Kazuo Ishiguro e o O gigante enterrado: o dilema entre lembrar e esquecer

Emilio Garofalo Neto
emiliogarofaloneto
Published in
6 min readNov 16, 2017

CONTÉM uma dose baixa de spoilers, mas contém.

Na verdade, eram exatamente ideias assim que vinham à cabeça de Axl quando ele ficava acordado na cama nas horas vazias antes do amanhecer… e nesse momento a sensação de uma perda indefinida começava a lhe doer no coração impedindo-o de pegar no sono de novo.

Bastou que Kazuo Ishiguro vencesse o prêmio Nobel de literatura em 2017 para seus livros se esgotarem nas livrarias de Brasília. O autor nasceu no Japão, mas cresceu na Inglaterra e foi recentemente laureado com uma das maiores honrarias literárias. Muitos decidiram, por isso, ler algo dele. Fui acusado por outro articulista deste blog (tinha que ser o Leonardo Bruno Galdino) de ter seguido tal fluxo. Não que eu fosse totalmente imune. Mas, pelo que me lembro, eu já queria ler Ishiguro desde que assisti “Não me abandone jamais”, um belo filme com roteiro adaptado de uma de suas obras. Fui alegremente surpreendido com a notícia da premiação bem quando adentrava as devastadoras últimas cinquenta páginas deste romance.

O gigante enterrado é um livro um tanto assombroso. Pela qualidade da escrita, nos espanta. Pelos temas e dramas, nos visita no escuro na hora de dormir. Pela própria trama e linguajar tão bem construídos, nos faz ficar com uma sensação de que há algo que precisamos lembrar, mas que fica escapando da mente. Ishiguro conjura com palavras algumas imagens bastante perturbadoras e constrói diálogos tão comoventes que fariam qualquer cavaleiro arthuriano derramar algumas lágrimas por detrás do elmo.

Trata-se de uma história fictícia, eu acho, que se passa na Inglaterra do quinto século, sob as sombras da era do grande rei Arthur. Seguimos um casal idoso numa viagem que ambos sentem que precisam fazer, mesmo sem lembrarem muito bem o porquê. Ao mesmo tempo em que embarcam em sua jornada, vão lidando com pistas acerca de uma estranha condição que parece acometer pessoas de todo o lugar: uma temível e melancólica falta de memória, talvez causada por uma tal névoa misteriosa.

Na jornada eles encontram toda sorte de dificuldades e personagens bem estranhas e memoráveis. Algumas cenas são de nos fazer soluçar, outras são de arrepiar os cabelos da nuca. Além das tensões entre bretões e saxões, encontramos elementos bem esquisitos. Trata-se de um mundo fantástico, com ogros, névoas misteriosas e rumores até mesmo da existência de uma dragoa. Como um dos endossos do livro diz, é uma “fábula infantil sobre a idade avançada”.

Ishiguro se utiliza em sua escrita de uma técnica que nos faz sentir um pouco como as próprias personagens. Houve momentos na leitura em que eu fiquei com a impressão de que deveria lembrar de algo a respeito da cena que se passava. Quem é mesmo essa menina? O que esse bode está fazendo aí? Ishiguro nos faz sentir um pouco da própria condição descrita no livro.

Os protagonistas avançam desde sua aldeia até a aldeia onde querem encontrar seu filho, a quem não veem há muito, e cujo rosto já esqueceram. E no caminho todo precisam se assegurar de que ainda se lembram. Inclusive do que estão fazendo. “Você ainda está aí, Axl?”, pergunta Beatrice. “Estou sim, princesa.”

A história se desenrola em fogo baixo e é bem dolorida. Com lembranças que talvez firam demais se vierem à tona do coração. Com personagens que insistem em querer se lembrar apesar do risco de que as memória venham a doer. E no final das contas temos de decidir: Queremos mesmo nos livrar da névoa? Queremos mesmo que o abafar das memórias cesse? E se o que lembrarmos for pior do que o nosso amor é capaz de lidar?

Por certo há alguns personagens bíblicos que prefeririam que não soubéssemos de certas coisas que aprontaram. A Bíblia não esconde as coisas feias que seus personagens fizeram. Alguns leitores mais incautos ficam surpresos diante de certos atos de Davi, Moisés, Abraão e Israel. Por que a Bíblia age assim?

Más memórias são parte da vida de todos nós. E elas podem, de fato, exercer um poder debilitante. Mas em Cristo elas não precisam nem nos definir e nem nos amarrar. Elas podem ser redimidas. Paulo, que tinha dores de ter feito muito mal, entendia que o Senhor Jesus o redimira e que mesmo seus erros serviam para magnificar a graça de Cristo. E, quando pensamos neles à luz de Cristo, os pontos baixos das vidas dos homens e mulheres da Bíblia nos ensinam tanto quanto os pontos altos. Sempre que Davi, por exemplo, se sai bem em suas ações, somos lembrados de Cristo positivamente. Quando ele é corajoso, fiel e justo, somos lembrados de que um de seus descendentes seria ainda mais corajoso, fiel e justo. Quando Davi, por outro lado, foge acovardado, age sem pensar, apronta e se deixa levar pelos seus olhos, somos negativamente lembrados de Cristo também. Pois ele nunca fugiu, nunca agiu sem pensar e resistiu plenamente à concupiscência dos olhos. Davi nos faz lembrar com frequência que ele não é o Cristo, que precisávamos de alguém superior.

Eu sinto, Axl. Mas ao mesmo tempo eu me pergunto se o que sentimos no nosso coração hoje não é como esses pingos de chuva que ainda continuam caindo em cima de nós das folhas encharcadas da árvore, apesar de a chuva em si já ter parado de cair faz tempo. Eu me pergunto se, sem as nossas lembranças, o nosso amor não está condenado a murchar e morrer.

Vale notar que, biblicamente, a memória é importante para alimentar o nosso amor por Deus. Os salmistas insistem nisso, na necessidade de lembrar, de trazer à memória os grandes feitos do Senhor. Para o amor persistir, é bom lembrar. É claro que, no final das contas, o que garante nosso relacionamento com Deus não é o quanto nós lembramos, mas o fato de que Deus não se esquece. Certa vez, enquanto morava nos Estados Unidos, fui visitar um senhor de quase cem anos, o amável Mr. Tyner, antigo crente em Cristo, já caminhando para o final de sua jornada. Entre várias conversas, ele começou a nos contar algo sobre seu irmão. Perguntei o nome do seu irmão… e ele envergonhado disse que não conseguia lembrar. Fiquei pensando comigo mesmo: “E se o Mr. Tyner se esquecer de Jesus e do que sabe sobre ele?” Mas, por fim, não seria um problema. Pois Deus não se esquece de seu pacto com o Mr. Tyner. Não precisamos temer que o amor seja apenas as gotas d’água que ficaram nas folhas depois que a chuva acabou.

Mas a senhora tem mesmo certeza de que deseja ficar livre dessa névoa, boa senhora? Será que não é melhor que algumas coisas permaneçam encobertas?

Pode ser que para algumas pessoas sim, padre, mas não para nós. Axl e eu queremos recuperar os momentos felizes que passamos juntos. Não lembrar deles é como se fossemos roubados, é como se um ladrão tivesse entrado no nosso quarto à noite e levado o que nos é mais precioso.

No entanto, a névoa encontra todas as lembranças: tanto as boas, quanto as más. Não é verdade, senhora?

Nós aceitaremos as más lembranças de volta também, mesmo que elas nos façam chorar ou tremer de raiva. Afinal, elas não são a vida que partilhamos?

Não sei o quanto desta vida sofrida que partilhamos nesta velha Terra será lembrada em Nova Jerusalém. Será que virá uma névoa santa que apagará nossas memórias? Sei que nosso Redentor ainda terá suas cicatrizes, mesmo no corpo ressurreto. Elas apontam para uma sexta-feira feia. Mas elas apontam, ainda, para um domingo de manhã onde o pior que a humanidade foi capaz de fazer se tornou uma lembrança doce de salvação. Elas são a nova vida que partilharemos.

ISHIGURO, Kazuo. O gigante enterrado. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

📖 Livros citados:
O gigante enterrado: http://amzn.to/2iW7Z0n

Se você ficou com vontade de adquirir o livro, considere comprar através do link acima. Assim você ajuda o Literatura & Redenção a continuar abençoando muita gente.

--

--