Crítica Musical: Sons do Passado, Sociedade do Futuro

Igualdade de Género — Tapestry vs. Lemonade

MikeSemantics
Emotions in Motion
11 min readNov 22, 2023

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Fonte: Subjective SoundsWikipedia | Tapestry vs. Lemonade

Para me seguirem nas redes sociais e ouvirem o meu EP, “Anonymous Semantics”, cliquem no link aqui.

A história da humanidade tem sido marcada por várias questões sociais e uma, das mais antigas, é o machismo institucional e sistémico que priva inúmeras oportunidades a mulheres com enorme competência profissional e interpessoal.

Apesar de, nos últimos anos, se observar um crescimento de igualdade equitária (em países como a Letónia e a Jamaica), dando-nos uma maior esperança para o futuro na procura da igualdade de género (falo por mim, mas quem não concordar, recomendo ainda mais esta leitura, pois o ser humano é sempre capaz de refletir sobre os seus próprios ideais; não é recomendável viver na ignorância eternamente), esta é ainda uma realidade evidente, pois, desde os cargos administrativos aos menores, o papel da mulher no mundo empresarial é recorrentemente desafiado.

Infelizmente, esta é uma realidade muito presente na indústria musical. Com base em dados estatísticos, realizados em fevereiro de 2019, pela USC Annenberg Inclusion Innitiative (feitos, entre 2012 e 2018, à indústria americana, a mais dominante no mundo), esta conclusão é bastante elucidativa pela disparidade de oportunidades e pela aceitação do público. Desde funções como produção musical (2,2% de produtoras) e composição (12,3% de compositoras), as artistas femininas nas tabelas representam 17,1% de 700 artistas, o que revela um decréscimo bastante problemático ao longo deste período. Apesar da acessibilidade digital que temos hoje ao nosso dispor (de 22,7% em 2012, para 17,1% em 2018), este facto mostra que algo tem de ser mudado, de modo a proporcionar meios para que as mulheres se sintam mais valorizadas e encorajadas na indústria.

Se não fosse por exemplos de artistas tão diversos como Aretha Franklin, Joni Mitchell, Madonna, Diana Ross, Lady Gaga, entre outros, não teríamos tanta versatilidade e talento que inspiraram tantas gerações de artistas (incluindo eu próprio, especialmente Joni Mitchell das referidas), géneros musicais e movimentos culturais subsequentes.

Por conseguinte, os dois álbuns, em análise, caracterizam exatamente a sua importância para esta forma de arte que tanto amo e prezo, área em que, na minha opinião, o papel da mulher é essencial para o seu progresso e evolução.

Carole King — Tapestry

Género(s): Soft rock, singer/songwriter, piano rock, pop

Lista de faixas: Aqui

O primeiro álbum, em análise, intitula-se Tapestry da artista americana Carole King, lançado em 1971 pela Ode Records (atualmente, uma das editoras subsidiárias, da Sony Music Entertainment).

A partir de Tapestry, a artista alcançou o estatuto de estrela pop e de ícone para futuras gerações de mulheres na indústria musical, mesmo que nem sempre tenha sido esse o seu objetivo.

Apesar de ter tido aulas de piano e de teoria musical, desde os quatro anos de idade, King só enveredou numa carreira musical em meados de 1958, depois de ter abandonado a Queens College e de ter conhecido o seu futuro marido Gerry Goffin.

O seu percurso começou no emblemático edifício de escritórios Brill Building, em Nova Iorque (também conhecido como um género musical, face à quantidade de canções escritas e produzidas no local), onde King e Goffin formaram uma das parcerias de maior sucesso da segunda metade do século XX, sendo responsáveis pela composição de mais de duas dezenas de êxitos, nas tabelas de vendas dos Estados Unidos e do Reino Unido (entre 1960 e 1968, com períodos esporádicos em 1970, 1971 e 1984).

Alguns destes incluem “Will You Love Me Tomorrow?” das Shirelles (mais tarde interpretado por King), “I’m Into Something Good” de Earl-Jean (mais conhecida pela versão dos britânicos Herman’s Hermits), “The Locomotion” de Little Eva (e mais tarde dos Grand Funk), “(You Make Me Feel Like) A Natural Woman” de Aretha Franklin, entre outros.

Passados alguns anos turbulentos a nível pessoal, fruto do seu divórcio com Goffin em 1968, King muda-se de Nova Iorque para Los Angeles, onde reencontra o gosto pelo espetáculo e pelo canto das suas canções. Mesmo com o pouco sucesso do seu álbum de estreia, Writer (1970), a artista não desistiu e embarcou em Tapestry (fazendo referência a uma sequência instável e complexa de acontecimentos na sua vida), uma obra-prima que demonstra o seu lado frágil e vulnerável, bem como a sua audácia como performer.

O disco contém uma mistura de canções antigas [como “Will You Love Me Tomorrow” e “(You Make Me Feel Like) A Natural Woman”] e novas de King, representando a dualidade da sua antiga experiência, na Costa Este, em relação à sua nova vida na Costa Oeste.

O projeto musical foi produzido por Lou Adler, com a colaboração de vários colaboradores, desde engenheiros de som como Hank Cicalo (engenharia) e Vic Anesini (masterização), instrumentistas como a própria Carole King (voz, piano, teclados, backing vocals), Joni Mitchell (backing vocals), James Taylor (guitarra acústica, backing vocals), Curtis Amy (flauta, saxofone barítono, soprano e tenor, quarteto de violinos), entre outros, que proporcionaram uma sonoridade muito subtil e caraterística dos géneros de cantor-compositor e piano rock uptempo (como “I Feel The Earth Move” e “Beautiful”) e downtempo (como “So Far Away” e “You’ve Got A Friend”), repleta de motifs melódicos, inversões de acordes cativantes e eficazes, formando um conjunto ideal para a voz entoante de King (na minha opinião, as suas capacidades de compositora superam as vocais), fazendo-nos sentir em casa, confortados e nostálgicos.

Fonte: Classic Album Sundays

Liricamente, as faixas foram escritas e co-escritas por King (como “Where You Lead”, composta em conjunto com Tori Stern, autora de “It’s Too Late”), que deambula por vários temas como a perdição e separação amorosa, a pressão do estilo de vida de artista (em “So For Away”, a minha canção favorita do álbum), nostalgia, espiritualidade [em “Way Over Yonder” e “(You Make Me Feel Like) A Natural Woman”] e o consequente orgulho de ultrapassagem dessas adversidades, representativos de uma manifestação total de sensibilidade e inocência na sua entrega, algo que, a par de Joni Mitchell, era inédito por parte de uma artista feminina.

Tapestry não é apenas o auge da mulher na indústria musical, mas é também uma mudança no panorama comercial: permaneceu durante 318 semanas nas tabelas da Billboard (o segundo maior de sempre, depois de Dark Side of the Moon dos Pink Floyd) e valeu-lhe 4 Grammys em 1972, incluindo “Álbum do Ano”, “Canção do Ano” com “You’ve Got A Friend” (tornando-se a primeira artista feminina a ganhar nestas duas categorias), “Melhor Performance Vocal Pop Feminina” e “Disco do Ano” (por “It’s Too Late”), com vendas mundiais estimadas em 25 milhões de cópias, tornando-o num dos álbuns mais vendidos da história (Carole King é também a compositora de maior sucesso, da segunda metade do século XX, nos Estados Unidos, com 118 êxitos escritos e co-escritos, além de 61 êxitos no Reino Unido).

King é uma das minhas compositoras favoritas, desde a adolescência, e recomendo a audição deste álbum para qualquer fã de canções de soft rock, folk, singer-songwriter e de baladas (Link de audição).

Beyoncé — Lemonade

Género(s): R&B, neo soul, soul, art pop

Lista de faixas: Aqui

O segundo álbum, em análise, é intitulado Lemonade da artista afro-americana Beyoncé Knowles, lançado em 2016 pela Parkwood Entertainment (empresa de management e de entretenimento, fundada por Beyoncé em 2010) e, sob licença exclusiva, da Columbia Records.

O seu lançamento foi acompanhado por um filme promocional, de 65 minutos, intitulado Beyoncé: Lemonade na HBO (o álbum e o filme não tiveram qualquer tipo de promoção antes do seu lançamento, uma vez que a artista considerou que as redes sociais se encarregariam disso por ela, feito sem precedentes na indústria).

Com a intenção de expressar, cinematograficamente, o conceito de Lemonade, o filme foi dividido em onze capítulos denominados “Intuition”, “Denial”, “Anger”, “Apathy”, “Emptiness”, “Accountability”, “Reformation”, “Forgiveness”, “Resurrection”, “Hope” e “Redemption” (contendo todas as músicas do álbum), retratando a sua jornada emocional e de autosuperação em torno da infidelidade por parte do marido de Beyoncé, o aclamado rapper e empresário Jay-Z.

Esta traição impulsionou o mote para o título e para o álbum num todo, rodeado pelo ditado muito empregue pela mãe e pela avó de Knowles: “If life gives you lemons, make lemonade” (frase igualmente proferida, no filme, pela avó de Jay-Z), frase que a artista adota como motor para contornar as adversidades que se atravessam no seu caminho.

Em perspetiva, este álbum concetual é pautado de uma forma cíclica. De canção em canção, Knowles aplica mensagens subliminares relativas ao tratamento do homem para com as mulheres negras nos relacionamentos, associando-as a elementos da história e cultura afro-americanas, ao feminismo negro e ao trauma, denotando o seu sentido de responsabilidade como modelo para todas as mulheres do mundo.

O projeto foi idealizado na casa de Knowles (enquanto cuidava da filha mais nova) e nos vários estúdios onde foi produzido/arranjado, como Apex e Mad Decent em Burbank, Califórnia, The Beehive, Conway, Henson e Record Plant em Los Angeles, Califórnia, Jungle City, Nova York, e Larrabee, Mirrorball e Pacifique em North Hollywood, Califórnia.

Contou com a colaboração de diversos produtores e engenheiros, como a própria Beyoncé, Kevin Garrett (produtor em “Pray You Catch Me”), Diplo (produtor em “Hold Up”), Jack White (produtor em “Don’t Hurt Yourself”), James Blake (produtor em “Forward”), Jonny Coffer (produtor em “Freedom”), Stuart White (gravação e engenharia em todas as faixas), Ramon Rivas (engenharia em canções como “Freedom” e “All Night”), Tony Maserati (mistura em “6 Inch”, “Sandcastles” e “All Night”), entre outros; bem como instrumentistas e arranjadores, como Jack White (voz e baixo em “Don’t Hurt Yourself”), The Weeknd (voz em “6 Inch”), James Blake (voz e piano em “Forward” e jupiter bass em “Pray You Catch Me”), Kendrick Lamar (voz em “Freedom”), Mike Dean (programação de bateria e teclados em “Love Drought”), Jon Brion (arranjos de cordas em “Pray You Catch Me”, “Don’t Hurt Yourself” e “All Night”), entre outros.

Todos estes proporcionaram a riqueza instrumental marcada por criatividade artística, tanto pela rigidez como pela expressividade notada na exploração dos géneros rock, blues e hip hop em faixas como “Don’t Hurt Yourself” (que “sampla” a bateria da versão de “When The Levee Breaks” dos Led Zeppelin) e “Freedom”, a sensação angelical e sonhadora da salvação através da exploração de instrumentos de corda; géneros gospel e R&B, em canções como “Pray You Catch Me” (de influência, maioritariamente, reggae), “Sandcastles” (as minhas duas canções favoritas do álbum), “Forward” e “All Night” (influenciada por reggae e com samples, de instrumentos de sopro, de “SpottieOttieDopaliscious” dos Outkast), aspectos característicos de trap rap, como estruturas rimáticas, síntese aditiva com compressão sidechain no baixo/bateria, energia e eletricidade de performance em canções como “Sorry”, “Love Drought” (as que menos gosto) e “Formation” (com inspiração na bounce music de Nova Orleães), sonoridades baseadas em country e zydenco em “Daddy Lessons”, bem como a sensualidade do R&B alternativo em “6 Inch” (sample da versão “Walk On By” de Isaac Hayes).

Fonte: Facebook

Este fator complementa o conteúdo lírico que, como mencionado anteriormente, gira em torno do feminismo e do empoderamento da mulher.

Seguindo essa conduta, Knowles implementa narrativas inspiradas por experiências pessoais e crenças estabelecidas pela sociedade, relativas à:

  • Mulher negra em relacionamentos (em “Pray You Catch Me”) e os seus traumas associados como raiva, ressentimento (em “Hold Up” e “Don’t Hurt Yourself”), descrença (em “Sorry”), desconfiança e insegurança (em “Love Drought”), força e a capacidade de perdoar (em “Daddy Lessons”, onde refere a traição do pai à mãe e os avisos dados por este, relativamente a Jay-Z; em “Sandcastles”, uma analogia entre as ondas que lavam os castelos de areia e as promessas nupciais, testadas pela vida real);
  • Superação de adversidades rumo ao amor-próprio (em “All Night”) e à paz interior (em “Forward”;
  • Empoderamento [em “6 Inch”, referindo-se aos saltos altos como símbolo de poder e de riqueza para a mulher independente), algo que todas merecem alcançar, relacionando estes temas com a história/cultura afro-americana e a valorização das suas raízes e particularidades (em “Don’t Hurt Yourself”, inspirando-se em artistas afro-americanas, como Bessie Smith e Sister Rosetta Tharpe, que “usaram” os seus problemas pessoais para incentivar mulheres negras, bem como via uma referência a uma frase, de Malcolm X, sobre a importância das mulheres negras na sociedade); em “Freedom”, onde aborda a luta afro-americana pela liberdade, aludindo à história da escravatura e ao reconhecimento das vítimas, relembrada pelo movimento Black Lives Matter; e em “Formation”, uma declaração de identidade e de afirmação a mulher negra continuar em frente, aludindo à escravatura e à comida do Sul americana, aspetos muito ligado à essência e às origens de Knowles]

Embora nunca tenha sido um grande fã de Beyoncé a nível musical, considero-a uma grande mulher, artista e exemplo para as gerações futuras e, por isso, recomendo Lemonade a todos os admiradores de R&B, soul, feminismo e álbuns conceptuais dos anos 2010 (Link de audição).

Embate dos Tempos (Tapestry vs. Lemonade)

No final dos anos 60 e início dos anos 70, a igualdade de género encontrava-se em constante desenvolvimento, a partir da segunda vaga do feminismo (o termo é, frequentemente, utilizado como referência para o Women’s Liberation Movement), vaga esta marcada por vários acontecimentos históricos e uma abertura de discussões preponderantes para o progresso da sociedade, como o sufragismo (o direito ao voto foi conseguido pela primeira por uma mulher, em 1971, na Suíça) e a discriminação de género.

Embora essas questões não tenham sido superadas na época, Carole King é um exemplo perfeito na busca de um mundo igualitário. Segundo Robert Christgau, crítico do Village Voice, a sua voz libertou as cantoras, mas creio que fez muito mais do que isso.

Com Tapestry, King permitiu às mulheres testemunharem o sucesso e o reconhecimento de uma delas, fazendo acreditar que, um dia, elas conseguirão alcançar feitos tão ou mais grandiosos, tornando-o, assim, numa obra musical essencial para o conhecimento sociocultural

Muito marcada pela quarta vaga do feminismo, movimentos como o #MeToo sensibilizaram-nos para questões sociais como a rape culture, a agressão sexual, o assédio na rua e no local de trabalho, o body shaming e a influência das redes sociais nestas matérias, algo que afeta as mulheres, tanto no mundo dos negócios como no mundo pessoal e artístico, temas esses que Beyoncé sempre se mostrou consciente, e Lemonade é um exemplo claro desta luta pelo respeito e igualdade.

Citando a jornalista da Billboard, Miriam Bale, Lemonade é “uma obra revolucionária do feminismo negro” e “feita por uma mulher negra, protagonizada por mulheres negras e para mulheres negras”, fazendo com que cada uma se sinta capaz de levar a cabo o seu próprio processo de “auto-conhecimento e cura”, pois todas são dignas de se encontrarem, todas contam e são merecedoras de sucesso e dignidade, independentemente do seu género, raça ou riqueza.

Tanto Tapestry como Lemonade representam um marco significativo para a mulher na indústria musical, uma em termos comerciais e de composição, e a outra em termos de identidade e de empoderamento direcionado ao feminismo.

Estas obras transcendem a arte pela sua capacidade de demonstrar o valor da mulher na sociedade. Com trabalho, esforço e dedicação, todos nós somos dignos de atingir o sucesso e a felicidade, independentemente do nosso género e, para mim, esse é um ideal essencial como ser humano.

“Culture does not make people. People make culture. If it is true that the full humanity of women is not our culture, then we can and must make it our culture.” — Chimimanda Adichie

Obrigado a todos os que leram o artigo, sejam livres de o partilhar e deixem um comentário para saber o que vocês acharam, isto se estiverem para aí virados! ;-)

“As Anonymous As It Sounds” — Be Free to Your Own Interpretation

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Hi!! My name’s Miguel and I’m a music and culture writer, producer and multi-instrumentalist from Lisbon, Portugal. I hope that my writing will keep you busy :)

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