Em pedaços

Maria Izabel Guimarães
. em espiral
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2 min readMar 29, 2018

Andava com ela para cima e para baixo. Eram inseparáveis.

Em um primeiro momento, foi necessário desfazê-la em partes.

Não foi fácil. Havia por ela um apego, um carinho. Era um objeto barato, comum até, sabia disso. Havia infinitas como ela no mundo, e a coisa mais fácil seria encontrar outras iguais. Ao montes.

Tirou a tampa, deixou de lado.

“Jogo fora ou não jogo?”

Acabou guardando. Era assim, apegada, tinha dificuldade em se desfazer das pequenas coisas. Dificuldade em se desfazer de pequenos objetos e de grandes sentimentos. Demorou a entender isso.

Depois de tirar a tampa, precisou também tirar a tampinha de trás. Mais difícil essa parte, precisou da ajuda dos dentes e lembrou-se de que, quando criança, sempre ouvia a mãe dizer:

- Tire essa caneta da boca! Vai acabar engolindo tinta.

Engolir tinta… que curioso. Cuspir palavras. Isso sempre lhe fora inevitável, é verdade.

Continuou o processo. Tirou a parte que contém a tinta em si.

“A alma da caneta’, pensou.

Ser poeta dá nisso. Vê alma até em objetos simplórios.

Sobrou apenas o tubinho. E foi ele mesmo que usou, por meses a fio, para filtrar sua visão da cidade.

Se pegava o metrô, sentava-se e sacava logo do bolso o que chamou de “luneta portátil”. Observava os passageiros por ali e, é claro, dada a finura de sua invenção, não podia enxergá-los por inteiro.

Então começou a mirar nas partes.

Por vezes mirava bem no olho, e observava os movimentos.

“Que esquisito! Parece um bicho. Olho é estranho demais, eu hein!?”

“Melhor olhar algo que não se mova. Narizes, quem sabe. Mas credo, né? Nem todos são exatamente limpos.”

Das orelhas, então, nem se fala! Achou melhor deixar prá lá.

Não seria boa idéia mirar nas partes íntimas, prá que isso, deixe elas ali onde estão.

As mãos… as mãos eram uma boa. Primeiro a direita, segurando firme na pilastra do metrô, ou tamborilando no corrimão da escada rolante. Levantando e abaixando um copo plástico de café na lanchonete um pouco suja.

Mãos também são estranhas. Cinco dedos em cada. Unhas que crescem e precisam ser cortadas!

“Pensando bem, gente é coisa esquisita mesmo.”

Ao mesmo tempo, pensou: “Que engraçado isso. Todos temos essas partes. Não existem duas pessoas iguais, mas somos todos feitos dos mesmos pedaços.”

Quando observava animais também era divertido. Mas eles, sim, podem ser iguais entre eles. Claro, há especificidades. Mas coloque dois gatinhos brancos idênticos na frente de alguém e peça para adivinharem qual é Mingau e qual é Pudim. Se não for o próprio dono, olhe lá, duvido muito que acerte!

Texto produzido para o Clube da Escrita do Literasutra, Desafio 8.

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Maria Izabel Guimarães
. em espiral

Jornalista, leitora, aprendiz de dançarina e apaixonada por aprender.