de embarcar no avião SOZINHA com a bebê que não haveria auxílio para participar deste evento. Não houve uma mensagem enviada diretamente para mim, se solidarizando, nem nada. Parece que a arminha apontada para cima teve efeito imediatos e o dinheiro que restou foi dividido para beneficiar outros. Ironicamente (ou não) muitos ataques partem de outras mães que insistem em generalizar sua vivência de maternidade para toda a categoria mulheres.

Por fim lhes pergunto até quando o questão das mulheres não brancas será tratada enquanto querela? Até quando vocês vão utilizar desculpas para mascarar o seu racismo?

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Jade Alcântara Lôbo
Na Encruzilhada da Maternidade Negra

Mestranda em Antropologia na UFBA. Mãe Solo. Trabalha com Relações Étnico-Raciais, Política Internacional, Migração Haitiana, Maternidade e Mulheres Negras.