Corpos frágeis e corações melancólicos sob estrelas infinitas — Cixin Liu e a trilogia “Lembrança do passado da Terra”

Emilio Garofalo Neto
emiliogarofaloneto
Published in
10 min readJul 3, 2018

Nossa capacidade como imagem de Deus segue grandiosa e nossos feitos mostram isso. Mas somos manchados pela queda mesmo nas melhores ações.

Você quer mesmo saber? Quanto mais você tiver desse tipo de conhecimento, menos luz haverá em seu coração.

Meu coração já está completamento escuro. Eu quero saber.

O fim da morte, livro três da série.

“Quem aumenta a ciência, aumenta a tristeza.”

Salomão, em Eclesiastes.

Terminei de ler recentemente a estupenda trilogia de ficção científica do celebrado autor chinês Cixin Liu. Costumo ler vários livros ao mesmo tempo; é muito raro parar tudo para focar em um único livro. Pois foi o que aconteceu com essa trilogia. Oficialmente é chamada de trilogia “Lembrança do passado da Terra” mas é mais conhecida como Trilogia “Problema dos Três Corpos”, que é o título do primeiro livro (ed. Suma das Letras). A série soma quase 1500 páginas, e li muito, muito rápido. Essa série já estava em meu radar há um tempo. Confesso, entretanto, que estava um pouco desdenhoso acerca do fenômeno da literatura chinesa. Preconceito besta mesmo. Será que poderia o tal chinês ser bom como os escritores do ramo no ocidente? No final das contas… o tal chinês é um gênio.

Cixin Liu é, de fato, um fenômeno. Ele ganhou com o primeiro livro da série o Prêmio Hugo em 2015, talvez a mais prestigiada honraria da ficção científica. Esse foi o primeiro livro na história a receber o prêmio sem ter sido escrito na língua inglesa. Ele é um dos mais celebrados autores do mundo, quer você conheça o trabalho dele, quer não. Espero que se anime a tentar.

Li o primeiro livro, O problema dos três corpos, em português, e os dois seguintes (The Dark Forest e Death’s End) no kindle em inglês. Pelo que sei, o terceiro livro ainda não saiu em português, mas o segundo sim (A floresta sombria, ed. Suma de letras). A leitura não é difícil, embora tenha, é claro, diversas discussões mais densas, conquanto raramente inacessíveis. E essas não são apenas sobre ciência e tecnologia, mas sobre questões sociais, filosofia da ciência, teoria dos jogos e mesmo teoria literária. Cixin ou entende muito bem dessas coisas todas, ou ao menos o suficiente pra convencer este humilde leitor da plausibilidade das ideias e situações.

Embora eu seja um entusiasta quanto a ler sobre as ideias mais birutinhas do mundo da física, não tenho treinamento formal no assunto. Algumas delas são complexas, mas Cixin Liu é tão bom em explicá-las que penso que qualquer leitor terá capacidade de absorver e entender os conceitos envolvidos, ao menos o suficiente para entender o que se passa no enredo.

A leitura é célere e empolgante. No primeiro livro houve alguns poucos momentos em que dei um enroscada, mas a série fica cada vez mais excitante. Os poucos elementos de história que não apreciei muito no primeiro livro deixam de aparecer nos outros dois. Há ao longo de toda a trilogia um misto de melancolia e deslumbramento que pega meu coração leitor em cheio. Quando foi se aproximando o final do terceiro livro, comecei a enrolar. Embora louco de curiosidade, eu não queria que chegasse ao fim e me limitava a 10–15 páginas por vez. Mas sobre o que é a série?

O enredo — praticamente sem spoilers!

O enredo é tão rico, criativo e bem escrito, que seria deveras maldoso de minha parte estragar o que acontece. Acontece tanta coisa, há tantas ideias intrigantes… é duro abarcar tudo numa primeira leitura. O que trago aqui é apenas o básico, e mesmo assim apenas do primeiro livro, nada que a quarta capa já não entregue.

É, em resumo, uma série sobre a humanidade lidando com seu primeiro contato. Sim, primeiro contato com alienígenas. Lidando com o fato de haver vida fora de nossa bolotinha azul. Claro, isso não é lá muito diferente de inúmeras outras séries de ficção científica. Talvez a grandeza da obra seja precisamente fazer algo tão espetacular com uma premissa já bem desgastada. É melhor que E.T., pessoal. E, acreditem, melhor até que Independence Day.

Como acontece com autores norte-americanos que acabam fazendo dos Estados Unidos o centro do mundo, o foco da história é o que se passa na China e avançamos na história principalmente por meio de personagens chinesas. Esse é mais um elemento de estranhamento em relação ao que estamos acostumados a ler, e acabou sendo para mim mais um fato de interesse e deslumbramento. É uma história global, mas nosso foco está na China. Cixin Liu pode ser desconhecido no Brasil, mas, em seu imensamente populoso país, ele é bem popular. E foi muito gostoso aprender mais sobre esse país, sua história, geografia e cultura, que por vezes é tão diferente que parece outro planeta.

A história começa na China na época da Revolução Cultural. Naquele clima hostil e tão complexo, pessoas têm suas vidas traumatizadas pela capacidade humana para o mal. Isso vai influenciar o modo de agir de uma cientista quando confrontada com a possibilidade de entrar em contato com uma civilização alienígena. Qual vai ser sua decisão? Por quê? O que querem esses alienígenas? A trilogia acompanha dezenas de personagens, e embora haja alguns mais importantes, a ideia é mesmo acompanhar a própria humanidade como um todo em suas desventuras tentando lidar com a vida neste universo tão belo e potencialmente perigoso. Uma história acerca da possibilidade de primeiro contato e como reagiremos à vida pós-contato. O primeiro livro é a estrutura básica na qual a grande história nos outros livros irá se desenrolar de forma magnânima. Ele alterna entre a história dessa cientista e as desventuras de um pesquisador de nanotecnologia que é recrutado pelas autoridades chinesas para ajudar a desvendar alguns mistérios e uma possível conspiração. E os tais três corpos? O título faz referência a um antigo problema matemático e físico, mas é melhor deixar que o leitor descubra o que se passa ao longo da leitura.

A trama envolve refletir sobre como a humanidade avança, o que a faz temer, o que a deixa complacente, o que a provoca a erros, o que a instiga à sublimidade. É acerca da grandeza e da pequenez da humanidade. A trilogia é monumental. E ela lida com tantas ideias e conceitos que, como alguém disse numa resenha do Goodreads, há material suficiente para dez livros. De fato, vários dos eventos que por vezes levam poucas dezenas de páginas para serem descritos poderiam ser desenvolvidos em livros inteiros, e provavelmente o seriam por autores menores. Para Cixin Liu, entretanto, por vezes são meras discussões secundárias. Por exemplo: de passagem em alguns momentos ele lida com ideias instigantes como uma possível solução para o Paradoxo de Fermi, ensaia uma explicação para a existência de matéria escura e o faz de maneira tão elegante e plausível que arrebata o leitor para o seu lado.

A trilogia lida muito bem com ideias científicas e tecnológicas, fazendo um bom trabalho em manter as coisas “realistas”. É claro que tecnologias suficientemente avançadas são indistinguíveis de mágica (Terceira Lei de Clarke), mas cada avanço na história parece duramente conquistado e plausível.

Há diversos pontos de interesse teológico que me vieram à mente enquanto lia. Pelo que sei e pelo que aparenta em seus livros, Cixin Liu não é cristão. Algumas das ponderações que ele faz no livro acerca de religião mostram um viés ateísta/naturalista e uma fundamental incompreensão do cristianismo. Entretanto, sendo um homem feito à imagem de Deus e operando no mundo de Deus com dons dados por Deus, ele consegue um belo e verdadeiro entendimento sobre muitos aspectos, apesar de sua cosmovisão. Vou lidar brevemente com alguns pontos que me chamaram a atenção. Farei isso, novamente, sem spoilers. Depois que acabar o artigo propriamente dito, trarei uma breve discussão envolvendo os eventos do final da série, mas calma, irei avisar claramente quando chegarmos lá.

A capacidade humana para fazer bobagem e maravilha

Cixin conhece bem a capacidade humana para o mal, para a negligência, para a arrogância e o desleixo. Na trilogia, pessoas tomam decisões tolas, fazem escolhas mesquinhas, bolam vingancinhas e toda sorte de coisa que nós humanos sabemos muito bem fazer. É bem interessante ver como o avanço humano não é linear, é cheio de recuos por conta da tolice de nossa incapacidade de fazer o que é certo. As escolhas de poucos afetam muitos. Cixin não é ingênuo acerca da humanidade. Somos capazes de estragar belas coisas e boas ideias por conta de nossa tolice. Essa ideia é bem condizente com a teologia da Bíblia.

É claro, não há nada de novo em pensamentos distópicos. É uma tradição bem estabelecida na história da ficção científica a análise da capacidade humana de avacalhar com tudo gerando consequências desastrosas. Mas algo nos livros de Liu me fazem pensar num caminho plausível para a humanidade. Fazemos bobagem e avançamos aos trancos e barrancos. Nos iludimos, nos enganamos, somos arrogantes e mesmo assim conseguimos fazer coisas maravilhosas. Essa é a condição humana após a queda de Adão e Eva. Somos como carrinhos de supermercado, com uma rodinha boa, uma emperrada, uma girando em falso e a última girando ao contrário, mas avançamos na força bruta. Somos ruínas de maravilha, como costuma dizer o Rev. Wadislau Gomes. Nossa capacidade como imagem de Deus segue grandiosa e nossos feitos mostram isso. Somos, entretanto, manchados e deturpados pela queda mesmo nas nossas melhores ações.

Falando em capacidade criativa, é assombroso o poder do próprio Cixin de criar teorias e ideias, em um enredo tão envolvente. Glória a Deus por essa capacidade criativa. Não sei se Cixin é grato ao Deus verdadeiro por sua criatividade exuberante, não parece que seja… mas eu sou.

O assombro do universo e nosso anseio por ele

Não vou lidar teologicamente com a questão dos alienígenas. Deixo essa para o dia em que escrever sobre Michel Faber, O livro das coisas estranhas. Tratarei brevemente do assunto do anseio humano por conhecer o cosmos.

Escrevi um artigo chamado Homo Explorens, em que tento lidar com o impulso humano por explorar o planeta e, inclusive, ir além dele (artigo incluído no livro Coram Deo, ed. Monergismo). É um assunto que me fascina em suas diversas facetas: a arte de fazer mapas, a exploração espacial, o montanhismo, as expedições às profundezas do mar. A trilogia mexeu comigo nesse sentido. Conhecemos muito sobre o mundo, é verdade, mas ainda é pouco em comparação ao que há para explorar. Conhecemos pouco sobre o muito pequeno. Sobre a estrutura da matéria, sobre as forças básicas, sobre aquilo que é estupendamente pequeno. Nossas mentes têm também dificuldade com o que é muito grande; distâncias astronômicas tão impressionantes que é difícil abarcar os conceitos. O muito pequeno, o muito grande, o muito longe. Nosso coração explorador tem muito a investigar. Deu vontade de reescrever esse meu artigo; por certo incluiria algumas frases da trilogia.

Aliás, a conversa que inicia este artigo me atingiu o coração. Salomão em Eclesiastes afirma que o aumento da ciência, do conhecimento, aumenta a tristeza. E, de fato, algo assim se dá na série. Há muitas coisas que trazem tristeza e sofrimento à humanidade. Se não ficássemos sabendo de certas coisas, viveríamos mais felizes e seguros. Mas, ao mesmo tempo em que há perigo e dor em conhecer o universo… que maravilha é fazê-lo. Cixin Liu em sua trilogia me inspirou a baixar um aplicativo para meu iPhone e de noite ir pra varanda ficar olhando estrelas, procurando Júpiter, seguindo constelações. E ainda importunar minhas ovelhas para fazerem o mesmo. Acabei saindo um pouco do meu mundinho. Sabe, faz bem. Ele me fez lembrar que nosso Deus é imensamente criativo. Essa criatividade se mostra em galáxias, dimensões múltiplas, partículas sub-atômicas, buracos negros e chineses que escrevem bem. Que Deus grandioso. Olhe para cima. Sonhe. Imagine. Que Deus majestoso. Desfrute do mundo que ele fez.

Uma pequena nota com muitos spoilers para quem leu até o final

Sim, para quem leu até o final. Vou realmente e sem vergonha ou dó lidar com as últimas páginas da trilogia. Sério, por favor, não leia. O artigo mesmo já acabou logo acima. Vá ler a trilogia. Volte depois. O que vou escrever abaixo não é bom o suficiente para te fazer perder o prazer de descobrir a série.

Quatro ideias que me fazem rir gostoso e chorar um tiquinho:

  1. O universo devastado — Achei assombrosa a ideia de que nosso universo seja um ambiente devastado por guerras intergaláticas. Achei isso fascinante, pois de certa forma é como entendemos biblicamente; o universo é quebrado pelo pecado e a guerra contra o criador. No livro fica a bela sugestão de que nosso universo tridimensional é apenas uma sombra triste de algo esplendoroso que se perdeu. Ora, não sabemos o quanto o pecado mudou o mundo, mas de fato a criação geme por conta da vaidade do pecado humano. Por mais deslumbrante que seja o universo, é apenas sombra do que foi.
  2. O impulso salvífico de ações de amor — É importante como algumas das principais conquistas da humanidade ocorrem por conta de ações de amor de um homem por uma mulher. Seja Luo Ji finalmente focando em ser um wallfacer, sejam os presentes espantosos de Tianming. O amor de um homem por sua amada e simples ações de sacrifício próprio são o que permite a salvação da humanidade mais de uma vez. Amor sacrificial pela amada… te lembra de algo?
  3. O anseio por um novo universo — Cheng Xin no final da trilogia se vê com a possibilidade de vir a conhecer um novo universo, não devastado pela guerra, renascido das cinzas deste universo atual. O esplendor imaginado do que deveria ser essa nova realidade é algo que o cristão conhece, pois anseia por novos céus e nova terra onde habita justiça.
  4. A necessidade de sacrifício — No final das contas, chega uma mensagem ao universo de bolso: a massa total do universo caiu demasiadamente por conta das fugas para universos de bolso (essa frase não vai fazer sentido algum para quem não leu o livro). E Cheng Xin se vê na situação difícil de ter de se sacrificar para que o novo mundo aconteça. Mais uma vez, uma ideia bem bíblica, a de que alguém digno precisa se sacrificar a fim de que muitos vivam.

--

--