Euforia e eternidade — a Copa do Mundo e o deleite de se alegrar com o que não nos pertence

Emilio Garofalo Neto
emiliogarofaloneto
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51 min readDec 26, 2022

“Eu não acredito que isso está acontecendo”. Ou, a versão menor: “Não é possível”. Há outras versões da frase que envolvem palavrões e onomatopeias, deixemo-las de lado. Uma incredulidade deslumbrada. Quantas vezes você reagiu dessa maneira durante a Copa de 2022? Tenho por certo que você disse algo assim em choque quando um certo contra-ataque gelou nosso coração coletivo, a poucos minutinhos do final do jogo contra a Croácia, com o nosso time todo, misteriosamente, no ataque. Imagino que tenha dito algo parecido, só que em alegria, poucos minutos antes desse tal contra-ataque, quando uma sequência de tabelinhas Neymarianas nos fez gritar diante de um golaço.

Estádio Nacional Mané Garrincha, foto que tirei no jogo Brasil x Holanda em 2014.

Muito aconteceu desde essa derrota do Brasil no que diz respeito a nosso time. De especulações de novos treinadores a tentativas de apontar culpados, debates sobre a ordem dos cobradores de pênalti e muito mais. Foram análises exaustivas e combustível sem fim para brigas em grupos de WhatsApp que devem durar até a vinda do Reino. Muito aconteceu também que não tem nada a ver diretamente com o Brasil em si, mas tem tudo a a ver com o futebol e os nossos corações.

Neste longo artigo não quero focar no Brasil, embora sim iremos repassar algumas coisas. Nem na Argentina e nem no Messi, embora eles todos vão aparecer aqui bastante. Quero falar sobre momentos de euforia, e o deleite de partilhar alegria. Sobre uma trama tão bela que parece literatura. Sobre como o coração se move por caminhos inesperados. Sobre como encontrar uma medida de alegria mesmo nos finais que não seriam nossa primeira escolha. Sobre literatura. E sobre Deus. Sempre é sobre ele.

Esses momentos de incredulidade deslumbrada diante de algo impressionante, é claro, pertencem à vida como um todo. Não somente aos esportes. Em 2022 eu tive vários desses momentos de “eu não acredito que isso está acontecendo.” Certas vezes o tal isso que estava acontecendo era algo pavoroso e nada bom. Em outros o isso foi algo tão esplendoroso que fez todos os issos ruins valerem à pena. Não somente eu, foi assim com todo mundo, é claro.

O ano vai terminando. Um ano magnífico e memorável. E eu termino o ano como sempre termino, no misto melancólico de assombro e alegria. Com dores e saudades, esperanças e memórias grandiosas que são sempre melhores do que as dores. O enredo perfeito, a meu ver, predominou na Copa, mesmo não sendo o que eu mais queria. Como disse o jornalista Sid Lowe:

“Esta foi a maior história que o futebol já contou. É como a cena final de um filme ou série que todos assistimos juntos por anos.”

Em termos esportivos, muita coisa aconteceu. Um de meus heróis, o tenista Roger Federer se aposentou e gerou esse instante na foto abaixo, o momento maravilhoso dos dois grandes rivais do esporte chorando de mãos dadas. Já escrevi sobre ele o desgaste da vida, mas qualquer dia preciso escrever um texto só sobre a rivalidade de Nadal e Federer. Essa foto me transmite um senso de que os envolvidos podem chorar pois sabem que chega ao fim algo deslumbrante, impressionante, e inigualável. Chorar de mãos dadas diante do fim agridoce.

A Copa do Mundo terminou com Messi em sua história de conto de fadas. Os últimos 10 minutos de Argentina x França, mais a prorrogação, os pênaltis e tudo o mais foram uma coleção assombrosa de “não acredito que isso está acontecendo.” Qual o coletivo de assombro? Foi uma aceleração da vida, uma espécie de resumo do ano em 50 minutos. Possibilidades frustradas, alegria inefável, esperanças enganosas, desespero, deslumbramento e um senso de que a vida aconteceu diante de meus olhos e meu coração não vai nunca mais se recuperar, e pior, ele nem quer se recuperar.

Quando o Brasil foi desclassificado pela Croácia nas quartas-de-final, fiquei sem saber bem para quem torcer no restante do torneio. Até me foi perguntado sobre isso. “E agora, pastor, vai torcer para quem?” Como foi contigo? Alguma nação despontou com facilidade em seu coração como sendo suas novas cores? Alguns adotaram a Croácia, no espírito de que se é para perder, melhor perder para os campeões. Outros declararam seu amor imortal por Marrocos. Ainda alguns correram para a anti-torcida, sendo muito mais contra alguém do que a favor de outrem.

Eu tinha uma resposta instintiva, que vai ficar óbvia já já. Mas acima disso, vale dizer que fiquei considerando os cenários. Queria dizer que é coisa de escritor, mas humildemente admito que é simplesmente coisa de gente mesmo. Imaginar os caminhos e possibilidades. Fiquei imaginando o final do filme, ou do livro que era Copa, para ver o que me apeteceria mais. Queria discernir o coração, esse traiçoeiro órgão da alma. E se a Inglaterra vencer e o futebol “voltar para casa”, como eles gostam de dizer? Vou me alegrar imaginando a festa em Trafalgar Square, com certeza. Ficar com vontade de estar lá com uma pint de Guinness. E se der a França, num bicampeonato épico, algo que não ocorre há 60 anos? Eu adoraria singrar novamente a Champs-Élysées, lembrando de comer e beber por ali enquanto celebro em três cores. E se Messi levar a Argentina ao seu terceiro título mundial? Ah, meus caros, o que vai ser da avenida 9 de Julio? E se uma zebra como Marrocos endoidar o mundo de vez? E se a Holanda finalmente vencer? E se a Croácia conseguir ir aos trancos e barrancos, de novo, até o fim? Nenhum desses cenários me desagradava. E percebi que, acima de tudo, queria uma boa história. Fosse o que fosse, seria interessante. Qualquer resultado seria memorável e comporia a história de amor que vivo com a Copa do Mundo. História que já dura dez torneios, incontáveis horas de vídeo e até um livro baseado numa tese de doutorado que escrevi para comemorar esse amor.

Quem me conhece sabe que a forma de eu curtir algo novo sempre é o posicionando em relação ao que veio antes. Chega a ser irritante, admito. Você tinha esperança de eu ser alguém fácil de conviver? Sinto muito, não. Exemplo, não consigo assistir a parte 3 de uma série de filmes, sem primeiro gastar um tempinho recordando as partes 1 e 2. Veja, não é apenas que me recuso a ver o 3 sem ter visto o 1 e o 2, mas preciso achar um jeito de rever se não o filme todo, ao menos um resumo dos que vieram antes.

Para me preparar para a Copa de 2022, revi os melhores momentos das cinco copas anteriores. Repassei todos os jogos do Brasil, lembrando das campanhas, das eliminações. Voltei ao gol contra do Felipe Mello em 2010, ao Roberto Carlos arrumando o meião em 2006, ao “virou passeio” do Galvão Bueno em 2014. Assisti compactos de quinze minutos de cada uma das cinco finais anteriores. É assim que organizo mentalmente a história do que estou vivendo.

Sim, eu faço ranking de tudo. Sim, com frequência é bem chato. Desculpem aí todos vocês que vem lidando comigo mais de perto. Mas explico tudo isso para dizer que para mim a Copa nunca foi principalmente acerca do Brasil vencer, afinal, ele venceu apenas duas da dez que assisti; mas acerca de ver algo raro e memorável. O hexa seria, obviamente, meu cenário favorito, mas não o único que eu conseguiria desfrutar. Viesse o que viesse, seria algo como mais uma temporada de um seriado maravilhoso, mais um livro numa série de ficção. Quem sabe o impossível quinto livro na série de Zafón do Cemitério dos Livros Esquecidos.

E se calhassem quatro semifinalistas europeus? Interessante. Gigantes confirmando sua supremacia? Interessante também. Gigantes perdendo? Opa! Marrocos barbarizando? Messi aos 35 anos de forma completamente mágica avançando estágio a estágio e jogando cada vez melhor? Cristiano Ronaldo começando no banco de reservas? Como assim? Estou amando tudo isso, mesmo naquilo que eu queria que fosse diferente. Eu queria boas histórias, mais do que exatamente um resultado específico.

Mas claro, o coração mostra suas reais intenções quando chegamos nas situações limite, aqueles momentos em que algo tem de ser decidido e não mais adiado. Circunstâncias que nos colocam de frente para os sentimentos camuflados. Quando somos forçados a optar, naqueles cruzamentos em que a realidade nos faz admitir o que está dentro de nós, e relutamos em deixar vir à tona. Noutro dia me lembrei de Legião Urbana, em Quase sem querer:

Me disseram que você estava chorando

e foi então que eu percebi como lhe quero tanto

Lindo isso. Quando percebe que a pessoa amada está chorando, o cantor se dá conta do que já estava lá dentro. Seu afeto e amor. Na Copa foi assim também, quando o tempo foi avançando o coração foi se revelando em diversos momentos. Quando o inglês Harry Kane foi bater o seu segundo pênalti contra a França, por exemplo, percebi que o coração Garofalo queria que Kane errasse pois eu tinha sim uma leve preferência pela França. Queria ouvir a Marselhesa na final. Queria ver novamente os franceses cantando sobre o estandarte ensanguentado da tirania sendo erguido e o chamado à luta. Nada contra Bellingham, Saka, Foden e mesmo Kane. Se bem que do Pickford eu não gosto, talvez por minha enorme simpatia pelo Liverpool e ele ser um símbolo dos rivais azuis. Vai saber. Gostamos e desgostamos de coisas e pessoas sem nem saber direito o porquê.

Torcedor é algo complicado, claro que é. Tudo o que é humano é complicado. Nós brasileiros tendemos a torcer pelo nosso país, mas muitos de nós não o fazem, seja por qual razão for. Pode ser por política, por amargura, por chatura, por alguma razão obscura que para a pessoa faz sentido. Ou então torcemos, mas não o tempo todo. Tem momento em que ficamos bravos e irritados com uma opção do treinador, e queremos que fique claro o erro dele. Ou ficamos incomodados com uma atitude de um jogador. Ou queremos a vitória, mas de um certo jeito e não de outro. “Tomara que ganhe, mas que o gol não seja do Vini Jr pois o pessoal do grupo de WhatsApp vai ficar insuportável.” Esse era o tipo de temor de muitos.

Torcemos ao mesmo tempo em que lamentamos e ansiamos para que a vitória seja alcançada de uma certa forma. O que você prefere? Uma vitória sofrida ou uma goleada? O que é mais memorável, um show de bola ou uma virada heroica? Ou ganhando está bom? Te incomoda ganhar com um gol ilegal? E ganhar merecendo perder? E seus gostos quanto a jogadores específicos? Torcemos não somente pelo Brasil, mas por jogadores específicos dentro do elenco. Com frequência temos preferência pelo atleta que veio do nosso clube de coração. Eu mesmo fiz assim. Toda vez que o Militão, Casemiro ou o Antony faziam algo bom eu lembrava quem estava por perto de que eles começaram no meu São Paulo. Toda vez. E fingia não conhecer quando davam seus vacilos.

Eu queria muito jogar bola nesse famoso campo que tem uma árvore.

Para quem torcer no restante da Copa depois da eliminação do Brasil? Preciso parar de fugir dessa questão. Oras, o problema do coração torcedor começou muito antes do Brasil perder, antes mesmo de o torneio começar. Eu sou da escola de pensamento que deseja ver todos os grandes times em grande fase no torneio. Anseio pela presença de todos os craques, e todos bem física e tecnicamente. Assim nosso triunfo vai ser maior e mais inesquecível. O torneio vai ser mais glorioso. Lembro-me bem de na infância ficar fantasiando como seria o torneio perfeito, em que ganharíamos de super times em cada fase até a final. Algo como, Inglaterra nas oitavas, Itálias nas quartas, Alemanha nas semifinais e Argentina na final. Já pensou? Que triunfo! Era, é claro, uma trama infantil na sua ausência de sombras. Mas acho que esse tipo de enredo ainda me persegue e me assombra, seja nos anseios esportivos ou não.

Nas semanas anteriores ao torneio, a cada notícia de jogadores lesionados que não iriam ao torneio meu coração murchava um pouquinho. Kanté, Pogba, Benzema, Diogo Jota, Timo Wermer, Wijnaldum, Sadio Mané. Lamentei cada ausência. Seja desses que deixaram de ir por contusão, ou os cujas nações não se classificaram. Perdemos o deleite de ver Haaland, Luis Díaz, Ibra, Mo Salah e Mahrez, por exemplo. Mas não somente os atletas. Lamentei profundamente não ter a Itália na Copa. Queria ver Donnarumma muralhando o mundo, queria ver uma última vez de Bonucci e Chiellini. Ainda mais depois da maravilhosa campanha na Euro 2020. Queria ouvir o Fratelli d´Italia. Queria eles fortes. Também queria Alemanha, Espanha, França, todo mundo jogando bem. Queria vencê-los em seu máximo. É como eu torço, quase sempre. Ao mesmo tempo, curto uma boa zebra como qualquer outro torcedor.

Há outra escola de torcedores que é meio que o oposto. Acham ótimo cada vez que um grande vai caindo, se alegram (ainda que com um pouquinho de vergonha) quando um bom jogador adversário se machuca ou é suspenso. Com isso teoricamente deixando o caminho mais fácil para o Brasil. Torcer é assim. Qual o jeito certo dentre essas duas opções? Não tem. E na verdade você nem mesmo escolhe. Seu coração se inclina de um desses jeitos sem que você o obrigue. E a bem da verdade, achamos esquisitas as outras maneiras de torcer, ainda que nos sejam apresentados os argumentos.

Imagina jogar bola num campo como esse da Suíça!

Por que torcemos contra ou a favor de alguém? Pergunto não somente a respeito de indivíduos, mas qual a razão de torcermos por um país, um povo, um resultado? Alguns escolhem baseados em algo que não propriamente o futebol. Torcem pelo que pensam ser o país mais sofrido, torcem por ser o país de seus ancestrais, ou por seu posicionamento geopolítico, inclinação religiosa, ou por seu passado de colonizado, escolhem apoiar o país que tem menor IDH ou por gostarem do nome e é isso. Minha filha, na Copa de 2018, cismou com o termo Croácia. E por isso torceu para eles na final contra a França. Ela amava a palavra e pronto. Outros torcem é pela emoção em si, por algo memorável, que faça “valer a pena” os minutos investidos no jogo. Querem que seja um jogão. Muitos dizem que o que mais querem é ver pênaltis! De fato, é sempre intenso.

Quando foi definido que em 2022 teríamos a finalíssima entre Argentina e França, coroando assim um novo tricampeão mundial, se intensificaram as divergências sobre para quem torcer. “É inadmissível torcer para a Argentina!” Esbravejavam muitos, apontando para a rivalidade continental histórica. “Ah, vai querer apoiar nossos maiores algozes?” Retrucavam outros, lembrando de nossas derrotas amargas nas mãos dos franceses em 1986, 1998 e 2006.

A enorme briga que aconteceu em lares e redes sociais brasileiras a respeito de para quem torcer na final é importante, ao mesmo tempo, um tanto inútil. Entenda, a inutilidade a que me refiro não é por a nossa torcida televisa não influenciar o resultado. Sei lá se não influencia, vai saber! Há mais mistérios entre Doha e Brasília do que imagina nossa vã crítica esportiva. Não, a inutilidade é por outra razão: No final das contas, você não escolhe para quem vai torcer, o coração escolhe por você. E sim, eu sei que o coração é parte de mim, ou talvez, biblicamente falando, seja o próprio centro de quem sou. E aí reside o dilema. Boa parte das coisas, pessoas, times, sabores e ideias a que nos afeiçoamos não se tornaram amadas por pesarmos os lados, avaliarmos os argumentos e examinarmos evidências. Simplesmente amamos o que amamos, sem saber bem explicar. Quem nunca se pegou assistindo a um jogo aleatório que está passando na televisão e de repente percebe, e até se surpreende em ver como está investido em que algo específico se passe? Está torcendo sem ter escolhido torcer.

Pode torcer para quem quiser na final da Copa? Oras, pode! Muita gente torceu e se alegrou com Messi. O nosso Ronaldo Fenômeno, por exemplo, postou mensagem de grande alegria. Atletas de muitos esportes do mundo assumiram sua alegria para com Messi. Mas o que mais me intrigou foi ver o alemão Mario Götze se alegrando e muito pelo título argentino. Foi dele o golaço alemão na final da Copa de 2014, o gol que causou a derrota Argentina e que parecia indicar que Messi nunca ganharia a Copa. Ele parecia feliz de que, oito anos depois, a tristeza que ele causou tivesse se tornado em riso. É bom ver quando um final feliz acontece, ainda que não nos pertença.

Messi derrotado, Copa de 2014 — foto de Bao Tailiang

Momentos de euforia. Voltemos a isso, pois vamos tentar unir mais adiante essa questão de torcer com os momentos de euforia. O que são eles mesmo? Momentos de jogar tudo para cima. De dizer que nada mais importa. De instantaneamente saber que irei repassar aquele momento mentalmente muitas vezes. Não acredito que isso está acontecendo.

Sobre esses momentos

Esses momentos são importantes. Não há como fazer deles a vida, são poucos e raros demais e precisamos, afinal, comer e beber e saciar o coração com as coisas ordinárias da vida. E há enorme valor no ordinário, como a gente precisa aprender e relembrar. Mas a expectativa de algo assim, extraordinário, nos faz sonhar.

O futebol promete euforia. Promete momentos de jogar pipoca para cima, de querer rasgar a camisa. Aliás, por que esse impulso de tirar a camisa na hora do gol? O Tarcizio Carvalho, meu co-pastor e mentor, perguntou noutro dia. A melhor resposta que tenho no momento é que euforia funciona como algo meio que oposto ao luto, que é outro momento de rasgar as vestes. Não sei. Ainda preciso desenvolver melhor essa teoria. Mas esses momentos existem.

Os escritores mais diversos percebem esse amor humano, ainda que tendam a manter a discussão no nível horizontal. A melhor crônica esportiva que já li foi escrita pelo romancista David Foster Wallace. Ela se chama “Federer como experiência religiosa.” É um texto de 2006, que maravilhosamente captura o que é um grande atleta, mas além disso, o que é o amor que temos por um grande atleta. Ele fala sobre o que chama de “momentos Federer”:

“Estes são momentos, enquanto você assiste ao jogo do jovem suíço, quando o queixo cai e os olhos se projetam e sons são feitos que trazem cônjuges de outros cômodos para ver se você está bem.”

O ponto é que uma das razões porque assistimos esportes é em busca desses momentos. Queremos ver coisas que nos farão arregalar os olhos. Federer, junto como Messi, foi o atleta que mais me deu momentos de euforia em minha longa carreira de expectador desportivo. Esses momentos compensam muito, prometem muito e por vezes entregam muito. Parecem ser capazes de nos fazer sentir algo próximo a um consolo para a vida tão sofrida que temos.

Num belo artigo, Bruno Alves diz sobre esse tipo de experiência:

“[É] o tipo de ‘experiência extática’ na qual os seres humanos são elevados de suas formas corpóreas para um plano superior de existência, onde experimentam uma consciência radiante do conexão de todas as coisas… milagres, pode-se dizer — que acendem nossa conexão simpática inata com os corpos de outras pessoas, e a emoção de ver intenção realizada livremente sobre e contra todos os impedimentos físicos.”

Sim! Conexão entre gente que compartilha da euforia. Aliás, é importante entendermos que a alegria na maravilha do feito esportivo não acontece apenas para o vencedor. Há muito em jogo para muita gente; o contentamento vai muito, muito além de ser o campeão. Steve Blomfield, em um livro interessantíssimo sobre o futebol Africano chamado Africa United diz algo belo acerca dos torcedores somalianos:

“O simples ato de jogar futebol lhes permitia esquecer as tragédias de casa. E, mais importante, lhes permitia hastear a sua bandeira. Podiam mostrar que havia mais na Somália do que homens bomba e piratas. Para os torcedores somalianos, ouvindo em casa a narração no jogo, havia a pequena esperança de uma vitória, ou mesmo de apenas um gol — algo pequeno para celebrar. E, por noventa minutos, nada mais importava.”

Percebe o que estou falando? Somalianos não têm esperança alguma de vencer a Copa do Mundo. Não tem nem mesmo esperança de chegar até a Copa, pois há muitas nações no continente que são bem melhores do que eles. Mas quem sabe um gol nas eliminatórias possa fazer uma nação inteira se orgulhar na euforia do que a vida poderia ter sido. Vislumbres do que nunca teremos mas que poderíamos ter tido, podem ao mesmo tempo partir coração, e refazê-lo em deleite para a vida toda.

Não é somente quem ganha a Copa que se alegra. Nós brasileiros somos muito prontos a nos esquecermos disso, afinal, estamos sempre na Copa e no mínimo passamos da fase inicial. Para muitos milhões de torcedores globais tão apaixonados pelo esporte como nós somos, entretanto, um único gol é um triunfo tal que faz com que a alegria que nós tivemos por vencer pareça pequena. Ganhamos, mas não de boca cheia.

Euforia. Um não caber dentro de si. Um sentimento especial de que algo aconteceu extraordinário e que você está vendo essa maravilha. E ainda por cima está feliz de estar vendo ao mesmo tempo em que parte de você se alegra por outros estarem vendo também. Vem um anseio intenso de saber se as pessoas a quem você ama viram também. Sabe o que você sentiu quando o Richarlison, nosso pombo, levantou a bola e fez aquele gol acrobático contra a Sérvia? Euforia. É a alegria do gol, mas muito mais que isso. É a sensação de ter participado, testemunhado algo que vai ser lembrado por muitos anos. Disso ter sido vivenciado em seus dias de vida, e enquanto sua atenção estava lá. Não é o gol de Maradona em 86, ou um de Pelé ou seja o que for que os antigos gostam de falar a respeito. Esse foi seu, nosso.

Ali o que brotou foi um misto de esperança no time, com um senso de nunca-fui-triste com uma pitada de até-quem-duvidou-está-começando-a-acreditar (me incluo nesses). Quando acabou esse jogo, minha filha e os primos foram comigo e os tios para o campinho aqui perto de casa. Todos jogando e fazendo suas próprias acrobacias com bola. O senso maravilhoso de sermos lembrados de que corpos humanos são algo deslumbrante e capaz de fazer maravilhas como saltos assim. Mesmo que os nossos saltos que o imitam só resultem em traseiros sujos de lama e dores lombares que se juntam ao sorriso no rosto de quem viu o que viu.

“Eu não acredito que estou vendo isso”. Nunca houve um torneio em que eu tenha dito isso tantas vezes. Estou escrevendo alguns dias após a final da Copa do Mundo de 2022. Precisava de uns dias. É claro que esses momentos são do esporte. Acontecem não somente no futebol. Não somente em Copa. Assistimos esportes pois queremos esses momentos. Brian Philips lida muito bem com esses sentimentos numa série de artigos e podcasts sensacionais, recontando a história das Copas a partir de 22 gols. No primeiro artigo ele diz, tentando responder à pergunta do Tarcizio sobre tirar a camisa na euforia:

“Mas aquele momento após um grande objetivo, quando você se sente temporariamente fora de si e temporariamente imortal. Quando de repente você está em êxtase demais para uma mistura de poliéster respirável. Ou você está chorando no ombro de um estranho na arquibancada. Ou você está de pé no sofá… Aquele momento de euforia total. É por isso que amamos esses jogos.”

Ler isso sobre ficar de pé no sofá desbloqueou uma de minhas memórias futebolísticas favoritas. Eu e Tércio, meu irmão mais novo, assistimos à final da Libertadores de 1992 em casa, só nós dois. Eu com catorze e ele com onze anos. Não me lembro de onde minha irmã estava, mas meu pai estava num jantar com minha mãe e ficava ligando do telefone da gerência do restaurante para saber do jogo (não havia outro jeito de nos comunicarmos!). O São Paulo venceu a disputa de pênaltis contra o Newell’s Old Boys e eu e meu irmão acendemos fogos de artifícios dentro do apartamento. Houve um princípio de incêndio no sofá da sala durante as comemorações. Enquanto Raí, Cafu e Telê Santana celebravam na televisão, nós lidávamos com a quase tragédia. Quando meus pais chegaram, ninguém ligou (muito) para o sofá, só para a euforia do título inédito. E ficamos vendo os replays dos lances do jogo, evitando sentar na parte tostada da almofada esquerda do sofá de três lugares.

Momentos de euforia desportiva são momentos de alegria compartilhada. Se bem que o termo “alegria” parece ser insuficiente. É mais algo como uma espécie de catarse, se você quiser usar esse tipo de terminologia. Eu vou pegar emprestada a do Peter Berger, que chama essas experiências de “sinais de transcendência”. É, a meu ver, o que acontece com seres feitos à imagem de Deus. Salomão, que tenho certeza de que estaria lá no jogo final no Lusail Stadium se fosse vivo, escreveu certa vez que o homem tem eternidade no coração (Eclesiastes 3.11). E em alguns momentos da experiência humana, algo ocorre que nos lembra de que a vida é mais do que este mundo. Que somos seres feitos para mais do que comer, beber, reproduzir, envelhecer e morrer. O esporte produz muitos desses momentos, especialmente quando assistimos em grupo. Como bem disse o articulista Zito Madu:

“Isso me lembrou o que geralmente sinto falta quando evito assistir a jogos com pessoas: a alegria comunitária. O compartilhamento da felicidade que eleva o prazer pessoal a algo muito maior pode parecer elevado e avassalador. A felicidade compartilhada torna o mundo mais leve; dá vontade de compartilhar abraços e lágrimas com estranhos.”

A Copa de 2022 teve muitas cenas memoráveis. Listei aqui alguns momentos de que me lembro facilmente de cabeça. Tenho certeza de que há muitos outros de que já me esqueci e tantos outros de que nem tomei conhecimento. Cada um de nós teve sua própria Copa, seu próprio roteiro. Tanto nós como as seleções, que segundo John Doyle em The world is a ball — the joy, madness and meaning of football: “criam novas mitologias à medida que cada jogo vai vindo”. Vamos a alguns desses momentos memoráveis.

  1. Aquele final de terceira rodada da fase de grupos, lembra? Quantas possibilidades! Foram muitos momentos emocionantes, mas em particular o que envolvia o grupo da Espanha. Cerca de meia hora totalmente eletrizante, cheia de reviravoltas, teorias conspiratórias e a loucura de acompanhar dois jogos ao mesmo tempo fazendo contas e buscando de cabeça os critérios de desempate. Eu assistindo um pelo 4g do celular enquanto esperava minha filha. E os grupos de WhatsApp explodindo de mensagens. Eu tinha de alternar entre a tela do Youtube e a da conversa e ia perdendo detalhes e desesperado tentando entender o que se dava. Um tempo maravilhoso em que a Costa Rica enfrentava a Alemanha e o Japão apavorava a Espanha e a cada 5 minutos alguém fazia um gol e tudo mudava. Houve um momento ali que até remeteu ao dilema do prisioneiro; com a Espanha podendo derrubar a Alemanha com uma derrota estratégica e por sua vez a Alemanha podendo, caso se percebesse derrotada, levar a Espanha consigo, mas ao mesmo tempo não podendo ceder pois tinha chance de se classificar. Altíssima tensão.
  2. O camaronês Vincent Aboubakar tirando a camisa para celebrar o seu gol na vitória sobre o Brasil. O veterano tirou a camisa sabendo que, sem sombra de dúvidas, seria expulso pelo gesto. E fez assim mesmo. E fez com gosto. Um misto de menino peralta com adulto que descobriu a liberdade de ir e vir; um combinado de uma cidade petulante declarando independência mesmo sabendo que será um gesto infrutífero com o suspiro do trabalhador que um dia dá de ombros e resolve que simplesmente vai à praia em vez de aparecer para o expediente na firma. O árbitro foi até Aboubakar lamentando e sorrindo, lhe oferecendo um amável cumprimento e o cartão vermelho. Aboubakar satisfeito. Talvez seu último momento na maior competição esportiva do planeta. Um gol seguido de expulsão na vitória sobre a seleção mais vitoriosa da história. Achei perfeito. O pessoal com quem eu assisti o jogo dizia coisas como “que tonto, que imaturo”. Eu achei maravilhoso. Eu teria feito o mesmo.
  3. Renard, treinador da Arábia Saudita, e a bronca épica que deu em seus jogadores no intervalo de jogo contra Argentina. Foi a estreia na Copa, e no intervalo de jogo os Argentinos venciam por um a zero, tendo tido diversos gols VARnulados. Renard, um especialista em treinar seleções africanas, parecia com um Al Pacino discursando sobre usar lança-chamas. Devorava o cenário e olhava o mundo de cima. O vídeo correu o globo. Renard sugeriu que seus atletas deviam entrar com o telefone em campo para tirar foto com o Messi, de tanto que o estavam respeitando. A bronca surtiu efeito e lá foram os árabes na primeira rodada produzir a primeira zebra do torneio. Muita gente achou que isso significava o fim da Argentina, se esquecendo de que é meio que a norma seleções levarem os jogos da primeira fase para se acharem tática e emocionalmente. Inclusive, pouca gente notou o próprio Renard dizendo que pensava que mesmo com a derrota, os argentinos continuavam sendo os favoritos. Essa derrota foi importantíssima para o treinador Lionel Scaloni mudar e motivar o time, que precisou desde a segunda rodada entrar em cada jogo com a mentalidade de estar jogando uma final.
  4. O gol do Richarlison e a euforia daquela vitória que parecia prometer tanto. Um articulista, Jonathan Liew, disse que ver o Brasil naquele dia parecia com assistir uma velha banda favorita tocando seus grandes sucessos. De fato, como sonhamos depois daquele momento!
  5. Excelentes jogos que depois acabam passando esquecidos, de tanta coisa boa que veio em seguida. De fato, admitamos, nas duas primeiras rodadas tivemos alguns 0x0 bem modorrentos. Mas tivemos jogaços de altíssimo nível como Alemanha 1x1 Espanha. Destaco ainda o 7x0 que a Espanha aplicou na Costa Rica, nos dando vislumbres de um elenco que, ainda que tenha se provado cru, pode trazer novas glórias para La Furia. Olho em Gavi, Pedri e Rodri.
  6. O maravilhoso e angustiante drama dos jogadores coreanos acompanhando dentro do campo após terem vencido, seguindo o final do outro jogo, esperando para ver como terminaria Uruguai x Gana para poderem enfim comemorar a classificação. Inclusive, foi uma espécie de revanche de Gana sobre o Uruguai, vingando os infames eventos de 2010.
  7. A decepção belga. Eu não esperava que a Bélgica fosse longe no mundial; muitos de seus jogadores já em final de ciclo de carreira, e faltavam aos belgas o tipo de renovação que os croatas conseguiram promover para ter um bom blend de sangue jovem e mente velhas. Mas foi um desmoronamento espetacular. Foi chocante ver o maravilhoso Lukaku perder gols como se fosse eu ali.
  8. Jack Grealish fazendo a dança que prometera ao garoto Finlay, um torcedor de doze anos do Manchester City. Finlay tem paralisia cerebral, assim como a irmã de Grealish. Eles se conheceram e o garoto pediu uma dança especial caso seu herói marcasse um gol. Aconteceu.
  9. Sempre há vingancinhas, algumas que até nos escapam. Só soube de Messi imitando o ex-jogador Juan Román Riquelme em sua comemoração contra os holandeses de Louis Van Gaal após ler uma matéria sobre o desprezo que o treinador holandês havia mostrado contra o antigo herói de Messi. Há muitos momento “sangue nos olhos”. A comemoração dos próprios argentinos sobre os holandeses após os pênaltis é um exemplo. Aliás, as dancinhas dos brasileiros parecem ter ficado mais intensas após terem sido criticadas, e quem não ao menos tentou imitar o pombo que atire a primeira mãozada de milho. Foi o modo canarinho pistola mostrado em molejo.
  10. O maluco do marroquino Hakimi batendo o pênalti decisivo sobre a Espanha com uma cavadinha. Quem faz isso? Eu estava vendo a disputa de pênaltis numa praça de alimentação de shopping. Foi muita gente se abraçando e derrubando batatas fritas do Giraffas.
  11. Polêmicas. Sobre tudo, é claro. Sobre o país sede, sobre o que se podia ou não fazer nos estádios, sobre manifestações políticas e ideológicas de algumas seleções, sobre dancinhas, sobre cabelos, sobre o VAR, sobre os minutos de acréscimo, sobre Cristiano Ronaldo querendo o gol de cabelo para si, sobre provocações…
  12. Nesta Copa as seleções africanas tiveram seu melhor desempenho histórico. Todas venceram ao menos uma partida, e pela primeira vez uma seleção africana chegou às semifinais. Isso foi bem bom de ver!
  13. A mãe de Sofiane Boufa o abraçando de dançando juntos após a classificação marroquina para a semifinal. Aliás, que história deliciosa essa do Marrocos. Segurando seleções potencialmente muito melhores como a Croácia, e derrotando Bélgica, Portugal e Espanha. Mostraram enorme qualidade tática e técnica.
  14. A guerra Holanda x Argentina. O que foi aquilo? Foram dezessete cartões amarelos e até um vermelho após o jogo. Reviravoltas, gols heroicos, duelo tático entre Van Gaal e Scaloni… Sem contar aquela cobrança de falta maluca no último minuto. Uma jogada ensaiada ousada por parte dos holandeses. Quem pensa em algo assim? Sério, parece coisa que um time de veteranos na AABB de Limeira ou Poços de Caldas pensaria entre cervejas na manhã pouco antes do jogo. E o que “Que miras, bobo?”, frase que deixou evidente que estávamos lidando com um Messi Maradonizado; sem nada da introspectiva passividade que marcou sua carreira. Foi o melhor jogo da Copa, até ali. Como um jornalista disse, parecia impossível superar o drama desse jogo. E mesmo ele ficou pequeno diante da final.
  15. Vídeos de torcedores pelo mundo todo apoiando o Brasil, ou a Argentina, ou que fosse. Como é lindo ver que embora só 32 países estejam na Copa, há muitas dezenas de nações investidas no torneio. Paquistaneses alucinados pelo Brasil em Karachi. Torcedores de Bangladesh celebrando a Argentina. Indianos que torcem para o Brasil brigando com indianos que torcem para a Argentina. Que coisa mais incrível ver essa paixão global, cores assumidas por quem não tem por elas direito de nascença, mas tem todo o direito que vem da paixão pelo esporte.
  16. Pelé internado. Eu fiquei com um medão de acontecer… e bem durante a Copa. Aliás, em mais um artigo maravilhoso, esse após nossa belíssima vitória contra a Coreia, Jonathan Liew escreveu: “Foi um lembrete, talvez, de que, embora o futebol tenha sido inventado nos campos de jogos das escolas públicas da Inglaterra, ele foi aperfeiçoado nos pampas e praias do Brasil. E era possível imaginar, assistindo pela televisão de um hospital em algum lugar de São Paulo, um paciente com câncer de 82 anos oferecendo um silencioso aceno de aprovação a esse turbilhão hipnótico de camisas amarelas”.
  17. E aquela bola do Japão que talvez tenha saído no gol contra a Espanha? Ainda não estou totalmente convencido. E nem me venha falar em paralaxe!
  18. Kun Aguero celebrando com os compatriotas campeões, levantando a taça e tudo o mais. Ele estaria nessa equipe se seu coração não tivesse começado a falhar o levando a uma aposentadoria precoce. Ele pode celebrar. Mesmo sem ser dele.
  19. Messi ensinando o jovem croata Joško Gvardiol, que foi talvez o melhor defensor da Copa, o que significa enfrentar o melhor jogador do mundo. Foi um gostoso “Seja bem-vindo à Copa do Mundo”. Sabe do que estou falando, não sabe? Aquela arrancada bestial e bailarínica pela ponta direita. Talvez tenha sido a melhor assistência da Copa. Ou talvez seja a que menciono a seguir.
  20. Messi dando um passe para gol contra a Holanda, um passe praticamente implausível. Lembrei-me de quando estava aprendendo a jogar xadrez e me mostraram como o cavalo se move, em L. É algo tão fora do padrão que a gente fica meio sem saber o que fazer com aquilo.
  21. Kane indo de heroi a vilão em alguns minutos nas quartas-de-final contra a França. Acertou um pênalti e depois errou um. Como alguém brincou, a Inglaterra conseguiu perder nos pênaltis até quando não era decisão por pênaltis.
  22. O rapaz que causou o pênalti contra a França na prorrogação, Gonzalo Montiel, batendo o próprio pênalti decisivo para a vitória na disputa a seguir. Eternizado como o chute campeão. Justiça poética? Redenção? Você teria fibra emocional, para, depois de ter levado os adversários ao empate, minutos depois bater um pênalti decisivo? Ali era ou dobrar a culpa ou se redimir. Eu teria passado mal e não teria batido de jeito nenhum. Alguém escreveu esse roteiro, só pode.
  23. A euforia do dia em que vencemos a Coreia do Sul, em nosso melhor jogo na Copa. Parecia tudo funcionando, a melhor versão de nós mesmos. Até torcedores hipercríticos e rabugentos (eu) se permitiram sonhar.
  24. Cadê a Itália? Que tristeza não ter a Itália bagunçando isso tudo. Fala para mim, não seria muito mais legal ter essa turma do que Suíços ou Sérvios? Por vezes, como diria Drummond, é a presença da ausência que nos marca.
  25. Em 2018 o melhor jogo foi França 4x3 Argentina. Nas quartas-de-final. Ainda por cima foi o jogo com o gol mais bonito (um petardo de Pavard). E mais uma vez essas duas seleções se encontraram para o melhor jogo do torneio. Vai surgindo um novo grande clássico mundial.

Vou parar por aqui a retrospectiva. Ainda precisamos falar mais sobre como o coração se decide por um time e não tenho como fazer uma retrospectiva completa do torneio e elas estão por aí. Procure e você encontra das melhores fofocas da Copa até maravilhosas análises táticas de gente como o Michael Cox, além de artigos sensacionais de escritores como Brian Philips, Sid Lowe, Sam Lee, Jonathan Wilson e Jonathan Liew. Além de muitos ótimos articulistas brasileiros. Não falta talento maravilhoso escrevendo sobre o evento.

Vamos de novo à torcida. Eu já assisti a dez Copas do mundo. Eu nasci pouco depois da Copa de 78, não me lembro de nada da Copa de 82, e tenho memórias infantis interessantes, felizes e dolorosas da Copa de 86 e nossa disputa de pênaltis contra a França. Lembro-me da empolgação com o Careca, nosso artilheiro com 5 gols no torneio. Em 1990 era pré-adolescente, e perdemos para a Argentina. Meu pai estava na Itália, e presencialmente no Estádio Delle Alpi nesse dia escuro. Falei com ele por telefone depois do jogo. Que tristeza. Como criança perdi uma pra França, outra para a Argentina. Que coisa ver as duas algozes da minha infância disputando essa final! A partir da Copa de 94 já acompanho o Mundial com olhos adultos. Vi todas as finais, li inúmeros livros sobre futebol, discuti com gente de todas as idades. Amo muito isso.

Eu já fui a sete jogos de Copa do Mundo. Consegui ir a todas as partidas da Copa de 2014 aqui em Brasília. Foi daquelas loucuras de quebrar o orçamento do ano todo mas ficar feliz demais por ter feito assim mesmo. Fiz um levantamento histórico noutro dia, e que bacana foi listar os craques que vi naquele torneio. Me alegro de ter visto Neymar, De Bruyne, Cristiano Ronaldo, Courtois, Pogba, Griezmann, Messi, Di María, Robben, Van Persie e tantos outros. Todo mundo ali no Estádio Mané Garrincha. No quintal de minha casa. Naquele ano, compramos dois ingressos para cada partida. Anelise escolheu quais ela queria ir. Foi no do Brasil, no da Argentina e em mais um. Nos outros, levei outros familiares, foi o presente de Natal deles. Minha mãe no primeiro, um cunhado para ver a França e outro para ver Portugal. E fui com meu pai ver a decisão de 3o lugar, em que perdemos para a Holanda, no primeiro jogo após o famigerado 7x1. Foi o último jogo a que assistimos juntos no estádio, com ele falecendo subitamente pouco mais de um ano depois.

Estádio Nacional, 2014. Garofalo Neto e Garofalo Filho indo ver o Brasil apanhar da Holanda.

Tudo isso se junta ao chegar mais uma Copa. Lembrei-me com saudade de outras Copas e de assistir com gente que, seja por qual razão for, não está mais junto para ver. Lembro-me muito bem dessas coisas. Ninguém assiste Copa sozinho, mesmo que não tenha mais ninguém na sala. Há uma legião de gente amada que assistiu jogos conosco antes, seus fantasmas nos acompanham. Eu me lembro de tudo isso. Feliz e infelizmente. Assistimos Copas acompanhados. Por quem viu os jogos anteriores. Pelos próprios jogos anteriores.

Não são poucos os momentos de lembrar algo no estilo “isso está que nem em 98.” Aliás, um amigo, o poeta Rodrigo Bedritichuk, me disse que sentiu no jogo da Croácia algo como clima de eliminação, um senso difícil de por em palavras mas que sentira contra a Bélgica na Copa anterior. Eu também senti. Os fantasmas assistem os jogos conosco.

Chegou o momento de ver minha primeira copa na meia idade. Que coisa. E logo essa Copa no Catar, com toda a estranheza do momento. Acho que combina bem com meia-idade. Sei dos problemas do país, e de como as coisas foram feitas. Li muitas histórias. É a vida debaixo do Sol. A Queda se mostra demasiadamente, até nos melhores de nossos feitos.

Alguns anos atrás passei por Doha, numa longuíssima escala quando fui ao Nepal ensinar. Lembro-me de passear no agora famoso Souq Waqifi, e em particular me lembro ouvir a empolgação da guia turística com a Copa era maravilhoso. Isso foi em Abril de 2019. Fiz um tour de algumas horas, usando minha camisa azul da seleção brasileira. O que eu mais senti naquela guia foi um anseio genuíno de mostrar para a gente, turistas cansados matando tempo de conexão entre voos, o que estavam fazendo e como se orgulhavam daquilo.

No porto em Doha, 2019.

Você já teve vontade de mostrar algo maravilhoso a alguém que você ama. Sei disso. É a razão que te impele a encaminhar memes, a mandar fotos de um lugar bonito, a chamar para o vídeo e mostrar onde você está. Sabemos que alegria se multiplica quando a compartilhamos. É, de fato, mais bem-aventurado dar do que receber (Atos 20.35). E aqui eu começo a tentar explicar o inexplicável.

Sou louco pelo Fútbol Club Barcelona. Já tinha uma camisa do Michael Laudrup desde 1991. Esse amor se alimentou nos 30 dias que passei naquela cidade em 1992, na casa de meus tios. Esse amor foi alimentado nos anos de Ronaldo e depois Rivaldo jogando por lá. Nos anos em que vivi nos EUA, entre 2004 e 2011, minha dieta de futebol basicamente se restringia aos torneiros europeus. E naqueles anos vimos o surgimento do Barcelona mais vitorioso da história, com jogadores como Ronaldinho Gaúcho e depois aquele que conseguiu superá-lo, o argentino Lionel Messi. Como foi bom acompanhar os anos de Guardiola e daquele time fenomenal. Nós, torcedores do Barcelona, vivemos basicamente uns 14 anos nos alegrando em ver Messi fazer coisas impossíveis por nós. Nos dar momentos de pura euforia. E eu sempre quis que outros desfrutassem disso. Como era irritante ao falar de Messi ter sempre de ouvir algo como “Mas na Argentina não joga nada” ou “se não ganhar a Copa não será dos melhores da história”. As duas afirmações são falsas, sempre foram, mas irritam mesmo em sua falsidade. Como uma calúnia da qual você nunca consegue se livrar.

Ver um grande atleta é ter momentos de euforia. Eu tive os meus com Messi. Como mencionei, desde 2005. Naquele ano, o nosso impagável Ronaldinho Gaúcho estava euforizando o mundo com gols de falta, passes de calcanhar, passes de costas, passes com as costas (sim, você leu corretamente) e um senso de que ainda não tínhamos visto tudo no futebol. E o Ronaldinho insistia que tinha um rapaz argentino que seria ainda melhor do que ele. E o tal rapaz argentino me deu muitos momentos de euforia. Quero destacar um. Em 2015, na final da Copa Del Rey, o Barcelona enfrentou e demoliu o Athletic Bilbao, e Messi marcou o que é para mim seu melhor gol. Um sequência garrinchesca de dribles que culmina num gol impagável. Se o Brasil x Holanda no Mané Garrincha foi o último jogo que vi com meu pai no estádio, esse foi o último que vimos pela televisão. Estávamos acompanhando o jogo, era abril de 2015, e de repente Messi fez aquilo. Não conseguíamos parar de rir. Em agosto o pai parou de sorrir aqui no velho mundo.

Esse foi um momento de euforia. Messi me fez sorrir muito nessa década e meia acompanhando-o barbarizar pelos gramados mundiais. E não tem jeito, quando eu o vejo fazendo coisas que causam euforia, eu penso no que o velho diria. Imagino o sorriso gostoso com os dribles sobre o Gvardiol, e o passe contra a Holanda. Que coisa.

Sobre Barcelona, ainda há algo a dizer. Raras vezes a vida entrega o que sonhávamos. Ainda mais raras são as ocasiões em que as expectativas são superadas. Talvez você tenha sentido isso em uma viagem de turismo, quando um monumento no seu roteiro em Amsterdã, no Rio, em Londres ou Viena foi tão mais do que você imaginava que se tornou uma espécie de padrão ou referência para tudo o mais. Comigo um lugar assim é a Basílica da Sagrada Família em Barcelona. Uma obra agora finalmente quase completa, no maravilhoso estilo Art Nouveau de Antoni Gaudí (com muita influência gótica ainda!). Para mim a igreja mais impressionante do mundo. E o que é entrar nessa igreja? Outro dia num sermão no Salmo 99 falei que lembro-me de emudecer completamente ao entrar naquela igreja. A sensação de estar em algo que eu descrevo inadequadamente como “uma floresta mágica e mística de pedras moles e luminosas”. Um senso de estar num ambiente em que há, cuidado, algo sublime. De algo que pega você turistinha brasileiro pelo pescoço, arregala seus olhos e te diz “presta atenção, guri. Voce está bem longe de casa. Isso aqui é muito, muito especial. Abra os olhos, sinta, reflita e que o sorriso assombrado em teu rosto não se esqueça jamais do que foi estar aqui dentro.” Barcelona me oferece Messi e isso. Eu preciso voltar lá, sentir-me de mãos dadas de novo. O que vivi lá foi muito real e muito belo. E anseio por voltar. Ele me lembra de coisas superiores, de lágrimas e sorrisos e corações, e de que a vida é feita de muito mais do que aquilo que me pertence.

Sagrada Família, em Barcelona

Agora, um ponto importante. Estritamente falando, a Sagrada Família não me pertence, pois sou Protestante. Mas me pertence por ser humano e por querer desfrutar daquilo. Eu pude desfrutar imensamente mesmo sem ser meu.

Quando a final ia se aproximando, como já mencionamos, brasileiros começaram a debater com afinco sobre se iriam ou não torcer para a Argentina. A maioria dos que estavam empolgados com a Argentina, o faziam por causa de Messi. Outros o fizeram por conta de desgostar das França. É claro, a irracionalidade emotiva e bárbara é justamente o que amamos. E não é algo somente brasileiro. Muitos espanhóis torceram pelos franceses pelo simples asco de ver o ídolo do Barcelona, Messi, vencer o mundial. Para que time você acha que esses espanhóis desalmados torcem? Não vou sujar meu artigo escrevendo o nome daquele time branco.

Vamos à final.

Um campinho em Lofoten, Noruega. Acho que é meu campo favorito no mundo. Não tem nada a ver com a Copa, mas tem.

Chegou ao fim a Copa de 2022. Só falta o jogo decisivo.

Euforia. Eu achei que ficaria uma semana sem dormir depois da final. Foi o Allen Porto que perguntou algo como, “se não sou argentino nem francês, por que é que estou com de pé e com o coração acelerado?”. Pois futebol é isso. A melhor invenção do homem, como disse o Mauro Cézar Pereira. Capaz de nos fazer rir e chorar sem ter nada de quantificável nem a ganhar e nem a perder.

Fazia muito tempo que eu não sofria assim numa final de Copa. Sofri, é claro na de 2002. Vimos o Brasil x Alemanha, a turma toda da igreja lá na casa do João Inácio. Sofri e sorri. Sofrera nas anteriores, pela derrota em 98 e pelo triunfo nos pênaltis em 94.

Em 2006 assisti torcendo por um grande jogo de Zidane em sua despedida. Nosso lindo quadrado mágico tinha ficado só na esperança. Acabei vendo Zidane dar uma cabeçada em Materazzi e depois a Itália vencer a Copa. Eu realmente estava meio que torcendo pelas duas, e foi uma final memorável.

Em 2010, morando nos Estados Unidos enquanto completava o doutorado, tinha um interesse também acadêmico no jogo. Aquela pesquisa foi o germe para meu livro sobre futebol. Assisti a final sem saber bem por quem torcer no início, mas me inclinado para a Espanha durante a partida. Revi os melhores momentos do jogo recentemente e a final foi melhor do que me lembrava. E sim, foi bem violenta. Ah, sim, e teve o maravilhoso momento do Iniesta de mi vida.

Em 2014, domingo de tarde, estava ao mesmo tempo querendo ver a Alemanha vencer e ver o Messi campeão. Já gostava muito dele, mas ainda não como hoje. Mas não sofri muito, não. Quando o gol alemão saiu, eu estava ouvindo no rádio e chegando na igreja para pregar.

Em 2018 simpatizava tanto com a França como com a Croácia, e o jogo foi resolvido meio que de repente. Foi mais mesmo o deleite de ver um jogo com seis gols encerrando uma bela Copa.

Desta vez, não. Nada de leveza. Nada de um olhar acadêmico. E nem era o meu país jogando. Foi sofrimento como forma de diversão, como diria o Hornby.

Durante o maravilhoso jogo de França e Argentina eu tentava de tudo. Peguei um livro de fantasia para ler e ver se deixava a narração só no background da mente. Até que funcionou bem no primeiro tempo, naquele maravilhoso nó tático que Scaloni deu em Deschamps. Eu tomava xícara após xícara de café (caneca após caneca, vai).

Aí foi aquela loucura com Mbappé fazendo 2 gols em 3 minutos, sendo o segundo algo praticamente implausível. O jogo que parecia resolvido, de repente ameaçava virar totalmente. Meu coração nublou, aquele sexto ou sétimo sentido que se insinuava para mim dizendo que já era, ia dar ruim.

Sempre me explicaram que o que sentimos não é a velocidade, mas a aceleração. Isso é claro, fácil de entender quando comparamos o estar numa rodovia a 120 km/h de forma estável, e a aceleração brutal de uma montanha russa, ainda que não cheguemos à mesma velocidade. O que aconteceu na final foi uma aceleração brutal, a partir do pênalti que a França conquistou. O jogo estava bom, sim. Um domínio impressionante dos argentinos. Domínio tático, técnico, emocional. De repente o carrinho de montanha-russa despencou lá do alto. E foram quinze minutos de jogo e depois mais trinta de prorrogação mais uma 4 horas de disputas de pênalti em que a situação ia ficando cada vez mais louca. Muita gente com o coração acelerado, sem conseguir acreditar que as expectativas mais exorbitantes estavam se cumprindo. Grupos de Whatsapp e Telegram explodindo. Mbappé e Messi fazendo gols, alternando a artilharia, esticando o que se pensava ser possível acontecer numa final de Copa

No começo da prorrogação minha filha com muita dor de gases precisava de uma simeticona. Eu, passando mal com o jogo, me prontifiquei na hora a ir para a farmácia. Não tinha estômago. Cheguei na porta da farmácia, uma chuva absurda. Deixei o celular no porta-luvas pois certamente iria molhar. Eu realmente não estava com pressa pois eu já estava apavorado com a possibilidade da Argentina perder. Sim, meu coração estava revelado, voltarei a isso já já.

Na hora de pagar, ali colocando a senha do cartão, eu escuto gritos no boteco ao lado. Boteco bem boteco mesmo, sabe? “O senhor quer CPF na nota?”, me perguntava a jovem atendente da Drogasil. Nem respondi, só corri para o boteco. Desculpa, moça. No boteco, a homarada estava semiconsciente, um terço deles sem camisa. Muita comemoração, e instintivamente achei que teria sido mais um gol francês. Para minha surpresa, não era. Todos celebrando o gol de Messi. Fui bem recebido lá dentro e teve até abraço. Olhei o tempo no placar e calculei que conseguiria chegar em casa a ponto do apito final para celebrar o título. E claro, tinha de levar a simeticona. Deixei meus novos amigos do boteco e tomei mais chuva. Entrei em casa e ouvi minha filha (já sem dor mesmo sem o remédio) dizendo “Pênalti para a França”. Fiquei confuso. Será que ela estava vendo um replay e se confundiu? Não. O que está confuso é o mundo. Ela estava vendo claramente. Em seguida veio aquela sequência insana de quase gols, o primeiro uma defesa inefável do Emiliano Martínez (talvez a defesa mais importante da história do futebol), seguida do Lautaro Martínez dando uma de Higuaín, que famosamente perdeu um gol na final de 2014 e que custou o título aos argentinos. Essa história estava parecida demais com a anterior. Esses segundo foram num fôlego só.

Os olhos exaustos e sem compreender o que estava acontecendo. O coração vai juntando essas coisas e ficando obstruído e ao mesmo tempo, um pouco livre para sonhar.

Aliás, será que o coração aguenta? Neste ano li o maravilhoso O jogo do Anjo do Carlos Zafón. Que livro dolorido. Literatura que parece futebol, de tão bela e sofrida. Em certo momento, há a seguinte conversa:

— Sabe o que é bom nos corações partidos? — perguntou a bibliotecária

Neguei.

— É que só podem se partir de verdade uma vez. O resto são apenas arranhões.

Você acha que isso vale apenas para amores? Acho que vale para futebol também. Meu coração futebolista foi partido em 1994, quando fui ao Morumbi para ver a final da Libertadores e o São Paulo perdeu nos pênaltis para o Velez Sarsfield. Se partiu de forma tal que o que aconteceu com a seleção brasileira em 98, 06, 10, e até mesmo no 7x1 em 2014 foram relativamente apenas arranhões. O coração costurado sangra, mas se acostumou a sangrar e não se surpreende mais com a própria dor.

A vida envolve momentos que sabemos que irão definitivamente marcar nossos corações, mesmo que os evitemos. Eu tentava ao máximo nem pensar nesse jogo, mas ele se aproximava. E ali no intervalo entre a prorrogação e os pênaltis tudo isso se acumulava e virava até confusão mental. O mundo só falava nisso. Como vai terminar essa tragédia, ou comédia, não sei? Num artigo pensando sobre experiências religiosas, Federer e Pelé, Brian Philips diz algo que me parece uma excelente síntese do que é que um grande atleta pode, de vez em quando, nos proporcionar. Um senso de uma história que termina do melhor jeito possível.

Pelé… me parece uma comédia, ou melhor, um comediante: não como um comediante ou satírico, mas como o oposto de um trágico, o autor do tipo de comédia clássica que sempre termina com um casamento, o tipo que se diverte em virar a ordem das coisas de cabeça para baixo para que possa dar a você a satisfação vertiginosa de vê-las viradas de cabeça para baixo novamente. Esse tipo de comédia está no ramo da reconciliação: o rei se mostra sábio, os amantes se amam e os vilões se revelam fracassados, por mais que as coisas pareçam por um tempo.

Pode uma história no mundo real terminar tã bem quanto nos romances? Pode algo na realidade ser tão saboroso como em nossos sonhos literários, imaginação infantil e delírios de torcedor? Estava chegando a decisão por pênaltis. O que viria disso? Eu estava torcendo muito, muito mesmo para a Argentina. Como entender? Talvez seja só um exercício fútil. “Como você consegue torcer para a Argentina?”. Muitos me perguntaram. Oras, como se eu houvesse escolhido! A resposta está aqui, nos labirintos do coração. Sei que esse labirinto tem minotauro, todos têm. Não sei se tem Ariadne.

Na canção mais popular da torcida Argentina nesta Copa, a deliciosa “Muchachos”, a letra diz:

No te lo puedo explicar

porque no vas a entender

Acho que é isso, estou tentando entender e sei que passa pelo amor grato a tudo o que Messi me deu em Barcelona, junto com o desejo de ver essa história especificamente sendo a história que passaria das possibilidades para a realidade.

Foi Literatura. O Leo Galdino que definiu assim. Eu concordo. Foi literatura. Há excelentes escritores que fazem do esporte seu tema. Nelson Rodrigues, Armando Nogueira. Nick Hornby. Há um narrador chamado Peter Drury que sempre traz algumas dos mais belos e inspirados comentários. Na vitória Marroquina contra Portugal ele foi maravilhoso:

“Bebam em Casablanca, saboreiem em Rabat, esta é a sua noite. Vejam-no do topo das montanhas do Atlas, de cima do expresso de Marrakesh, uma noite que Marrocos jamais esquecerá” .

De fato. Literatura. E foi uma história incomparável. Havia finalmente uma seleção africana nas semifinais da Copa. Não foram os camaroneses do hilário Roger Milla ou do letal Samuel Eto’o, nem os costa-marfinenses de Didier Drogba ou os nigerianos de Okocha e Kanu. Foram os norte africanos de Marrocos, fazendo incontável multidão sonhar com a glória esportiva.

Não foi um enredozinho mal costurado desses que por vezes a gente lê ou netflixeia. Não, senhor. Eram tantos fios de história se juntando naquele dia que mal dou conta de lidar com tudo e já estou há alguns parágrafos abusando da paciência do leitor. A trama literária desta Copa foi de tirar o fôlego. Vou citar uns 6 de 700 fios possíveis.

  1. Messi x Mbappé — Os dois melhores jogadores do torneio raramente se enfrentam na final, geralmente um cai antes. E os dois ainda por cima representando o final de uma geração e o início de outra. E colegas de clube! Gosto de como o Peter Drury colocou: “Lionel Messi olha para o seu pico final, Kylian Mbappé espreita no sopé da grandeza. Dos Andes aos Alpes, do Rio da Prata ao Sena, o planeta se une ao redor do maior dos jogos”. Isso! Um gigante estabelecido tentando vencer seu Everest. Um jovem que todos sabem que será enorme, tentando galgar um paredão que o faria brilhar muito, e muito cedo. Na disputa de pênaltis um locutor do Cazé TV disse ser uma batalha entre “o futuro já presente e o passado que ainda é presente”
  2. América do Sul x Europa — Outro debate que nunca passa. A Europa tinha vencido as últimas quatro copas. Os sul-americanos não venciam desde o Brasil em 2002. E de fato o domínio europeu vinha sendo enorme. Nas últimas quatro copas, dos 16 semifinalistas, 13 haviam sido europeus. Apenas Brasil e Argentina em 2014 e o Uruguai em 2010 haviam furado o bloqueio. E talvez você se lembre de como foi nosso desempenho naquela semifinal…
  3. Messi do Barcelona x Messi de Seleção — Essa sempre foi a grande crítica; de que ele supostamente só jogaria bem no Barcelona. Não era verdade, mas de fato faltava um grande título para consolidar seu legado no futebol de seleções. Ele já havia vencido a Copa América em 2021, com final sobre o Brasil em pleno Maracanã. Mas, para muitos, e acho que para ele mesmo, sem a Copa do Mundo algo ficaria incompleto. Um livro desses publicados postumamente, que ficou sem final adequado. Eu já estava tentando convencer a mim mesmo de que no final das contas não importava tanto assim se ele ganhasse ou não. Afinal, com num sei quantas bolas de ouro, chuteiras de outro, Liga dos Campeões, Campeonatos espanhóis, etc, Messi já estava consolidado como o maior do Século 21. Eu dizia para mim que não faria diferença, assim mesmo como quando a gente fica tentando baixar as expectativas para um primeiro encontro, ou um filme que secretamente torcemos para ser o melhor de todos os tempos. Mas o medo de Messi não ir bem estava lá. Havia a conversa forte de que Messi nunca jogava bem nas fases de mata-mata (a partir das oitavas-de-final). De fato ele nunca havia marcado um gol fora da fase inicial, o que não significa que não havia jogado bem. Basta assistir aos melhores momentos dos jogos de 2014 e 2018 para ver essa falácia pelo que ela de fato é. Aliás, Cristiano Ronaldo, sobre quem falaremos abaixo, nunca marcou nessa fase tampouco. Era, de qualquer maneira, a oportunidade de Leo colocar uma estaca no coração dessa conversinha mole sugadora de sangue. Parte do que faz da Copa algo tão belo e fugidio é precisamente a raridade, pois o torneio ocorre apenas a cada 4 anos. Ou seja, um jogador que consiga ter uma longa carreira, livre de contusões sérias e jogando em alto nível, vai disputar a Copa no máximo 5 vezes. E como Jonathan Wilson bem lembra: “Para aquele punhado que chega a cinco, uma Copa do Mundo tende a ser como um jogador extremamente inexperiente e outra como um veterano chegando ao fim da estrada — são três, no máximo, no auge.” Veja como isso funciona. O grande Zico, por exemplo. Não foi à de 74, ainda muito novo. Jogou duas em grande forma física e técnica (78 e a fatídica 82) e mais uma já sem grandes condições (86). Maradona, outro exemplo. Todos se lembram dele ganhando em 86. Mas em termos de ciclo, ele foi preterido em 78 (muito novo segundo o treinador), perdeu na final em 90 e foi suspenso em 94. Do possível ciclo de 5 Copas, um título, um vice. Mais um exemplo, Ronaldinho Gaúcho. Um dos maiores jogadores do século jogou apenas duas Copas (02 e 06). Em 98 ainda era junior, surgiu para o mundo em 99. E em 2010 quando ainda teria idade, ficou de fora por questões diversas. Percebe? Grandes atletas podem passar um carreira inteira jogando apenas duas ou três Copas. Ronaldo esteve em quatro, sendo que na primeira nem saiu do banco de reservas. Romário esteve em duas. Messi estava em sua última chance. Na de adolescente, 2006, entrou e fez gol e assistência. Em 2010 foi um caos mal-gerido por Maradona. Em 2014 ele levou a Argentina até a final e em 2018 a decepção de cair nas oitavas para a França. Teoricamente as três grandes chances já haviam sido desperdiçadas. Restava a Copa da “velhice”.
  4. Messi x Cristiano- esse é um debate um tanto cansado já, tão cansado como o Cristiano Ronaldo tentando correr na Copa (desculpem, eu sei que foi gratuita essa). Mas o grande ponto de inflexão no debate sempre fora o fato de que CR venceu um título com Portugal, a Euro 2016. E ficava essa história de que Messi não tinha título. A já mencionada Copa América mudou isso, mas vencer a Copa do Mundo resolveria de vez.
  5. Messi x Maradona — Essa, é claro, é a medida que importa para muitos. Pelé é e segue sendo o melhor da história, na minha humilde e correta opinião. Mas pouca gente de fato o viu jogando no auge. Realisticamente falando, ninguém nascido após 1965 (mais ou menos) viu Pelé jogar o suficiente. Ou seja, a maioria dos torcedores de futebol não viu o rei. Muitos viram Maradona, e ele é ao mesmo tempo melhor do que você se lembra e pior do que você imagina. É complicado. Messi vencendo uma Copa, como Maradona, seria maravilhoso. Lembrando que Maradona não marcou na final, mas mesmo assim todos se lembram de 1986 como a copa dele. Aliás, nenhum do jogadores da atual Argentina se lembra, todos nasceram após 86. Mas todos foram criados com as lendas. Uma história de amor e de fantasma, como todas elas são.

Muitas histórias compondo essa peça, esse drama. Lembranças e anseios misturados. Medo de ser muito feliz e essa felicidade ser roubada de nós. O coração é enganoso, mais do que todas as coisas. Quem nunca pegou o próprio coração fazendo truques consigo mesmo? Assim que se confirmou a final, temi.

Preferia, de certa forma, que Messi perdesse antes da Final, se fosse para perder. Melhor nunca ter essa marca de duas finais perdidas. Se for para a final, melhor jogar com Marrocos do que com a França, certo? Mas ao mesmo tempo a glória de vencer a França seria maior e o risco da vergonha de perder para Marrocos seria pior. Eu estava na verdade é evitando pensar nisso tudo. Uma vez confirmadas as nações finalistas, meu coração começou a me pregar várias peças. Primeiro me convenci de que não seria mal a França vencer, afinal é uma seleção de grandes jogadores, que superou a perda de diversos atletas contundidos antes do torneio, etc. Seria uma história bonita e eu conseguiria viver com ela. Isso durou um dia. Era eu tentando evitar a dor caso Messi perdesse. Me convencendo de que a Copa estaria em boas mãos e não devia ficar triste. E o coração gritando “Torça para o Messi e a Argentina, seu covarde!”. Foi o que eu fiz, mas por um caminho meio tortuoso.

Segui então me convencendo de que não seria tão ruim assim a Argentina ganhar, pois não queríamos de forma alguma que a França igualasse a façanha brasileira de vencer duas Copas seguidas (1958 e 1962). Além de que a França apresentava riscos mais sérios à hegemonia pentacampeã brasileira. Ninguém leva muita fé de que essa Argentina voltará a ganhar sem Messi daqui a 4 anos. Já a França parece hoje ser uma plantação fertilíssima de craques e não me espantará se vencer mais algumas. Então, meu coração, creio que por um misto de vergonha e timidez, convenceu-se de que torceria para a Argentina por isso. Durou certa de quatro horas essa fase. Finalmente me convenci de porque estava puxado para a Argentina. O fato, inconteste, é que muitas das decisões que tomamos na vida são tomadas sem percebermos que já as tomamos. O coração já se definiu para onde vai ou o que vai amar, tudo o que fazemos é buscar com a mente razões para apoiar a decisão já tomada e lhe dar algum senso de legitimidade. Meu coração já tinha escolhido. Era gratidão, ao atleta que me deu mais momentos de euforia em minha vida.

Claro, a partir desse momento vários outros medos foram desbloqueados. Um seria a Argentina perder e ele ser o culpado por causa de um pênalti perdido ou algo assim. Um outro medo seria o da Argentina vencer apesar dele ter jogado mal ou mesmo perdido um pênalti etc. O melhor cenário seria a Argentina ganhar com ele arrebentando. Medo sobre medo contrapondo as esperanças de deleite sobre deleite. Ainda bem que isso é só a cada quatro anos.

Literatura. Quantas histórias? Aliás, pensando em termos de uma história perfeita, se Messi tivesse vencido em 2014, teria sido menor. Como bem disse um articulista:

Imagine que Higuaín converteu essa chance na final de 2014. Messi teria seu título mundial, mas depois de um torneio em que suas contribuições decisivas foram, para seus padrões, poucas. Nas finais de 2022, ele não conseguia deixar de ser decisivo.

Foi maravilhoso poder torcer por quem nem sequer me pertence. Neste ano terminei de ler pela primeira vez Os irmãos Karamázov. Lá pelo final, há um discurso belíssimo feito por um dos irmãos, Aliocha após um enterro. E ele discorre sobre como lembranças de coisas boas e importantes que vivemos podem nos impedir de sermos maus, ou nos resgatar de nós mesmos caso estejamos num caminho ruim. Aliocha diz:

“Então, saibam que não há nada mais nobre, mais forte, mais saudável, mais útil, na vida, do que uma bela lembrança, principalmente uma lembrança de infância. Falam-lhes muito de sua educação, mas uma bela lembrança, sagrada, guardada desde a infância, talvez seja a melhor educação. Se nós levamos muitas dessas lembranças ao longo de toda a vida, estamos salvos para sempre. E, mesmo se uma só dessas lembranças permanece em nosso coração, um dia ela pode servir para nos salvar… Mais ainda: talvez justamente esta lembrança o livre de um grande mal…”

Copa é acerca de criar lembranças. Cada Copa é a última de muita gente. Cada Copa é, obviamente, a primeira de muitos. Lembranças podem nos ajudar a viver melhor, a evitar caminhos do coração que se amargura. Podem se tornar um lugar seguro onde o coração se refugia quando tentado a se irar. Eu queria muito que minha filha tivesse, em seus 9 anos de idade, tido a bela lembrança de comemorar um título. Ela teve, entretanto, a estranha lembrança de ver seu pai celebrando uma vitória que nem era dele. Por que o pai dela sorriu tanto e gritou tanto naquela disputa de pênaltis? Suspeito que para que o esquema proposto por Aliocha Karamázov possa funcionar, a lembrança precisa ser agridoce. Precisa envolver beleza na tristeza e um senso de que a vida segue mesmo que eu não seja o vencedor em todas. Isso nos impedirá de ser maus de um jeito que um triunfo nosso não tem como fazer.

Todo mundo sabe que assistir disputas de pênaltis é um deleite, desde que seu time não esteja participando. É como ficar numa banheira, num ofurô gostosinho tomando sua bebida de preferência e refestelando os olhos na coisas belas da vida, vendo a mata e as aves. Entretanto, se seu time está na disputa, aí é sofrimento imensurável. Minha filha viu o pai sofrer ao ponto de precisar se sentar, e se alegrar enormemente como quem diz “Eu não acredito que isso está acontecendo. Não acredito que o roteiro perfeito aconteceu.” Foi como uma história de aventura, de romance, de espionagem, de guerra em que tudo sai melhor do que você sonhara, pois o escritor é ainda mais criativo que você em criar emoção e te levar a um final satisfatório.

Ela viu seu pai feliz com a vitória alheia. Não pois eu sou algum tipo de homem super altruísta, não. Mas tenho tentado, como Paulo disse, aprendido a achar contentamento. Esse foi um tema constante no meu ano. Apareceu em muitos de meus sermões, lidando com Jó, com Paulo e com outros. Apareceu nos livros que eu li de Dostoiévski, tanto no já mencionado Karamázov como no brutal Noites Brancas. Apareceu em Piranesi da Susanne Clarke e no Zafón e em todo lugar. Alegria e contentamento no mundo escuro que não anda como gostaríamos.

Então, não é que minha filha viu em mim um grande homem, eu não o sou. Ela viu um homem cujo coração já foi partido pela vida e pelo esporte, e que hoje é no máximo arranhado. E assim como o Aguero, meu coração não me permite ao mesmo tempo que me permite festejar com Messi e sua turma.

Sou apenas um homem que se alegrou em ver quem tanto lhe fez bem sorrir; alegrar-se com algo que lhe era muito importante, mesmo eu não tendo direito a participar junto. Como é bom nos alegrarmos com alegrias que não são exatamente nossas, mas que se tornam nossas por apropriações afetivas. Alegrar-se com quem se alegra é algo bem difícil de aprender. Que essa memória te sirva bem, filha. Que te ajude em algum desses dias cruciais na vida em que você terá de decidir se será má ou boa. Eu já me decidi, e isso tem sido bom para todos os que amo.

Alguém escreveu que esse pênalti final talvez tenha sido o maior momento de alegria coletiva que o planeta já experimentou. Eu fiquei tentando pensar se algo superou isso. De fato, nada. Os números variam bastante, mas podemos com confiança dizer que centenas de milhões de pessoas se alegraram com o pênalti decisivo.

Em O Jogo do Anjo, romance do Zafón, em certo momento o protagonista iria fazer uma bondade a outra pessoa e diz:

“Ao chegar em casa, estava disposto a desfrutar daquela satisfação egoísta que colocar um belo presente nas mãos de alguém proporcionava.”

Satisfação egoísta? Creio que ele se referia a ideia de que por vezes presenteamos não pelo bem que o outro terá, mas pela satisfação que sentiremos. Um gesto egoísta disfarçado de altruísta. E sim, isso pode ocorrer, mas não é necessariamente assim. Há sim uma alegria deslumbrante em ver alguém a quem amamos ou admiramos conquistar algo que para ela é muito, muito importante. Mas não sei se o personagem do livro entendeu bem o quanto de altruísta isso pode ser. Entendo que pode haver uma dose de egoísmo, mas talvez seja essa a verdadeira alegria altruísta, deslumbrar-se no triunfo alheio mesmo que a pessoa e o momento não te pertençam. Se alegrar com quem você ama mas que não te pertence. Saber que a igreja mais bonita do mundo não é das suas, que o triunfo mais espetacular da história esportiva não foi amarelo. E tudo bem.

Ver Messi ganhar a Copa do Mundo não resultou em feriados para mim, em idas ao Eixão para ver a seleção passar, como fiz 20 anos atrás com a autorização do gerente da agência do Banco do Brasil em que eu trabalhava. Não surgiu uma estrela nova em minha camisa amarela. Mas como me alegrou. Uma alegria deleitosa de ver alguém que tanto me alegrou conseguindo algo que lhe é precioso. Não há nada para você nessa vitória, a não ser o derramamento de alegria que, se você deixar, vai sim te pertencer.

Meu coração quis que aquela alegria acontecesse, uma alegria que, estritamente falando, não me era minha por direito. Mas que pelo simples fato de desejar que acontecesse aos outros, se tornou minha, se tornou sim. Meu coração que já foi partido e muitas vezes arranhado, sabe quando é hora de sorrir. E olha, acho que ainda está um pouco acelerado.

Não estou tentando julgar você cujo coração se decidiu pela França. Talvez você tenha um cunhado argentino insuportável, talvez você tenha sido lesado por um taxista saindo do tango em Buenos Aires. Talvez você tenha um ódio antigo e amargura enraizada contra times argentinos. Ou talvez você seja simplesmente louco por Kylian Mbappé. “O coração têm razões que a própria razão desconhece”, como diria Vampeta. Ou Pascal, não me lembro bem. Aliás, Pascal provavelmente seria um bom ponta-esquerda, desses ciscadores que enlouquecem a defesa e deleitam a multidão.

Peter Drury resume: “O maior jogador de sua era finalmente recebe o maior prêmio que o futebol pode oferecer no final de uma das maiores partidas de futebol já disputadas.” Sim, um resumo perfeito. Algo realmente de conto de fadas. Tudo dando certo de um jeito maravilhoso, quase dando errado de muitas formas no percurso. Como todas as boas histórias.

E assim ficamos. Chorando de mãos dadas diante do fim. Você já teve momentos assim, como os de Federer e Nadal? Rivais e parceiros. Gente que nos viu em nosso pior e melhor? Quando chegamos ao fim de algo deslumbrante, impressionante, e inigualável. Chorar de mãos dadas diante do fim agridoce, diante dos monumentos que definem nossa história, ainda que ninguém o saiba.

Para os argentinos foi muito, muito doce. Para alguém que não teve o final que podia. Não foi o final que eu mais queria, mas foi bom. A vida cristã envolve entender que mesmo o final não sendo o ideal, sendo agridoce, ele pode ser de certa forma satisfatório, pontilhado de momentos gloriosos que revisitarei com sentidos e memórias afetivas, e deixando, mais que isso, ativamente me esforçando para deixar as partes desagradáveis viraram poeira de memória.

Celebrar o triunfo de Messi e de sua Argentina foi saber nas entranhas que é legítimo celebrar o triunfo de quem não é dos meus. Amar algo ou alguém que não é meu, mas que de certa forma pode sim esparramar alegria para mim por meio desse afeto inesperado.

A Copa não ficou comigo. Não me pertence. Não fui dançar na 9 de Julio. Ela não me pertence, mas me pertenceu.

Posso não ter vencido; mas que histórias, que lembranças. A vida no mundo caído é aprender a se alegrar mesmo com os finais que não eram nossa primeira opção. Achar alegria o suficiente para poder mesmo assim investir o coração em vez de viver na apatia. Nos despedirmos do que vivemos, com mãos dadas, olhos molhados e a certeza de que vivemos, e muito. Deixar que contentamento seja maior que a inveja.

Este mundo é muito, muito sofrido. E entender que eu posso fazer alegria que não me pertencem ser minhas é um das melhores formas de afugentar a solidão, de conectar corações, de pontilhar o deserto da realidade com óasis, ainda que em muitos eu seja apenas um alegre visitante. Se você guardar o seu coração apenas juntinho de si ele vai se limitar apenas às alegrias que te pertencem. Mas se você se dispõe a entregar pedacinhos do seu coração a outras partes do mundo, então sim, você vai sangrar mais vezes, mas a compensação vai ser maior.

É como se alegrar numa igreja que é uma floresta mágica. É como celebrar um gol de pênalti feito por um argentino. É ser grato pela linda história que foi contada, ainda que eu não seja o herói. Aliás, esse é um dos pontos centrais da vida cristã, não? Saber que nossa alegria não vem de nosso triunfo, mas de nos alegrarmos com uma multidão internacional com o triunfo de Filho de Deus em nosso favor. Chorar de mãos dadas diante do fim agridoce. Diante de algo que para nós significou a vida toda.

Mesmo a vitória na Copa não sendo minha, me alegro, sinceramente me alegro nas maravilhosas lembranças que me ela me deu. Elas são tantas e tão variadas, que mesmo as dores envolvidas se tornam ínfimas, grãozinhos de areia, desses que encontramos no deserto do Catar.

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