Crítica Musical: Sons do Passado, Sociedade do Futuro

Comunidade LGBTQIA+— Transformer vs. Dirty Computer

MikeSemantics
Emotions in Motion
11 min readNov 22, 2023

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Fonte(s): Audio TeamWikipedia | Transformer vs. Dirty Computer

Para me seguirem nas redes sociais e ouvir o meu EP “Anonymous Semantics”, cliquem no link aqui.

Para mim, o elemento mais significativo da música é o poder que tem para nos ajudar a conhecermo-nos cada vez melhor. Ao dissecar e extrair a nossa identidade, tanto a nível ideológico como sexual e emocional, esta consciencializa-nos acerca dos nossos pensamentos, sentimentos e reacções face à vida quotidiana e, na minha opinião, não há outra área (a par da moda) que evidencie uma maior aceitação da comunidade LGBTQIA+.

Desde os primórdios da revolução sexual, dos anos 60, até aos dias de hoje, a música tem demonstrado ter um papel ativo e de sensibilização da sociedade em geral, ajudando na aprendizagem de respeito pelo próximo.

Desde então, a essência desta comunidade é cada vez mais catalisadora por géneros musicais, como disco, glam rock, new wave e queer core, bem como por artistas como Elton John, David Bowie, Wham!, Culture Club, Pet Shop Boys, entre outros, que permitiram um “diálogo” entre gerações e mentalidades, tecendo pensamentos como a frustração pela sua marginalização e pela esperança de aceitação e compreensão.

Pondo isto, os dois álbuns, em análise, são exemplos de todos estes elementos que associamos à comunidade LGBTQIA+.

Lou Reed — Transformer

Género(s): glam rock

Lista de faixas: Aqui

O primeiro álbum, em análise, é intitulado Transformer do artista americano Lou Reed, lançado em 1972 pela RCA Records.

Desde a sua juventude nos The Velvet Underground (um dos meus grupos preferidos dos anos 60 e pioneiros no avant-garde, proto-punk e art rock), marcado por lirismo decadente, visão niilista e depreciativa da sociedade, Lou Reed já tinha assegurado o seu lugar na história da música.

No entanto, Reed não se contentou e procurou uma vertente diferente na sua carreira a solo.

Fonte: Pinterest | Alter-Ego de Lou Reed — The Phantom of Rock

Não tendo tido muito sucesso, com o seu álbum de estreia, e procurando ser polémico como nunca, Reed adotou uma posição mais mainstream que os trabalhos anteriores, procurando uma mudança no seu visual (sugerida por Angie Bowie, que o convenceu a vestir-se de forma mais exótica, adotando uma persona enigmática de olhos pintados de preto, chamada The Phantom of Rock) e explorar temas biográficos e característicos do início da década de 1970.

Com este objetivo, pediu ao seu amigo David Bowie para colaborar no processo criativo, promocional e de produção musical do projeto. Bowie trouxe o seu guitarrista Mick Ronson, dos The Spiders from Mars (banda que colaborou com Bowie entre 1971 e 1974), para o processo de produção e arranjo instrumental, fornecendo uma maior visão sónica ao resultado.

Em termos de produção (sob a supervisão de Reed), Bowie e Ronson (principais músicos de sessão e responsáveis pelos arranjos de todo o álbum) realizaram a gravação no Trident Studios, em Londres, Inglaterra, com a participação de vários instrumentistas, como o próprio Lou Reed (voz principal e guitarra rítmica), David Bowie (backing vocals, teclados; guitarra acústica em “Walk on the Wild Side” e Wagon Wheel”), Mick Ronson (guitarra solo, piano, flauta e arranjo de cordas), Herbie Flowers (guitarra baixo, contrabaixo; tuba em “Make Up” e “Goodnight Ladies”), John Halsey (bateria), entre outros.

Todos estes participantes contribuíram para um som mais comercial e basilar de sequências de acordes, caracterizando impecavelmente o género glam rock (embora não considere que seja o melhor trabalho neste género).

Dos pormenores mais notórios que contém são em faixas, como “Perfect Day” ou “Satellite of Love”, onde se destaca a contribuição de Ronson para que o arranjo, mais acentuado nas cordas, prevaleça sobre a voz de Reed.

Embora aprecie a produção, o letrismo de Reed ao longo do álbum é, para mim, o seu melhor trabalho a solo e o que deve ser tido em conta realmente.

Ao entrelaçar temas diversos, como a identidade sexual e a irreverência (em “Vicious”, inspirada em Andy Warhol, que lhe deu a ideia durante uma conversa entre ambos: “Oh, you know vicious like, I hit you with a flower”), caráter biográfico via criatividade no jogo de palavras (em “Andy’s Chest”, dedicada a Warhol, referindo-se à cicatriz no seu peito após ter sido baleado por Valerie Solanas, sua ex-funcionária no estúdio The Factory; em “Hangin’ Round”, influenciado pelo seu apreço por cowboys e afirmação artística na era pós-Velvet; e em “New York Telephone Conversation”, onde se evidencia o distanciamento da persona glam rock nos tempos de Warhol, como diretor dos Velvet, para uma maturidade narrativa a solo), abordagem metafórica entre perdição amorosa, depressão e toxicodependência (em “Perfect Day”, a minha canção favorita, que se diz ter sido inspirada tanto pelo seu primeiro amor, Shelley Albin, pelo efeito manipulador e mentalmente perverso desta sobre Reed, e pela sua dependência de heroína, apontando-a como crucial e estabilizadora na sua vida: “Oh such a perfect day/You just keep me hanging on”; em “Wagon Wheel” e “Goodnight Ladies”), e a crítica à ostentação e cobiça capitalista (em “Satellite of Love”, um dos meus temas preferidos, concebido nos tempos dos Velvet Underground, com uma versão mais acelerada do que a balada irónica mais downtempo do álbum), demonstram toda a exploração narrativa, mundana e crua, que tanto procura transmitir.

No entanto, as três canções que retratam, de forma mais notória e descritiva, a sua tomada de posição em relação à comunidade LGBTQIA+ (Reed era, alegadamente, bissexual, mas nunca foi confirmado pelo artista) são “I’m So Free”, em que retrata a vida nova-iorquina marcada pela identidade de género, androginia, prostituição e da cultura LGBT (“Then we went down to Times/And ever since I’ve been hanging around there”; “Make Up”, em que procura sensibilizar a sociedade para o estilo de vida LGBTQIA+ da época, descrevendo uma relação homossexual com uma drag queen, desde o momento em que esta acorda (“And then when you open your eyes”) até ao momento em que se transforma (“You’re a slick little girl”); e “Walk on the Wild Side”, que é, sem dúvida, a canção mais conhecida e apreciada de Reed. Nesta canção, Reed presta homenagem aos amigos e superstars da Factory de Warhol (“I thought it would be fun to introduce people you see at parties but don’t dare approach”), abordando vários elementos da cena underground nova-iorquina, como as drogas (“Jackie is just speeding away/Thought she was James Dean for a day”), o cross-dressing, a transsexualidade (“Shaved her legs and then he was a she”), a prostituição (“In the bathroom, she was everybody’s darling”) e o sexo oral (“But she never lost her head”/Even when she was giving head”), pretendendo transmitir-nos a realidade desta comunidade, tantas vezes discriminada, marginalizada e ostracizada.

“Walk on the Wild Side” é a derradeira ode à comunidade LGBTQIA+ e, a sua influência, tal como Transformer, perdura até aos dias de hoje como uma das derradeiras obras musicais relacionadas com a comunidade LGBTQIA+.

Por isso, recomendo este álbum a qualquer pessoa interessada em glam rock, cultura DIY, escrita de canções e na perspetiva do artista sobre a comunidade LGBTQIA+ (Link de audição).

Janelle Monáe — Dirty Computer

Género(s): Pop, funk, hip hop, R&B, neo soul

Lista de faixas: Aqui

O segundo álbum, em análise, intitula-se Dirty Computer, o terceiro álbum de estúdio da artista afro-americana Janelle Monáe, lançado em 2018 pela Wondaland Arts Society, Bad Boy Records e Atlantic Records.

O seu lançamento foi acompanhado por um Emotion Picture[segundo Monáe, num formato narrativo-filme com 46 minutos de duração; ao falar do seu trailer, a artista disse que o objetivo era “acompanhar [o] álbum musical” (retratado a partir da personagem andróide de Janelle Monáe, Jane 57821, que é, na sua essência, um computador humano)], proporcionando uma visão mais cinematográfica e concetual.

Desde o início da sua carreira, Monáe sempre demonstrou o seu carácter interventivo e social sobre diversos temas, como os direitos LGBTQIA+ e o feminismo, temáticas essas abordadas ao longo de todo o projeto e, primordialmente, o seu título.

A partir de uma analogia entre o papel do ser humano e o seu auto-julgamento na sociedade, os dispositivos de alta tecnologia e a sua consequente revolução (neste caso, computadores), Monáe dirige-se a todos aqueles que são tratados ou vistos como “dirty computers (“We come from dirt and when we transition out we go back to dirt”), salientando ser crucial haver uma discussão “como sociedade, como seres humanos, sobre o que significa dizer a alguém que a sua existência, sejam estes queer, minorias, mulheres, pobres, faz com que tenhas bugs e vírus”.

Esta erradicação reflexiva permitirá recusar as opiniões alheias, possibilitando ser fiel a si mesmo, já que existe algo que a revolução digital não pode oferecer, que é a singularidade e a introspeção.

O álbum foi gravado e desenvolvido concetualmente, entre 2015 e 2018, em vários estúdios como Wondaland Studios e Stankonia em Atlanta, Georgia, Chalice Studios e Atlantic Records em Nova Iorque, NY, e Shawty Ra em Los Angeles, California.

Contou com a colaboração de inúmeros produtores, como a própria Janelle Monáe (coprodutora em faixas como “Dirty Computer” e “Americans”, produção e gravação das vozes), Nate Wonder (produtor, coprodutor em “Django Jane”, gravação e produção das vozes), Mattman e Robin (produtores em “Make Me Feel”), Chuck Lightning (coprodutor em faixas como “Crazy, Classic, Life” e “Americans”, produtor adicional em “I Got the Juice”), entre outros; e instrumentistas/arranjadores como Janelle Monáe (“leading vocals”, “backing vocals” em “Django Jane” e arranjo musical em “So Afraid”), Pharrell Williams (“lead vocals” em “I Got the Juice”), Brian Wilson (“background vocals” em “Dirty Computer” e “Take a Byte”), Nate Wonder (arranjo, entre outras funções).

Estas colaborações proporcionaram uma exploração sónica de vários géneros musicais, como a pop, o funk, o hip hop, o R&B e o neo soul, incorporando elementos de vários outros como o electropop, o futurepop, o pop rock (como em “Pynk”, inspirada liricamente e concetualmente na canção “Pink” dos Aerosmith), minneapolis soul (notoriamente popularizada pelo nativo de Minneapolis e ícone musical Prince, uma das maiores inspirações e mentores de Monáe), trap, new wave, synthpop e música latina.

O processo, sintetizado e harmonicamente orientado, foi desenvolvido com o contributo de Prince (até à sua morte, em abril de 2016; colaborou, sobretudo, com Monáe em “Make Me Feel”, que alude sonicamente à canção “Kiss”, e homenageia Michael Jackson no refrão) e Stevie Wonder (como em “Stevie’s Dream”, inspirada por conversas com o músico), tendo sido posteriormente continuado por Monáe, com vista a um conceito sonoro específico, dividido em três categorias: Reckoning (a perceção que Monáe tem da perceção que a sociedade tem dela), Affirmation (aceitação pela artista das visões e críticas apontadas pela sociedade) e Reclamation (redefinição e esperança de mudança da identidade americana).

Seguindo a premissa da repartição sónica, esta também é aplicada, liricamente, com a colaboração de vários co-escritores como Nathaniel Irvin III, Charles Webb II, entre outros.

Fonte: DJROBBLOG

Aqui, está presente todo o ímpeto artístico de Dirty Computer que, segundo Monáe, é uma “homenagem às mulheres e ao espetro das identidades sexuais”.

Debruçando-se sobre várias temáticas, Monáe “despe-se”, introspetivamente, expondo uma vulnerabilidade que tanto se esforçou por revelar, como:

  • Ligação da humanidade a máquinas tecnológicas [em “Dirty Computer”, em que se refere ao dito vírus enraizado em cada um de nós, a necessitar de ser decomposto; e “Take a Byte”, em que é elaborada por meio de uma comparação, através de um jogo de palavras, entre o fruto proibido da história de Adão e Eva, e a gíria informática (palavras relacionadas com computadores e tópicos associados), ou seja, a fusão de características humanas, com o ímpeto mais sintético e informatizado];
  • Liberdade de expressão sociocultural (em “Crazy, Classic, Life”, em que Monáe tece o seu desejo de viver num mundo em que seja aceite por ser quem é, como todos os outros que se sentem oprimidos por este);
  • Feminismo e empoderamento feminino (em faixas como “Take a Byte”, que, a partir da sua personagem andróide Jane 57821, faz referência à influência de figuras feministas no seu processo criativo, como a Rainha de Sabá, Eva, do Livro do Génesis, entre outras; “Django Jane”, em que enaltece a sua garra, enquanto mulher afro-americana, e tudo o que ultrapassou até então, apoiando todos os que se sentem oprimidos pelo seu género e raça; “Pynk”, em que aponta o orgulho na sua identidade feminina, correlacionando-a com um estereótipo típico da cultura ocidental, que associa o rapaz ao azul, e a rapariga ao cor-de-rosa);
  • Religião (em “Stevie’s Dream”, no qual refere que todas as religiões devem ser integradas com afeto);
  • Situação sociocultural americana (em “Jane’s Dream”, em que, a sua personagem andróide Jane 57821, anseia por uma nova direção para o futuro da América; “Screwed”, que aplica uma analogia entre a identidade sexual e o estado da América; “I Got the Juice”, inspirada no filme “Juice” e no último andar do Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana, referindo-se ao poder e à justiça; e “Americans”, a última faixa do álbum, que, segundo a artista, se trata de uma ode aos hábitos racistas e às questões sociais da América, que tanto anseia por mudar, como a brutalidade policial, o sexismo, a xenofobia, a homofobia, a imigração, entre outras).

No entanto, não há outro tópico social (para além do feminismo, que, na minha opinião, é o central) que Monáe exponha tanto como a sua posição acerca da comunidade LGBTQIA+, uma vez que ela própria se identifica com a mesma, sendo ela uma “mulher queer” panssexual.

A cantora retrata essas turbulências dentro de si, em canções como “Make Me Feel” (expondo questões tanto para um companheiro como para si própria, relativamente à sua sexualidade), “I Like That” e “Don’t Judge Me” (referindo-se ao não reconhecimento atribuído aos rumores em torno da sua sexualidade, adjectivando-se como uma “free-ass motherfucker”, e apelando ao amor-próprio por parte de todos os que sentem o mesmo), “So Afraid” (onde reflete sobre as suas falhas enquanto ser humano, representativas desses “bugs” e “vírus”, medos e ansiedades esporádicas que sente, relativamente à sua orientação sexual), suscitando uma expressividade total num tom de esperança e de exemplo para a comunidade.

Posto isto, recomendo este álbum a todos os apreciadores de pop, R&B atual e ciências sociais. Certamente não ficarão desiludidos (Link de audição).

Embate dos Tempos (Transformer vs. Dirty Computer)

Com Transformer, Lou Reed oferece uma abordagem pessoal e uma voz representativa da comunidade LGBTQIA+ de Nova Iorque, fazendo deste um dos seus projectos musicais mais importantes.

Numa época dos anos 70, marcada por várias revoluções sexuais, como o Women’s Liberation Movement e os Stonewall Riots em Nova Iorque (que possibilitaram a primeira parada do orgulho gay, em 1970), Reed foi um dos precursores desta discussão e da abertura aos olhos da sociedade.

No entanto, este preconceito ainda se mantém nos dias de hoje, tanto a nível social, empresarial e constitucional.

Atualmente, isso é corroborado por trabalhos como Dirty Computer, em que Monáe se mostra uma artista que busca, a partir da sua experiência pessoal, desconstruir uma perceção generalizada e desafiar o estigma da sociedade, tornando-a um dos maiores ícones da nossa geração para a comunidade LGBTQIA+.

Com desafios distintos dos anos 70, felizmente existe mais formas de se exporem, tanto na área da cultura como pelo uso da alta tecnologia. Uma maior aceitação e exigência, por parte das faixas etárias mais jovens, tem sido demonstrada por movimentos como o Pride, bem como a exposição mediática e audiovisual através de reality shows, documentários, redes sociais, entre outros, dando o exemplo para que as gerações futuras se afastem do ódio e do preconceito, e abracem a empatia e a tolerância.

Todos merecemos ser tratados com dignidade e respeito, independentemente da nossa orientação sexual. Quando estas mentalidades forem erradicadas, teremos a oportunidade de evoluir ainda mais como sociedade.

“No child is born homophobic. Teach acceptance, not ignorance”.

Obrigado a todos os que leram o artigo, sejam livres de o partilhar e deixem um comentário para saber o que vocês acharam, isto se estiverem para aí virados! ;-)

“As Anonymous As It Sounds” — Be Free to Your Own Interpretation

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MikeSemantics
Emotions in Motion

Hi!! My name’s Miguel and I’m a music and culture writer, producer and multi-instrumentalist from Lisbon, Portugal. I hope that my writing will keep you busy :)