Cativante e super fofa — dores reais de um mundo quebrado

Emilio Garofalo Neto
emiliogarofaloneto
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12 min readMar 19, 2020
Sunny (e) com a Sapeca (d)

“Sapeca está um arraso!” É o que dizia berrando a Val, criadora de um canil na Carolina do Sul, de onde veio a Sapeca Captivating Superfofa. Sim, esse é o nome completo dela, registrado no American Kennel Club e tudo o mais. Sapeca era uma cadela Shi-Tzu, e poucos dias atrás seu organismo parou de funcionar.

Sapeca foi a inspiração para uma de minhas histórias, Soblenatuxisto. Não que ela apareça e desapareça com poderes sobrenaturais, ou saiba abrir o pote de comida. Foi o jeito dela. O temperamento de Shih-Tzu mais shihtzesco que já vi. E olha que já conheci muitos deles. Docilidade, incapacidade de ferir. Completo abandono de auto-cuidados ao deitar estatelada de barriga para cima no meio do caminho. Foi nela que inspirei o Lambida, protagonista da história. Ele faz as coisas que eu imagino que ela faria.

São inúmeras as histórias dela com familiares diversos. Não há espaço para muitas, e o coração não aguentaria. Lembro-me, entretanto, com carinho de uma brincadeira que se chamava “marmota”. A origem do nome da coisa se perdeu. Mas era muito simples. Basicamente eu sentava no chão e ela pulava em minha cabeça para ficar mastigando meu cabelo amavelmente. Ela adorava brincar de marmota. Achei uma foto dela com meu pai esses dias. Os dois faleceram. É bem estranho olhar para essa foto. Foi quando meu pai foi me visitar nos EUA, tempo em que eu fazia seminário. Sapeca o amou de primeira e só queria beijo. Pelo que me lembro, meu pai deixou.

Sapeca passou sua vida inteira comigo. Faleceu aos doze anos. Nesse tempo eu completei dois graus acadêmicos nos EUA, voltei para o Brasil, ajudei a plantar uma igreja, tive uma filha, publiquei dois livros, li centenas de outros, vi o FC Barcelona vencer quatro Champions League, preguei em quatro continentes. Sapeca não fez nada disso, bem, quer dizer, ela veio para o Brasil. Ela não fez nada muito diferente do que todo dia: roncar (um ronco grave como seu latido, como um motor seis cilindros), dormir, comer, brincar com suas irmãs. Quem viveu melhor? Difícil responder, não?

Claro, somos mais que meros animais. Nossos corações não se satisfazem apenas com as coisas da Terra. Mas meu ponto não é comparar necessidades humanas com necessidades caninas. Meu ponto é que Deus usa animais para atiçar o coração humano acerca de coisas mais elevadas.

Na criação Deus prodigiosamente projetou inúmeros tipos de animais. Não sei como foi o primeiro cachorro, Deus o sabe. Sei que hoje a diversidade canina é um dos deleites criacionais divinos. São muitos formatos e tamanhos, não são? Desde alguns que mais lembram pequenos ursos, até outros que são quase lobos, uns que são meio que ratos histéricos e alguns que se resumem a bolas de pelo amistosas. Na queda, toda a criação sofreu e geme. Inclusive cães inofensivos. Na restauração final, a criação será liberta desse cativeiro em que vive. Sapeca faleceu pois seu sistema cardiopulmonar falhou. Bem, essa foi a causa instrumental. Mas a causa primária? Sapeca faleceu pois meu antepassado Adão resolveu comer um fruto. Essa é a causa real. Eu sou herdeiro dessa culpa e corrupção. Eu tenho parte nessa morte.

A minha esperança, bem como de toda a criação, está no Deus bom que envia seu filho para fazer novas todas as coisas. E ele permite que eu experimente uma prévia dessa benção eterna por meio de muitas coisas, inclusive da harmonia no cuidado e brincadeira com bichos. E Deus permite a eles que experimentem do cuidado divino por meio de serem cuidados por gente que é sua própria imagem. Gente que à medida que se assemelha mais a Cristo, deveria cada vez mais contribuir para o bem estar da criação. Tem uma passagem no livro “Encontrei Jesus numa festa de Israel” que me marca. Falando sobre como experimentamos o descanso semanal como prévia do descanso eterno, o livro diz a respeito de um fazendeiro piedoso nos EUA:

“À lavagem diária de leite desnatado e fubá, usando uma lata como medida, papai acrescentava na noite de sábado uma porção dupla de Suplemento Mineral Perfeito do Peet para o café da manhã de domingo dos porcos. Na manhã de domingo, a mistura havia espumado e transbordado do barril e formado uma crosta tão espessa na superfície que precisava ser servida com uma pá. Era como servir pão doce com glacê para os porcos no domingo. Cada um de nossos quatro cavalos, Roy, Bob, Frank e Snoodles, recebia um galão adicional de aveia na manhã de domingo; as galinhas recebiam um galão adicional de grãos de milho para ciscar no chão… Nem mesmo na época da debulha nossos cavalos encorpados precisavam de mais aveia. Ainda assim, se refestelavam de bom grado… As explicações de papai: “Confiamos em Deus como os animais confiam em nós. Para eles, somos o seu conceito de Deus, sua imagem de Deus. O amor de Deus pelos animais flui até eles por nosso intermédio. Como conhecerão o amor de Deus se nós não lhes mostrarmos? Como saberão distinguir o dia do Senhor dos outros dias? De que outro modo podemos lhes fazer um agrado senão pelo alimento? Eles gemem pelo sábado eterno com o restante da criação.”

Juntando isso tudo, veja o que Sapeca fez por mim, sem nem se dar conta disso direito. Ela me permitiu desfrutar da criação divina e exercer o mandato de Deus de dominar e proteger os animais. Ela me mostrou a seriedade da queda, quando sofreu com olho machucado, com uma ferida na perna que eu cuidei, quando uma ligação no meio da noite disse que ela não vivia mais. Ela me deu prévias da eternidade, ao prover momentos de descanso das agruras de trabalho e estudo. Ela me deu amostras de como será quando não mais houver inimizade entre humanos e animais, no mundo restaurado. E o que eu fiz por ela? Bem, em comparação, muito pouco. Comida, água, vacinas. Muito menos passeios e carinhos na orelha do que ela merecia.

Na semana anterior ao falecimento eu fui pregar em Santo André, SP, na igreja de um colega muito amado. Após o culto, fomos jantar na casa deles. E lá mora uma baita Golden Retriever. No caminho o casal, amavelmente me perguntou se eu tinha algum problema com cachorros, afinal… enchi a boca para dizer “Não se preocupem, eu tenho quatro cachorras.” Quatro. Até dez dias atrás tinha mesmo. Que estranho. Quatro. Ajudando minha filha a preparar para a prova de matemática, nesses dias perguntei: “Filha, quantas patas de cachorro tem em casa? Quatro cachorras, quatro patas…” Quatro coleiras e pratos ficavam pela cozinha. Não mais. O prato de que eu sempre desviava não está mais lá. A presença da ausência de um prato de louça no caminho faz barulho.

Sapeca e Dedé

A Sapeca, das quatro, sempre foi a que mais gostou de ficar perto da Dedé, minha filha. Desde que ela era pequena, Sapeca dormia debaixo do berço. Montava guarda, com sua ferocidade canina e valentia deslumbrante. É claro, se um dia entrasse um ladrão, Sapeca iria recebê-lo com carinho e afago.

No dia de Natal no ano passado, ela passou mal. Tarde da noite, caiu desmaiada. Uma síncope. Corrida para o veterinário. Passou uns dias por lá. Dedé, minha filha, escreveu cartinhas para ela. O pessoal da clínica amavelmente colocou na parede de onde Sapeca estava. Todos os veterinários e funcionários de lá passaram a conhecê-la como “a Sapeca das cartinhas.” Começou um tratamento cardíaco e mesmo assim em três meses deteriorou muito sua condição. Foram várias visitas à clínica veterinária, inclusive algumas noites por lá. Na última noite da Sapeca em casa, ela dormiu ao lado da Dedé. Roncou alto e de barriga para cima, largada como gostava. Na noite seguinte já precisou voltar à clínica, onde não mais resistiu. De manhã eu precisei contar para a Dedé que a amiga dela não está mais conosco.

Desde pequena, no tempo de mera bola de pelo fofa, ela era louca por banana. Entendo. Veja, entendo não como um apreciador, pois a confissão do dia é algo que não é nenhum segredo, mas também é pouco divulgado. Eu não gosto de banana. Entretanto, consigo entender o amor pela fruta. E o amor de Sassá por banana é algo lendário, famoso em sete estados brasileiros e dois norte-americanos.

Nos últimos tempos, dei de fazer uma coisa que devia ter feito mais. Ao passar no mercado, comprar umas bananas só para as cachorras. Que delícia sentar no chão com cinco ou seis bananas e ir alimentando Sapeca, Sunny, Princesa Anna de Arendelle e Flor. As figuras pulando umas sobre as outras. Um misto desengonçado de rosnadinhos, pelo, olhos brilhantes, pedaços de banana, dedos e barbichas meladas de fruta.

Jabuticaba era um amor secundário dela. Não tanto como a banana, mas nada é. Desde que moramos numa casa com jabuticabeira, a Sapeca descobriu que em suas saídas para o quintal, sempre vale a pena dar uma passadinha perto da árvore para ver se encontrava algo. E por vezes, se ela estivesse sumida, podia ter certeza que ela estaria ao pé da árvore.

Foi num final de semana muito estranho, o primeiro como todo mundo em casa por conta de COVID-19. Véspera de domingo em que eu iria fazer uma transmissão ao vivo de um sermão lá do escritório da igreja. Eu terminando os preparativos e ela com dificuldade de respirar. Fomos para a clínica e ela ficou para cuidados mais profissionais. Com doze anos ela já era idosa. Ainda assim a saúde andava razoavelmente boa e foi um declínio súbito.

Domingo de madrugada e vem uma ligação maldita. Domingo? E isso é dia de qualquer criatura de Deus morrer? Esse é o próprio dia de viver! Se bem que, é dia de descansar também, o domingo. E descanso aconteceu. Sei que a gente não escolhe essas coisas, mas pensando bem, acho que quando for minha vez, domingo não é uma má opção .

Coração apertado por causa de Sapeca, acordado desde 04h00 com a ligação da veterinária, mas com o dever de servir o povo do Senhor com sua palavra. O sermão foi sobre Mateus 11.1–6. Quando João Batista, lá do cárcere, com as mãos trêmulas e joelhos vacilantes, pede para os seus discípulos irem perguntar para Jesus se era ele mesmo. Falei sobre Jesus não prometer para João que ele sairia do cárcere, nem nada assim. Ele mandou dizer para João que ele era o messias, dando várias evidências. Junto com isso, João devia entender, estava a segurança de que todas as promessas das Escrituras irão se cumprir. Ali estava em carne a maior delas. Um dia o julgamento virá para o mal e para a morte. Um dia, todos os cárceres que experimentamos por causa da queda terão fim.

Venho me sentindo assim como tudo isso de COVID-19 e tanto mais. Não só com o vírus, mas com o ser humano em sua tolice. A minha tolice também, que fique claro. Pois tolo que sou, fico frustrado quando as coisas não saem de meu jeito. Fui ao escritório para fazer a transmissão do sermão para a igreja.

Fiquei meio frustrado pois a transmissão parou no meio. Consegui ao menos salvar o áudio, mas foi meio triste ter tido todo o trabalho de preparar a transmissão e ser frustrado pelo sinal do wi-fi. Mas é sempre assim, não? Coisas param no meio. Vidas param no meio. Todas elas. Os planos estão todos parados, ou no mínimo suspensos até segunda ordem.

Saindo de lá, passei ainda na clínica veterinária para ver os detalhes do que fazer depois. Deserto, apenas a moça que atende e o médico de plantão. Ela me explicando as coisas e na televisão da sala de espera algo surreal: “O retorno do Rei”, terceiro filme de O Senhor dos Anéis. E eu ali olhando justamente Frodo se despedindo dos seus amigos junto a Gandalf. E a atendente me explicando sobre a despedida. Confesso que se me dissessem que isso aconteceu, eu teria dificuldades de acreditar, então entendo se você não conseguir crer. Ali estava uma cena brutalmente bela de despedida na televisão, e eu ouvindo a atenciosa atendente me explicar sobre as diferentes opções para uma despedida digna. Eu tentando entender aquilo tudo e me sentindo como num porto cinzento. Esses dias têm sido todos meio assim, como Frodo, não mais à vontade por aqui. A gente se acostuma com lugares, facilidades, possibilidades, pessoas e bichos. E isso passa. Uma crise como essa serve como uma lente de aumento. A gente vê melhor as pessoas; tanto as atitudes positivas que estão aparecendo o tempo todo, gente mostrando enorme capacidade criativa para o bem; quanto as negativas, na dificuldade impressionante de fazer as pessoas colaborarem em coisas tão simples.

E óbvio que minha pequena enorme tristeza é ínfima em comparação à uma tragédia global. E o ponto é exatamente esse. O mundo parou por causa da pandemia, mas a tristeza e o quebrantamento do mundo quebrado não. Se a pandemia é uma rachadura na abóbada de cristal sobre nossa cidade, os milhões de pequenos vidros quebrados insistem em cortar os pés descalços de nossos corações despreparados. Tem pandemia e tudo o mais. E ainda assim pessoas continuam tendo de lidar com dores no joelho, carros continuam quebrando, resistências de chuveiro se vão em pleno banho, encomendas extraviam, amigos se desentendem, casais que se amam brigam por besteira, viagens há muito sonhadas se mostram impossíveis, estornos que já deviam ter chegado no prazo de 48 horas insistem em não aparecer, eventos cuidadosamente planejados são adiados indefinidamente, chaves são perdidas e feijão é queimado. Seria muito mais fácil focar no problemão se os problemas menores não estivessem tapando a visão.

Ao mesmo tempo, penso, isso nos coloca no lugar. Hoje, conversando com um colega pastor, confessei que meu coração estava esmorecendo e ele sabiamente me lembrou de que o jeito é labutarmos cada um na esfera que nos cabe. Os problemas que chegam pela grande mídia e pelas redes sociais são tão variados e enormes que podemos perder o foco, o fôlego e não fazer o que está à mão. E sim precisamos cuidar das dores, tratar as feridas pequenas. Elas nos ajudam a lembrar que a vida está acontecendo mesmo em confinamentos. Assim como a minha dor da perda de uma fiel companheirinha arde, há milhões sofrendo dores grandes e pequenas. Gente que ficou em outro país enquanto os seus o esperam. Gente quer só queria conseguir fazer uma última viagem antes de uma data importante. Gente que está vendo seu pequeno negócio pelo qual tanto lutou, começar a ruir. Gente que não está achando um remédio importante para cuidar do filho. Gente que solitária que tinha no futebol sua única alegria. Gente que perdeu um bichinho e que em seu coração entendeu o que só quem já teve bichinho entende: não é só um bichinho. É uma dádiva divina para falar de coisas mais misteriosas. Não menospreze as dores que para você parecem pequenas.

De tarde voltei lá na clínica pegar a coleira dela que tinha ficado. Coleira simples e rosa. Nome e telefone. O atendente me trouxe, estava geladinha e úmida de ter estado na geladeira em que eles mantém os bichinhos. Saí triste e fui até o carro. O céu estava ofensivamente, restauradoramente bonito. Fiz uma foto:

Eu já estava indo embora. Havia decidido que não queria pedir para vê-la. Tomei coragem. Voltei lá dentro e pedi para ver a Sapeca. Dez minutos depois o atendente me chamou e ela estava deitadinha numa maca de metal, dessas clássicas de consultório veterinário. Eu achava que o pelo estaria duro. Não estava não. Estava incrivelmente macio. Eu estava na parte da clínica onde ficam internados outros cães, e tinham uns sete ou oito. Enfermos, esperando ficarem bons para voltarem a seus lares. Quem já foi nesses lugares de internação sabe que fica um agito e barulheira. Mas não naquele momento. Nenhum latido. Eu hesito em dizer, mas direi. Era como se houvesse um respeito. Em particular um enorme pastor belga preto me olhava com doçura. Fiz o carinho favorito da Sapeca, nas orelhas. Gentilmente.

Eu queria que esse vírus virasse pó. Que sumisse. Que parasse de atrapalhar meus planos, meus amados, minha tristeza. Ele persiste. Quem virou pó, entretanto, foi Sapeca. Depois de cremada, numa cerimônia singela e bela, envolvendo as outras cachorras, uma cartinha e flores, o restinho dela foi colocado no solo à sombra da jabuticabeira. Onde mais? Ela sempre estará ao pé da jabuticabeira.

Ela era um soblenatuxisto. Não, que eu saiba, ela não era capaz de aparecer dentro do pote de ração. Se fosse ela faria, comilona que era. Como todo soblenatuxisto, ela usava seus poderes sabiamente. Ela tinha o poder de me fazer sorrir ao entrar em casa depois de um dia cheio de trabalho pastoral desgastante. Vinha andando numa pressa mal-disfarçada, enquanto a Yorkie pulava por cima e adiante dela. Calmamente esperava seu carinho. Nos dias em que eu esquecia e passava direto, ela pacientemente vinha atrás. Nos dias em que nem assim eu notava, ela ia dormir, sem ressentimento.

Sapeca era cativante mesmo. E muito, muito fofa. Um arraso.

Ela gostava de banana. Ela tinha poderes. Um simples ser peludo de nariz curto e meros 6.5 kg é prova da bondade criativa do Deus trino. Missão cumprida, Sassá. Espero que por meu intermédio você tenha experimentado um pouquinho da consumação. Beijo nesse seu focinho gelado e curto.

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