Onde vivem os afetos

Maria Izabel Guimarães
. em espiral
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4 min readApr 7, 2018
Foto: Divulgação

Não sou muito de longas conversas com desconhecidos. Não sou de encostar no balcão da padaria e puxar assunto com o freguês que toma café ao meu lado, ou de bater papo na fila do supermercado. Não por desinteresse, mas por timidez. Interesse há e de sobra.

Talvez por isso, por essa curiosidade latente, embora não tome a iniciativa, sou bastante aberta quando o contrário acontece. Quando,em uma situação corriqueira, sou convidada a uma conversa com alguém que não conheço, aceito e participo dela de bom grado.

Foi isso que aconteceu naquele dia, véspera de feriado. Sentei-me confortavelmente no ônibus que saía de São Paulo para Ubatuba, ajeitei bolsa, casaco e saquei um livro que pretendia ler em breve, depois de checar as notificações do celular.

Ela sentou ao meu lado, muito simpática, e logo começou a puxar assunto. Conversa daqui, conversa dali, percebemos que o ônibus passou a seguir um trajeto estranho, que surpreendeu tanto a mim quanto à minha companheira de viagem.

No meu caso, e para ser honesta, não houve, assim, tanta surpresa. Em geral, quando me acomodo e me preparo para ler e descansar, não fico tão atenta ao caminho. A não ser, é claro, quando se trata de uma viagem por um lugar que eu ainda não conheço.

Já ela não. Era alerta, observadora, e logo começou a questionar se o motorista estaria perdido ou se houvera algum acidente que demandasse a mudança de rota.

Disse que estava indo à praia visitar a família, que estava aposentada após muitos anos de trabalho ininterrupto.

Me surpreendi com a palavra “aposentada” sendo usada por alguém que aparentava ser jovem. Fui instigada a entender melhor sua história.

*Clara trabalhou como babá durante muitos anos. Os pais da criança, profissionais bem remunerados e muito ocupados, haviam se separado. *Laura era o nome da menina de quem Clara cuidara por tantos anos e com muita dedicação.

- Agora que estou livre, quero cuidar dos meus!

Mas ela respondeu negativamente à pergunta que fiz na sequência. Não, não tinha filhos, mas pretendia adotar.

- Mas não quero casar não! Quero cuidar do meu jeito.

Achei tudo ali muito bonito. A dedicação a uma criança por tantos anos, criança que a amava e que sentia imensa falta dela, tanto que se visitam de tempos em tempos. O desejo de compartilhar esse amor, que sentia e transbordava, com um filho adotivo, e o fato, talvez surpreendente, de não desejar ter um companheiro para poder dedicar-se integralmente à educação desta nova criança.

Entre outros assuntos relacionados ao seu trabalho e seus planos de ter um filho, falamos sobre o apego que as crianças de quem cuidara desenvolveram por ela. De fato, ela me relatou, os pais ficavam enciumados. A mãe menos que o pai, já que ela passava muito tempo fora do Brasil e desdobrava-se em afazeres pessoais, que pouco envolviam Laura.

Falou com muito carinho da menina, mostrou foto, explicitou todo seu afeto e não mediu palavras para dizer que, sim, havia uma relação ali que não se construíra entre os pais e a filha.

Naquele dia, naquela viagem, ouvi detalhes sobre o relacionamento de Clara e Laura. Não sobraram dúvidas. Era amor genuíno, carinho que transbordava e, muito provavelmente, permaneceria vivo por muito tempo.

- Você já assistiu a “Que horas ela volta”?

Foi inevitável lembrar de Val, personagem interpretado por Regina Casé que se desdobrava em cuidados com Fabinho, o filho da patroa. Lembrei, também, da cena em que Fabinho vai ao quarto de Val e se deita aconchegado com ela. O quarto era pequeno, escuro, quente, muito menos convidativo que os demais aposentos da casa. Mas era ali que dormia aquela que o acolhia verdadeiramente.

Clara nunca tinha ouvido falar daquele filme, que eu considero um dos melhores nacionais dos últimos tempos. Por isso, brevemente, contei a ela um pouco da história, com o cuidado de não entrar em detalhes que pudessem eventualmente magoá-la. Considero a trajetória da personagem bastante triste, embora extremamente delicada, e, é claro, não desejava contar o final e estragar sua experiência caso decidisse assistí-lo.

Entusiasmou-se, disse que ia procurar assistir. Torci para que visse mesmo.

Clara era de uma leveza, de uma alegria, de um interesse pela vida que eram contagiantes. Para ela tudo parecia fácil, bom e agradável.

Vejamos bem. Esta história poderia, facilmente, ter sido contada de outra maneira, em outro tom, como quem reclama de um caminho novo feito pelo motorista sem se interessar e entusiasmar pelo trajeto que iria conhecer. Mas eu me interessei por Clara e me deixei contagiar pelo brilho com que falava de Laura, da aposentadoria e dos filhos que planejava ter.

Clara tinha vida. Vida e muita alegria.

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Na praia, já no final do feriado, vi ao longe uma criança, uma menina, chorando muito. Estava abraçada a uma moça quem, pelo contexto, julguei ser a babá.

O pai a chamava insistentemente, e ela, a menina, recusava-se a acompanhar a família à outra praia.

-Eu quero ir com a *Dedé! — Gritava entre lágrimas.

- Pois é, mas agora ela não vai — afirmou o pai de forma extremamente firme, categórica e sem deixar margem para discussão nem com a criança, nem com Dedé.

Não sei se foi a proximidade do fim do feriado, o choro da criança ou os aprendizados que tive em minha breve conversa com Clara, mas a situação me comoveu de forma rara.

*Nomes fictícios.

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Maria Izabel Guimarães
. em espiral

Jornalista, leitora, aprendiz de dançarina e apaixonada por aprender.