Outra semana

Maria Izabel Guimarães
. em espiral
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5 min readJun 28, 2020

Aguardava o ônibus no ponto em frente de casa. Calçava sapatilhas. Ali, via sempre os mesmos personagens. Eles me lembravam que muita coisa seria igual, de novo. O ônibus demorava a passar e eu pensava que talvez ele tivesse vindo minutos antes de eu chegar.

Era nessa hora que sempre vinha a ideia de me programar melhor, de criar uma rotina mais organizada. Daquelas que consideram o horário em que o ônibus chegará ao ponto e, com isso, a que horas se deve acordar e tudo o mais. Mas eram exatamente esses cálculos precisos, esse planejamento rígido, que eu evitava. Fugia disso mais do que de ônibus lotado.

Lembrei do primeiro ano em que tive que começar a acordar às seis para ir à escola. Com apenas 11 anos, na quinta-série, sempre ouvia: “Com o tempo você acostuma”. Esperei por anos e anos até que esse dia chegasse. Espero até hoje e, pelo visto, ele nunca vai chegar mesmo.

Em pé no ponto, bolsa no ombro. Dentro dela, em um saquinho de pano, levava um sapato de salto, mas já me perguntava se iria mesmo calçá-lo em algum momento do dia. Tinha uma coleção enorme de sapatos altos, que iam cada vez mais permanecendo no armário, enquanto estes outros, bem baixinhos e confortáveis, iam cada vez mais para a rua. Talvez a gente faça isso mesmo. Simplifique em vez de complicar. Caminhe para uma vida com menos de tudo que não faz sentido, como um salto que cansa, machuca, e não ajuda em nada.

Enquanto esperava o ônibus chegar, ia observando as figuras de sempre. Aquela senhora que ficava ali sentava, no banco de cimento acoplado à construção de vidro e metal, todos os dias. Puxava assunto com quem chegasse, e havia quem lhe desse muita atenção. Usava um coque baixo, que prendia os cabelos crespos e grisalhos. A roupa era sempre muito simples, suja até, e era a sua magreza que sempre me chamava a atenção. Aquela figura me dava muita tristeza embora ela, a senhora, não demonstrasse ser uma pessoa triste. Sempre tinha evitado me aproximar dela, confesso. Tinha receio que, um breve olhar ou uma aproximação maior, desencadeassem uma longa conversa da qual eu definitivamente não estava afim. Muito menos àquela hora da manhã.

Chegava também aquele outro rapaz corpulento, alto, jovem e barrigudo. Outra figura que me era incômoda, sempre lançando olhares, parecia insinuar que compartilhávamos algo comum. Como se tomar o ônibus das sete fizesse de nós cúmplices. Àquela hora do dia, eu não estava para cumplicidades.

Naquela outra época, a da escola às seis da manhã, a coisa era diferente. Acordar era um sofrimento, é verdade, mas minha mãe sempre me esperava com um café fresquinho, passado na hora. Lembro de tomar o café e só comer metade do pão, sem o miolo. Foi sempre assim durante os anos em que tentar ser magra era prioridade. Aquela educação que mostra que os fins são mais relevantes do que o processo, que o prazer deve ser adiado em nome de uma meta que está sempre lá em frente, bem distante. Uma felicidade que nunca chega.

Minha mãe me levava para a escola de carro, ou então eu ia de carona com uma amiga e vizinha da mesma idade. Íamos lembrando das brincadeiras do fim de semana, ou perguntando sobre a lição de casa. Muito mais confortável do que ficar em pé no ponto, mesmo que de sapatilha, ou tomar o ônibus lotado às sete.

Os afazeres eram muitos. Lições de matemática, português, ciências, e até redações que me davam a ideia de que poderia seguir escrevendo pela vida afora. O senso de responsabilidade já era grande, e o medo também despontava. Medo de não tirar a melhor nota, ou de tirar a melhor nota e ser rotulada de nerd, de chegar à escola atrasada ou de chegar muito cedo e ficar sozinha no pátio.

A verdade é que havia uma falta de leveza, um desejo de fazer tudo corretamente — o que quer que corretamente signifique — um desejo que é o exato oposto de desejo em sua definição mais verdadeira.

E, quando me lembro deste período, há sempre uma melancolia que vem junto, como uma cor pálida que embaça a visão de uma época tão importante. E esta cor turva sempre embaça também a percepção do quão boa foi essa fase. Às lembranças são tristes por que foi um período triste? Ou as lembranças serão sempre tristes, mesmo que os fatos tenham sido alegres?

Embarco no ônibus que nem estava tão cheio. A sapatilha ajuda, pois ir em pé de salto é profundamente incômodo. Sei porque já cometi esse erro infinitas vezes, em nome de uma suposta elegância. O caminho é longo e cansativo, mas me dá a chance de olhar para cada passageiro com atenção. Adoro isso. Talvez seja a melhor parte das manhãs de segunda. Há o millenial que vai lendo um livro sobre o método startup de trabalhar. Aquela moça que não tira os olhos do Pequeno Manual Antirracista, da Djamila Ribeiro. Mas a maioria está mesmo atenta ao celular. Os olhares são frenéticos e não descansam, olhos vidrados em uma realidade que só existe dentro da tela.

Outro dia vi uma cena que não esqueci. Aquela pessoa olhava com tanta atenção para o smartphone, que resolvi espiar para ver o que a prendia. Era uma imagem de um campo de lavanda, um tapete lilás em meio ao caos da cidade. A calma e a tranquilidade condensadas em uma imagem. Achei aquilo tão cômico. Do lado de fora, só cinza, cimento e sons. A calmaria só existe no virtual, e é para lá que queremos ir.

Mais de uma hora depois, desembarco. Atravesso a Faria Lima com uma corridinha, antes que os carros acelerem, com pressa de parar no próximo farol. Começa uma semana que, como as outras, vai passar voando, deixando a próxima segunda bem perto. A movimentação na esquina com a Juscelino nos transmite sempre a ideia de que estamos indo para algo muito importante. A agitação e a urgência são de quem vai — pretensamente — fazer o mundo girar. Bom mesmo era quando me ocupava dos exercícios de matemática, português e ciências, e podia viver da escrita.

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Maria Izabel Guimarães
. em espiral

Jornalista, leitora, aprendiz de dançarina e apaixonada por aprender.