Meio quarteirão

Maria Izabel Guimarães
. em espiral
Published in
3 min readJun 12, 2020

O fardo estava bem pesado. Para carregá-lo, precisei ajeitar nos dois braços, dividindo o peso de forma pretensamente igual. Sempre que fazia isso, tinha que parar no meio do caminho e refazer a distribuição que, quase sempre, ficava desequilibrada. O pulso doía e este era outro motivo que me fazia parar. O supermercado ficava na esquina, a meio quarteirão do meu apartamento na Liberdade.

O problema é que estes incômodos — o peso mal distribuído e a evidente fraqueza física — que vez ou outra aparecia também na hora dos movimentos de Yoga, uma outra história — tiravam a graça do trajeto.

A atenção estava focada em não derrubar nada, não arrebentar as sacolas, não tropeçar e, de preferência, não fazer todas estas coisas ao mesmo tempo.

Naquele outro dia — já fazia tempo isso — um semi-tropeço fez que com que as sacolas caíssem, arrebentassem e as compras se espalhassem.

Foi bem em frente ao portão daquele prédio vizinho. Entre o meu e aquele outro havia um distribuidora de água (onde também funcionava um lojinha improvisada de roupas e acessórios femininos), um banco e uma quadra de squash (que talvez fosse de tênis).

Este prédio — o quase vizinho — tinha um portão antigo de ferro, bem elaborado, de um dourado velho. Não havia portaria, mas havia um porteiro que sentava em uma cadeira há pouco mais de um metro do portão rebuscado.

Naquele outro dia, o do quase tropeço, ao mesmo tempo em que as compras se espalhavam, eu caí de joelhos.

Os joelhos sangraram, mas pouco, e eu, enquanto estancava o tímido ferimento, juntava tudo, todas as compras, para que não rolassem ladeira abaixo.

O porteiro veio, andou a curta distância entre o seu posto e o portão, e olhou quase repreensivo. De calça azul, camisa branca, e uma cara sem atitude, inflou-se como quem aproveita seu instante de mínimo poder.

Desculpe — eu disse.

Não demorei muito para recolher as latas de Heineken, os tomates — estes seguros em outro saquinho plástico -, desodorantes e pastas de dente. “Quem sou está aqui dentro”, pensei, e dentro das sacolas de supermercado acho que somos mesmo todos iguais.

Tempos depois, ao narrar a história para as amigas, não poupei detalhes, incluindo aí o olhar de julgamento e o pedido de desculpas totalmente fora de contexto. Esperava um auxílio, mas encontrei apenas um pedido de desculpas. E de mim mesma.

Já tinha passado deste ponto da rua e as compras permaneciam seguras, bem abrigadas na meia dúzia de sacolas plásticas que custavam 0,08 cada, mas que eram muito mais frágeis do que na época em que eram de graça.

O foco era chegar em segurança, não tropeçar, e também não ser furtada. Sempre achei que a quarentena era tempo fértil para vírus e assaltantes. Até as máscaras estavam liberadas, afinal.

Passei pela loja de água, calças legging e bolsas de palha, toquei o interfone do meu prédio — cujo portão era de um vidro muito fino e delicado — acenei levemente para o porteiro e entrei. Ao finalmente chegar até o elevador, respirei aliviada: — Ahhh. Foi só o tempo de deixar as sacolas no chão, passar um pouco de álcool gel na mão e recolher novamente as embalagens, para então entrar no quadrado metálico.

Nunca gostei de supermercados e, agora, com máscara, medo de contaminação e todo o desconforto adicional, a coisa tinha piorado.

O elevador, outro motivo de apreensão, chegou vazio. Entrei e apertei o nove. No andar, abri a porta com os pés (o equivalente solitário de cumprimentar com os cotovelos), tirei as seis sacolas, toquei a campainha e voltei para dentro do elevador.

Já em casa, atendi ao interfone:

– Amanda, querida, muito obrigada pelas compras. Vou fazer aquela torta de frango que você adora. Pode vir buscar às cinco. Estará em uma sacola plástica, na porta do 91.

--

--

Maria Izabel Guimarães
. em espiral

Jornalista, leitora, aprendiz de dançarina e apaixonada por aprender.