Maria Izabel Guimarães
. em espiral
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4 min readSep 1, 2020

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A rua é de paralelepípedos. Nela, há sobradinhos enfileirados, todos iguais, muito simples e muito simpáticos. É um muro branco, longo e mal cuidado, em frente aos sobrados, o que faz confundir o lugar com uma escola estadual ou com um hospital público. O corredor de entrada é curto, e leva a um pátio. Minha lembrança mais forte é da combinação de cores. O cinza dos bancos de cimento e das esculturas, o verde das plantas, e sei que havia algo — talvez uma janela ou uma porta — em vermelho também.

O Cine Segall é um destes lugares que, caso não estivesse tão registrado em fotos e matérias de jornal, eu acharia só existir em minha mente. Tenho sonhos vívidos e complexos e a memória fraca, o que, por vezes, me faz duvidar do que de fato vivi, e me dá a sensação de ter apenas imaginado ou sonhado.

Lembro que os sobradinhos me encantaram. Comentei com meu namorado à época que tinha descoberto uma ruazinha incrível, de paralelepípedos com casinhas charmosas. Eu não sabia, ainda, do tombamento da região, nem que os simples sobradinhos eram construções modernistas de 1929 e que, na verdade, já estavam bem descaracterizados. Não sabia que não eram só os sobrados da rua de paralelepípedos, mas que a eles se somavam a casa e o parque modernistas do ucraniano Gregori Warchavchik, e que foi na Vila Mariana que esta arquitetura surgiu em São Paulo — a Casa Modernista é a primeira construção deste estilo no Brasil.

Lembro deste espaço estar sempre vazio, e o que eu mais gostava era disso, da sensação de ir ao cinema no quintal de casa. Comecei a frequentá-lo em 2010. Uma época em que, ao tentar me impor uma autodisciplina, decidi que precisaria ir ao cinema todas as semanas, pelo menos uma vez por semana. Lá os ingressos eram mais baratos. Às quartas, se não me engana a fraca memória, as sessões eram quase de graça. Portanto, criei esse rito pessoal de passar por lá e ver os filmes que haviam saído há pouco de cartaz nas salas maiores. Em uma sexta, sessão das 19 horas, dividi a sala com apenas mais três cinéfilos para ver Biufiful, do mexicano Alejandro Iñarritu.

Gostava do café ao fundo deste pátio, com poucas opções de bolo e pão de queijo, e com praticamente nenhuma clientela.

Um outro corredor, este um pouco mais longo, com murais suspensos cobertos de vidro nas paredes, exibia recortes de jornais dos tempos áureos do cinema construído em 1972. O corredor nos levava à velha sala, com uma projeção de má qualidade, áudio ruim e imagem picotada. Vez ou outra, o filme era interrompido, e tínhamos que aguardar alguns minutos até o que o problema técnico fosse resolvido.

A pequena sala — com capacidade para 92 pessoas — quase sempre estava vazia, com três ou quatro espectadores apenas e, por pelo menos duas vezes, fui ao cinema sozinha. Hoje penso que talvez fosse até perigoso e que, se não pelo tombamento, o Cine Segall, localizado dentro do Museu Lasar Segall, na Rua Berta, já teria fechado há tempos.

Foi o que aconteceu com seu contemporâneo Gemini, que sobreviveu até 2010 na Avenida Paulista. Agora, em 2020, também o Cinearte, no Conjunto Nacional, foi encerrado, não sem antes ter passado por inúmeras mudanças de identidade — antes de ser Cinearte Petrobrás, foi Cine Rio, Cine Arte 1, Cine Bombril e Cine Livraria Cultura. O Cine Segall, pelo contrário, foi reformado, modernizado, e reaberto em 2018. Eu, no entanto, não voltei mais lá para reencontrá-lo diferente. Nem sei se quero.

Não sei se quero porque o que me fazia gostar dele era mesmo essa atmosfera de segredo, este espaço escondido e sem atrativos, como se fosse um quintal que escolhi para mim. Um remanescente de uma São Paulo que nem cheguei a conhecer, cidade vívida e moderna, da qual hoje me distancio por apenas sete andares e nem sei como ou se ainda vive lá embaixo.

Escolhi o Cine Segall, mas também poderia ter escolhido a Capela do Aflitos, na Liberdade ou a Praça Jorge Cury, em frente ao Parque da Aclimação. Poderia ter escolhido o Mercadão — não o Mercadão Municipal, no Centro, muito lembrado por seu sanduíche de mortadela -, mas sim aquele que levava esse nome e nem tão grande era, na Avenida do Cursino, rua paralela à em que morei até os 28 anos.

Poderia falar de uma vilinha escondida que descobri em uma caminhada despretensiosa pela Aclimação. Ou da praça em frente ao Frangó, bar ao qual fui apenas duas ou três vezes, mas cujo cardápio defendo com veemência, como quem quer afirmar sua identidade de Paulistana nata. Cardápio que só pode ser comparado ao do Veloso, na Vila Mariana — logo ali, na rua da caixa d´agua. Disputa boa que sempre leva, ainda bem, ao empate.

Poderia falar da Cinemateca — mas neste caso, prefiro não comentar e me entristecer. Ou do Centro Cultural São Paulo e de seu gramado acima da escada vermelha, onde já fui passear em tardes de sábado com não namorados que depois nunca mais vi.

Poderia falar da Avenida Paulista, o maior clichê de todos, pela qual sempre fui tão apaixonada que andava de ponta a ponta, da Casa das Rosas até o Riviera.

Poderia falar da passagem da Consolação, e das poucas vezes que a atravessei. Preferia sempre o lado de fora, a movimentação em frente ao Belas Artes, mas com a certeza de que, por dentro, São Paulo guarda os melhores segredos que nós, amantes da cidade, compartilhamos com alegria.

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Maria Izabel Guimarães
. em espiral

Jornalista, leitora, aprendiz de dançarina e apaixonada por aprender.