De cabeça inclinada diante dos gigantes

Se Deus colocou gigantes no mundo, porque nossos olhos insistem em não vê-los?

Emilio Garofalo Neto
emiliogarofaloneto
18 min readMay 9, 2019

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“Eu quero ver montanhas, Gandalf. E depois achar um lugar aonde eu possa descansar” (Bilbo Baggins).

Photo by swapnil vithaldas on Unsplash

Quando se pensa em Nepal, algumas imagens invadem a mente: montanhas altíssimas e geladas, alpinistas em apuros, uma bandeira estranha, religiões orientais exóticas, pobreza, yaks e sherpas. O Nepal, é claro, tem tudo isso. Os clichês que imaginamos sobre o país são reais, embora sejam apenas parte da história. O Nepal é bem longe do Brasil, em todos os sentidos. É um país pequeno, estupendamente montanhoso e simultaneamente humilde e orgulhoso. Humilde em sua pobreza e nas diversas limitações em seu desenvolvimento social e econômico. Orgulhoso de sua história de mais de três milênios, de suas lendas e de suas montanhas prodigamente gigantes.

Estive recentemente por oito dias em Kathmandu, capital do Nepal, a fim de servir em um projeto de treinamento teológico para plantadores de igreja. Há muita coisa acontecendo naquele país em termos de avanço do evangelho. E há também ações contrárias por parte de outros grupos religiosos. Esse é, entretanto, assunto para outro artigo.

Neste artigo pretendo falar humildemente acerca do que é estar diante de um gigante. Pensar sobre como gigantes fazem a cabeça se inclinar. Há algumas experiências que podem ajudar a modelar em palavras o quadro que minha mente insiste em pintar.

A primeira delas é a de pregar na Aashish Presbyterian Church, em Kathmandu. Uma igreja pequena em um distrito pobre de Lalitpur, uma espécie de periferia da capital. A igreja atualmente se reúne num simples prédio alugado que não comporta mais que oitenta pessoas. Nem precisa. Eu fui convidado para pregar e com muita alegria aceitei. O culto começou em horário meio indefinido, um pouco depois de 10h15, quando todo mundo chegou.

Música, oração, avisos, confissão de fé. Ao mesmo tempo tão parecido, e tão diferente. É o povo de Deus, servindo o mesmo Salvador, comendo a mesma comida santa e unidos pelo mesmo sangue. O culto foi avançando com seus movimentos diversos, e eu entendendo muito pouco. Enfim chegou a minha hora de pregar. Eu não sabia de antemão que para ir lá na frente do santuário precisava tirar o sapato a fim de não sujar o carpete. Felizmente estava com meias íntegras que não me envergonharam.

Eu nunca tinha pregado com tradutor. O Dr. Mahendra Bhattarai, pastor titular da igreja, foi meu tradutor. Ele é um homem ímpar. Bem, todos são, mas ele é mais ímpar que os outros. Tem algumas coisas a saber sobre ele. O homem é pequeno. O homem é genial. O homem é um doce. Já avançado em idade, Mahendra conheceu o evangelho e nasceu de novo na época em que estudava num programa de doutorado na Inglaterra. Hoje é um dos líderes do trabalho de plantação de igrejas por todo o país, junto com o pastor Dhruba Adhikari e outros irmãos.

Dhruba e Emilio

Foi uma experiência gloriosa a de pregar ali para meus irmãos e irmãs no teto do mundo. Ser traduzido é interessante. Permite um tempinho a mais para refletir sobre o que disse e o que irei dizer. Ao mesmo tempo às vezes acaba quebrando um pouco o ritmo da pregação. Além disso, parece que às vezes o Mahendra dá uma boa aumentada no que acabei de dizer. Não reclamo. Com certeza está deixando o sermão melhor.

Emilio e Mahendra

O chá de masala depois do culto foi dentre os chás mais saborosos que já tomei. Claro, contexto importa no sabor do chá. Uma experiência marcante com alguém amado fará com que um chá ordinário possa se tornar algo extraordinário, quase que operático. Nesse caso, foi assim, a companhia e a situação fizeram daquele um chá bem especial. A sensação tão boa de haver pregado sem falar bobagem e ainda conseguindo ser coerente, conversando com amigos que recentemente fizera, sob o céu poluído de Kathmandu, e vendo meras silhuetas de montanhas ao fundo. Eu e os nepaleses. Aliás, falemos em tamanho. Eu me sinto um gigante pregando e dando aula para eles. Estou falando de estatura física mesmo (não sou tão convencido). Não deve haver um único nepalês de minha altura, e não sou lá tão alto. Nas lojas não consegui nenhuma camisa de meu tamanho, e tudo bem que não é só uma questão de altura, mas mesmo assim.

Pregar foi especial. Não disse que o sermão foi especial, foi um sermão normal e ordinário. A ocasião para mim foi especial. Expus o Salmo 87, que fala sobre a cidade celestial que Deus está preparando para seu povo. Um lugar onde antigos inimigos do povo de Deus, por meio do novo nascimento, se tornam cidadãos. O texto lida com a ideia de montanhas, povos e local de nascimento. A ideia é tão linda que só mesmo um autor inspirado pelo Espírito de Deus poderia colocar no papel: basicamente, Deus pega os antigos inimigos dele e de seu povo e dá para eles um novo nascimento, na sua santa montanha. Assim, aqueles que eram forasteiros, passam a ser cidadãos. É gostoso falar sobre montanhas, é um de meus assuntos favoritos. E claro, se tem um povo que entende de montanha, é o nepalês. Nós no Brasil não temos montanhas. Desculpem. Mas quando eu conto pra eles que nosso ponto mais alto não chega a 3 mil metros, eles humildemente não riem da minha cara. São polidos demais para isso e não querem ofender o brasileiro. No Nepal são mais de sessenta picos acima de 6 mil metros. É cada gigante!

Algumas das montanhas mais especiais do mundo ficam ali no Nepal. É claro, lá está a mais famosa de todas, o Monte Everest, ponto mais alto do planeta bem na fronteira com a China. Falemos de montanha, então. Muitos me perguntaram se eu iria ver o gigante dos gigantes, o Everest. Alguns achavam que ele fica logo ali em Kathmandu, que nem o Pão-de-Açúcar juntinho ao Rio de Janeiro. Não. Para chegar no sopé dele há primeiramente um voo de quase uma hora até uma cidadezinha, de onde se parte em expedição numa trilha que leva onze dias até o acampamento base. Não é algo simples, como se pode ver.

Quando adolescente, devorei diversos livros sobre montanhismo, com especial atenção para os que narravam escaladas nos montes Everest e no K2. Lembro bem de um que narrava a história do primeiro homem a escalar o ponto mais alto de cada continente. Sempre achei fascinantes essas histórias de perigo e bravura. Lendas de meros seres de carne e osso tentando subir nas costas e na cabeça dos gigantes de pedra e gelo que Deus colocou no planeta azul. George Mallory foi um dos alpinistas mais importantes da história e pode muito bem ter sido o primeiro a chegar ao topo do Everest (nunca saberemos ao certo, é assunto para outro dia). Certa vez o questionaram sobre o porquê de se dar ao trabalho de tentar algo tão perigoso assim. Por que tentar subir o Everest? Mallory famosamente respondeu: “Pois ele está lá.” Satisfaz, não?

Claro, não tenho nenhuma possibilidade de subir qualquer dessas. Certa vez, quando com vinte anos, quase morri de tosse numa tentativa mal-fadada de subir o Pico da Bandeira. Então, não, não iria tentar nada arrojado no Nepal. Entretanto, me vi animado com uma possibilidade de coçar um pouco do desejo de ver esses gigantes. Algumas companhias aéreas locais fazem um voo panorâmico de cerca de uma hora que passa pelo Himalaia com a possibilidade de avistar vários desses picos, incluindo Everest, Lhotse e Makalu. Logo me empolguei, mesmo não sendo algo muito baratinho. Adoraria ver esses gigantes. Afinal, eles estão lá.

Fiz minha reserva para uma manhã em que eu estaria livre e cedinho fui para o aeroporto cheio de expectativa. Vencidas as clássicas etapas aeroportuárias (filas, procura por informação, café, segurança, espera, mais café) fomos levados ao avião da Buddha Air (sim, eu sei.). Todos se assentam junto às suas janelas. Todos animados. Além das balinhas, as comissárias distribuem mapas, pequenos guias visuais para nos ajudar a identificar as montanhas que veremos. Senhoras e senhores, por favor queiram colocar seus assentos na posição vertical em preparação para a decolagem. Gigantes vos aguardam. Começa a demorar. Fico estudando as montanhas no guia. E então vem o anúncio: O voo está cancelado por conta de clima adverso.

Montanhas que podem ser avistadas no passeio aéreo

As comissárias dão de ombros. As pessoas lamentam. Não há nada a fazer. O Himalaia não nos quer por lá. Fechou-se em nuvens e ventos. Hoje os gigantes estão com preguiça de serem fotografados. Ou será timidez?

Saio do avião e retorno ao terminal com tristeza desproporcional. Enfim, não foi dessa vez. A decepção foi grande, quase 8 mil metros dela. Entretanto, às vezes a gente encontra em momentos inesperados coisas que são ainda mais impressionantes.

Fomos conhecer, no outro lado da cidade, um projeto que ajuda, protege e recupera meninas que foram exploradas pelo tráfico sexual. Meninas que foram exploradas em bordéis e maltratadas de formas indizíveis. Além das adolescentes resgatadas, ainda há proteção para meninas que estão em situação de risco, seja por qual razão. O projeto Meninas dos Olhos de Deus atualmente abriga cerca de cento e cinquenta meninas, entre crianças e adolescentes. São diversas casas preparadas para o acolhimento, proteção e instrução, bem como uma escola que serve ao projeto e à comunidade ao redor.

Como é isso aí de resgate? Não serei muito explícito, não. Soube de coisas que eu preferia não saber e meu coração morreu um pouco ali. Quem aumenta o conhecimento aumenta a tristeza, disse Salomão. Meu coração se partiu de formas que eu não achava que fosse ser possível depois de dez anos de ministério pastoral. Que tolo.

O fato simples é que há muitos monstros na terra, e eles se aproveitam da ganância e da ingenuidade de muitas famílias, em particular as das vilas espalhadas pelo país, para levarem embora crianças que acabam sendo confinadas a bordéis na Índia e outros lugares. Lá elas passam por coisas piores do que você pensou ao começar a ler este parágrafo. A expectativa de vida delas é de cerca de três anos nessas condições. Há grupos dedicados a estourar esses bordéis e libertar as meninas, que acabam sendo abrigadas em projetos diversos, como esse que fui conhecer. E essas moças precisam ser cuidadas, de muitas formas.

O projeto é liderado por um casal, Sílvio e Rose. Além deles, há diversos outros que cuidam de tudo. Algumas das meninas que foram resgatadas seguem por ali, e pude conversar um pouco com uma delas, a Anjali, que publicou um livro sobre sua história. Fui conhecer a escola e quem me mostrou e explicou tudo foi uma mulher chamada Mamata. O trocadilho é fácil, mas o trabalho dela de fácil não tem nada. Na escola há cerca de trezentos alunos, sendo pouco menos de um terço composto de crianças do projeto. A comunidade local também está sendo abençoada. A escola estava em processo de limpeza e renovação para o reinício das aulas e tudo estava ainda meio improvisado. Fiquei intrigado ao ver numa parede um poster replicando o quadro de Leonardo Da Vinci, a famosa La Gioconda, ou a Monalisa com seu sorriso enigmático. Interessante ver aquele sorriso misterioso ali no meio de uma escola em Kathmandu. Afinal, se há enigmas e mistérios sobre a arte do mundo em trevas, é ali que elas se juntam em cor e espanto diante do que se é possível sonhar.

Vimos o belo ônibus que é usado em viagens pelo interior do país prestando serviços diversos. Entramos então na camionete do Sílvio para ir conhecer uma das casas onde as meninas moram. Eu não estava conseguindo dizer muito. Ou melhor, nada. Meus olhos estavam a uma lufada de sentimento de derramarem. Sílvio estava contando algumas coisas sobre sua ida recente ao Brasil, mas falava com dificuldade pois sua garganta estava inflamada e ele estava com medo de ficar sem voz. Eu sorri por dentro. Logo ele que é a voz de tantas mocinhas que não têm nenhuma, estava com medo de ficar sem voz. A verdade é que de fato o ar ali é bem ruim de respirar.

Kathmandu fica num vale e as montanhas dificultam a circulação das massas de ar. Ali se concentram muitas formas de poluição e poeira. É comum ver pessoas utilizando máscaras para proteger as vias respiratórias de enfermidades. A cidade é bem complexa, com trânsito bastante animado, muitos templos espalhados por toda parte, bem como vacas e cães que convivem tranquilamente com tudo isso.

Tinha algo acerca do povo nepalês que eu não conseguia colocar em palavras, até que vendo um programa desses de viagem entendi. O apresentador colocou muito bem: a cidade é um caos, mas todo mundo é calmo. Esse contraste é muito curioso. A cidade com seu trânsito é tão ou mais confusa, esburacada, barulhenta e poluída que São Paulo, por exemplo, mas as pessoas não estão agitadas, correndo, nervosas, impacientes. Todos convivem com uma estranha tranquilidade conformada. E foi numa manhã de trânsito surpreendentemente calmo que fui novamente ao aeroporto internacional Tribhuvan tentar mais uma vez ver o Everest, esse gigante que insiste em se esconder de mim. A companhia aérea permitia a remarcação em casos como o do cancelamento daquele dia. O dia estava chuvoso desde cedo. Entretanto, o importante mesmo não era o clima na cidade, mas lá na cordilheira. Fui ao aeroporto munido de documentos, esperança e tímidas orações pedindo ao Senhor para que ele me permitisse contemplar essas maravilhas.

Eu estava na sala de embarque com vários turistas ansiosos pela oportunidade. Alguns, como eu, estavam na segunda tentativa. Fiquei perto de um grupo de alemães e conversei bastante com eles, bem como com um homem de Fiji que se aproximou por causa de minha camiseta de rugby da Nova Zelândia. Mais de uma hora de espera, e então o sinal verde para o embarque. As condições estavam boas na montanha. Aleluia. Entramos no avião e rumamos finalmente rumo à cordilheira, comigo salivando para ver os gigantes. As comissárias estavam animadas e o ar elétrico com a excitação generalizada. Vejo-as olhando pela janela para começarem a nos mostrar as maravilhas que Deus colocou naquela parte do mundo. E então elas anunciam que, infelizmente, uma formação de nuvens encobriu o Everest bem quando chegamos. Era possível sim. Tristeza generalizada na cabine. “Vejam ali, dá para ver o Makalu!” Diz uma das comissárias. É nosso prêmio de consolação. Essa é a quinta maior montanha do mundo, um gigante impressionante. Dava para ver mesmo. Embora bem rapidamente, pois o tempo piorou e fomos chamados de volta ao aeroporto.

Não vi o Everest. Não vi. Sonhei com ele. Li livros sobre ele. Conheço bem sua silhueta. Olha, eu vi o Makalu. Serve? Já até me convenci que é mais legal ver o Makalu do que ver o Everest. Dói menos assim, e de vez em quando eu até esqueço que é autoengano. Quer ver? O Makalu, embora não tão celebrado, tem algumas vantagens sobre o Everest. A primeira é sua dificuldade técnica. Embora mais baixo, ele é uma escalada mais difícil do que o Everest. A segunda é que sua aparência é ainda mais imponente, ele tem uma face bem escura que quando vara as nuvens é algo ímpar de se ver. A terceira vantagem é que menos gente subiu o Makalu. É uma montanha mais exclusiva, digamos assim. A quarta é esse nome sensacional. MA-KA-LU. Viu? A gente consegue meio que se convencer de que o que a gente conseguiu compensa o que de fato queríamos. Voltei frustrado e atrasado. De lá corri para mais um dia de curso de teologia.

Alunos em sala no curso de teologia

Durante a semana eu ajudei os plantadores de igreja por meio de ensinar Antropologia e Cristologia. Fui parar lá a convite de um dos homens que mais se parecem com Cristo dentre os que andam sobre a face enrugada da Terra. Há um homem, e o nome dele é João. Ele não é a luz, mas testifica acerca dela. João já havia me levado para ensinar e pregar num dos países mais secularizados do mundo, a Nova Zelândia. Agora me levou para fazer o mesmo em um dos mais intensamente hinduístas do globo. João e sua família vêm servindo a Deus em diversos países. Depois de um profícuo ministério no Brasil, passaram anos no Chile antes de se basearem na Nova Zelândia, de onde hoje se lançam ao Nepal para fazer o trabalho missionário. João e Tânia.

Com Manoj em seu táxi

O convívio com esse casal, seja atravessando uma rua perigosa, partilhando café, rasgando a cidade no táxi do Manoj, contando histórias, usando o Shazam para descobrir que música está tocando ou meramente comparando cicatrizes é algo que faz qualquer viagem missionária valer a pena.

Em uma das conversas, falando sobre o terremoto que devastou a cidade em 2015, apontei para eles o fato curioso de que os três países em que fizeram missões são bem ativos sismicamente. Eu não acho que seja possível provar isso, mas não acredito em coincidências. Desconfio que são eles que fazem a terra tremer por onde quer que passem. Gente da qual esse mundo não é digno. É assim que se diz.

João, Tânia e Emilio

E foram eles que me levaram ao outro lado da cidade para conhecer o abrigo das meninas. Estávamos os três na camionete do Sílvio, indo conhecer a maior das casas. Quando ele falou casa, pensei, bem… numa casa. E não em um edifício de quatro andares repleto de quartos e instalações diversos. Era impressionante de ver. Que pedras! Que construções! Havia, entretanto, algo mais devastadoramente impressionante e que eu não estava pronto para ver. Estacionamos. O Sílvio tinha avisado que estava indo um grupo fazer visita. E elas se prepararam para nos receber. As crianças e as adolescentes e as jovens que as lideram.

Quando abriu o portão, eu fiquei confuso. Elas estavam todas ali perfiladas em frente à casa e sorridentes. Eu não sabia que ia ter uma recepção. A Bella, uma cadela vira-lata, estava junto. E sei lá como, mas Bella sorria também. Elas sorriam como se o bem-estar do mundo dependesse disso. E ainda mais, sorriam como se fossem plenamente capazes de resolver o nó do mundo por meio de sua alegria. Ao olhar as meninas, lembrei do pôster da Monalisa de Da Vinci. O sorriso das meninas não tem nada de dúbio, não. É o sorriso de quem viu que o mundo é escuro, mas que já percebeu o raiar do Sol da justiça por detrás das nuvens e derramou lágrimas formando o arco-íris no próprio ambiente renascido do coração.

Nós fomos entrando no pátio e mais uma vez eu vi que iria ser honrado por meio de uma echarpe. É uma tradição no Nepal. Até aquele momento eu já havia sido honrado por uma cerimônia de receber uma echarpe duas vezes. A primeira foi logo chegando no país, pelo amável pastor Dhruba, que foi me receber. A segunda foi na igreja, como forma de agradecimento deles pela minha presença. E lá no pátio da casa das meninas seria a terceira.

Uma das crianças veio em minha direção cheia de boas intenções a respeito de colocar aquele lenço em meu pescoço. Essa menina havia sido resgatada de debaixo de escombros no terremoto. Perdeu seu irmãozinho naquele dia. Ficou com um buraco nas costas tal que era possível enxergar vividamente suas costelinhas. Já está sarada e estava lá sorrindo para mim. Oras, eu tenho quase um metro a mais que ela. Ela só me olhava de baixo para cima segurando a echarpe, como quem sabe que logo uma solução se fará presente. Sorrindo como se a vida fosse feita de sorvete. Eu, é claro, fiz a única coisa adequada diante daquela situação e me ajoelhei perante ela para receber a honraria. Eu me senti um plebeu sendo sagrado cavaleiro pela rainha do Nepal. Ela queria me honrar. Minha filha, é você quem deve ser honrada.

Subimos pra uma sala depois de conhecer as instalações e conversar com as meninas um pouco, em geral por meio de tradução. Na sala todas estavam sentadinhas para a parte mais oficial de nossa visita. Iriam cantar uma música e nós iríamos orar uns pelos outros. O Sílvio nos apresentou para elas e falou de mim: “Ele é um homem muito bom.” Eu tenho certeza que corei. Elas olharam para mim com uma confiança dada pelo testemunho confiável de um homem que por elas vive e que as salvou de homens maus. Mas é claro, o senso de inadequação é poderoso quando nos vemos diante de gente que conhece o abismo e que dele foi retirado com mão forte pelo Pai das luzes. Por que me chamas bom, Sílvio? O João que estava ao meu lado, eis um homem bom. Tive a oportunidade de falar um pouco para elas. Não lembro bem. Sei que envolveu a honra de estar ali e a certeza de que Deus nos ama mais que nossos sonhos mais loucos são capazes de imaginar, e mais do que nossos pesadelos mais febris são capazes de esconder.

Deixamos de presente um pouco de dinheiro com o alvo específico de ser convertido em sorvete. E depois recebemos fotos mais doces do que sorvete de caramelo com Nutella salpicado de Leite Ninho. Fomos embora, mas nunca irei mesmo embora dali.

Talvez, no final das contas, a vida consista sim nessa mistura insalubre de às vezes ser frustrado no ponto de chegar na borda daquilo que você tanto queria, como ver a montanha acerca da qual eu li tanto. Ao mesmo tempo, Deus nos dá aqui e ali vislumbres de coisas tão impressionantes que a gente nem imaginava serem possíveis que, olha, mais do que compensa.

Alunos do curso

Assim como Bilbo Baggins falando com Gandalf, creio que nosso grande anseio seja o de ver montanhas, e então achar lugar de descanso. Uma montanha especificamente, da qual todas as outras são meras imitações, a santa Sião celestial. Curiosamente, e penso, não à toa, Deus usa montanhas como imagem para falar sobre o local de descanso. É assim no Salmo que preguei em Kathmandu, com o salmista falando sobre uma cidade que ainda vai ser inaugurada e que se localiza no monte santo do Senhor. Montanhas escaladas por um povo internacional, e em seguida, o descanso.

Eu fui ao Nepal sonhando em ver os gigantes de pedra e neve com seus fantasmas. Vi brevemente um deles, o Makalu. Tento me enganar acerca de ter tido um vislumbre do Everest. Sei que não vi Everest coisa nenhuma, embora ele estivesse logo ali detrás da nuvem. Eu vi, contudo, coisas mais impressionantes: eu vi uma menina de um metro de altura cujas costas tinham até outro dia um buraco causado pelo sacolejar do próprio chão, e ela encheu meu coração até a tampa com um sorriso que é uma evidência do próprio raiar de Nova Jerusalém e me coroou com uma echarpe enquanto eu ajoelhava diante dela. Eu vi uma jovem de 1.60 cuja vida foi devastada pelos pesadelos mais selvagens, mas seu sorriso não deixa qualquer dubiedade monalisística acerca do fato de que ela tem vida, e vida em abundância. Eu vi um senhor de pouco mais de um metro e meio que um dia foi estudar em Londres e voltou com a mala cheia de evangelho e agora dedica seus últimos dias a espalhar vida no teto do mundo. Ele vai evangelizar aquele país inteirinho, ou morrer tentando. Eu vi um casal que existe para cuidar das meninas que o mundo jogou fora e eles farão isso enquanto houver fôlego da vida, e a voz deles nunca vai falhar. Eu vi um casal brasileiro que depois de servir a Deus no Chile e Nova Zelândia está comendo poeira e pimenta pelo Nepal afora para fazer o nome de Cristo conhecido. Será que o plano deles é discipular pessoas em cada país sísmico do mundo?

Existem gigantes no planeta. Eu os vi com meus próprios olhos. Eu me senti o mais feliz dos hobbits diante deles. Há gigantes para todo lado. Esses gigantes de carne e osso um dia serão revestidos de incorruptibilidade, num piscar de olhos. Eles irão durar mais do que qualquer gigante de pedra. Talvez o problema sejam os nossos olhos que insistem em não ver. Um dia o Senhor das montanhas há de remover todas as nuvens e esses gigantes serão reconhecidos pelo que são. Eles assombram a terra. Agora meus olhos veem alguns deles e meu coração os ama. Já vi sua grandeza. Eles estão lá. Agora é descanso.

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