Crítica Musical: Sons do Passado, Sociedade do Futuro

Identidade e Irreverência — Low vs. Blonde

MikeSemantics
Emotions in Motion
10 min readNov 22, 2023

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Fonte: WikipediaKJ Archives | Low vs. Blonde

Para me seguirem nas redes sociais e ouvirem o meu EP, “Anonymous Semantics”, cliquem no link aqui

De acordo com a definição, identidade artística é “quando um artista se mantém fiel à autenticidade da sua própria vida e experiência, criando arte a partir de uma interpretação pessoal da área, do tema, da cultura, do próprio passado e do presente do artista, trazendo a autenticidade da sua própria vida e experiência para a sua criação”.

Na minha opinião, qualquer artista que se queira afirmar na indústria, tem, mais cedo ou mais tarde, de se expor cada vez mais, demonstrando a sua pureza e vulnerabilidade.
O sucesso é mais facilmente alcançável através da vulnerabilidade, quer seja na sua comunidade musical como na sua longevidade no ramo, pelo que, nesta vertente, os dois álbuns em evidência caracterizam exatamente isso.

David Bowie — Low

Género(s): art rock, avant-pop, avant-rock, experimental, electronic, ambient

Lista de faixas: Aqui

Para mim, ninguém foi capaz de demonstrar a sua irreverência, de forma tão genial e criativa, como o grande David Robert Jones, mais conhecido por David Bowie, um dos meus grandes ídolos e inspirações desde que entrou na minha vida aos 13 anos, influência essa que perdura até aos dias de hoje.

Dito isto, o primeiro álbum, em análise, intitula-se Low e foi lançado em 1977 pela RCA Records.

Fonte: Pinterest | David Bowie em Berlim Ocidental

Low é o primeiro de três álbuns da sua trilogia, conhecida como “Trilogia de Berlim”, e foi gravado (maioritariamente) e desenvolvido conceptualmente na capital alemã, onde o artista viveu entre 1976 e 1979.

Esta mudança, pelo mais conhecido “camaleão do rock”, deveu-se a três razões:

  • O desejo de mudança artística e de amadurecimento pessoal, consequente à pressão do legado que deixou através de alter-egos, como Ziggy Stardust (entre 1971 e 1974) e The Thin White Duke (entre 1975 e 1977), manifestando sinais de cansaço mental
  • Fuga a uma vida marcada por toxicopedendência, em cocaína, durante os dois anos vividos em Los Angeles, período esse que tanto o atormentou (“That was my first attempt to kick cocaine, so that was an awful lot of pain. And I moved to Berlin to do it”);
  • Interesse artístico por Krautrock (também conhecido como Kosmische Musik), um movimento musical surgido na Alemanha Ocidental, no final dos anos 60 e início dos anos 70, popularizado por grupos como Kraftwerk, Neu!, entre outros

Todas estas razões, levadas ao som e à mensagem intrínseca de Low, são encetadas pela música instrumental “Speed of Life”, onde o artista nos desafia a entrar nesta viagem musical, não estando necessariamente interessado no facto de a seguirmos ou não.

Inicialmente, o álbum deveria ter sido utilizado como banda sonora para o filme, protagonizado por Bowie, The Man Who Fell to Earth (1976) (curiosamente, a capa do álbum é retirada de uma cena do filme); no entanto, o artista ficou intrigado com o processo criativo conduzido, e foi à procura de novas linguagens musicais, nunca antes exploradas pelo próprio, sendo estas a música eletrónica e música ambiente.

Desejoso por criar algo nesta conduta musical, mas não sabendo como, solicitou a Brian Eno (pelo fascínio no seu trabalho pioneiro, na música ambiente, como “Another Green World” e “Discreet Music”, que recomendo, fortemente, a qualquer fã do género) que se deslocasse a Berlim para o ensinar e colaborar no processo de captação de sons específicos, técnicas de manipulação sonora e de envolvência pretendidas por Bowie na altura (este contributo é mais notório na última secção, entre “Warszawa” e “Subterraneans”).

Em termos de produção, Bowie e o seu produtor Tony Visconti foram os principais impulsionadores deste processo (realizado nos estúdios Château d’Hérouville, em Hérouville, França, e no Hansa Studio by the Wall, em Berlim Ocidental, Alemanha).

A produção do álbum foi marcada, pela contribuição de Visconti, a partir de vários processos de gravação, de instrumentação e de ideias criativas em estúdio. Contudo, nenhuma supera o uso do Eventide H910 Harmonizer, lançado em 1975 (um aparelho usado, principalmente, na rádio e televisão da época, que permitia a alteração de tonalidade, abrandamento e aceleração da velocidade do som original). Através da sua utilização (segundo Visconti, o Harmonizerfucked with the fabric of time”), e sobretudo na bateria (especialmente na tarola), o instrumento sofria uma alteração de tom e provocava um consequente feedback, permitindo baixar a tonalidade que, segundo Visconti, parecia não ter fim.

O projeto contou com colaborações de vários instrumentistas, como o próprio David Bowie (saxofonista, em faixas como “Subterraneans”), Iggy Pop (backing vocals em “What in the World), Brian Eno (teclista em faixas como “Warszawa”, utilizando instrumentos como o sintetizador EMS AKS, Minimoog, etc.), Carlos Alomar (guitarrista principal em faixas como “Breaking Glass”; guitarrista rítmico em canções como “Be My Wife”), Dennis Davis (percussão em canções como “Sound and Vision”), entre outros.

O resultado sónico desta obra, altamente “industrializada” e “mecânica”, tem vindo a ser muito influente desde o seu lançamento, servindo como uma fonte de inspiração para o surgimento de géneros, como a new wave, o post-punk, o post-rock, entre outros, bem como para inúmeros grupos e artistas que se seguiram, como os Joy Division e os The Cure.

Fonte: CivilianGlobal | Bowie com a sua mulher Angie

O álbum é dividido em duas secções:

  • Parte 1, um carácter autobiográfico (onde o ímpeto lírico é notório) que demonstra o estado depressivo e intolerável, do seu próprio ser, na tentativa de cooperar com as suas próprias emoções e turbulências (em canções como “Breaking Glass” e “What in the World”), o afastamento dos anos sombrios de vício nos Estados Unidos (em “Sound and Vision”), a tristeza derivada de erros cometidos durante o seu percurso, tanto a nível pessoal como no casamento com Angie Bowie, que nunca se conformou com o seu estilo de vida e carreira musical (em “Always Crashing in the Same Car” e “Be My Wife”);
  • Parte 2, o teor sensorial da música (maioritariamente instrumental), relacionado com a sua experiência em Berlim Ocidental (situada na Alemanha Ocidental, na altura), a sensação ao visitar Varsóvia e sentir a sua decadência, evocada por uma peça inspirada em coro polaco Śląsk (em “Warzsawa”), a sonoridade recessiva e saudosista para exprimir o declínio da arte em Berlim Ocidental (em “Art Decade”, que codificado significa “arte decadente”), a desgraça associada ao muro (em “Weeping Wall”), até às memórias de pessoas arrebatadas, no período de separação, em Berlim Oriental (em “Subterraneans”).

Como tal, recomendo, a sua audição, a qualquer fã de música ambiente, krautrock, rock, álbuns conceptuais e pintura (Link de audição).

Frank Ocean — Blonde

Género(s): R&B, avant-garde soul, psychedelic pop

Lista de faixas: Aqui

O segundo álbum, em análise, é intitulado Blonde (igualmente chamado Blond) do artista afro-americano Frank Ocean, lançado em 2016 pela Blonded (programa de rádio e discográfica Beats 1, liderada por Ocean).

O álbum foi editado em duas versões distintas: a versão física por revistas (como a Boys Don’t Cry, a fanzine de Ocean) distribuídas em lojas pop-up pelos Estados Unidos; e a versão digital no iTunes (a versão em análise).

Neste projeto, Ocean expõe toda a sua vulnerabilidade a partir de episódios verídicos e referências à cultura pop, abordando várias temáticas como o amor, os relacionamentos, as suas repercussões e aprendizagens posteriores, a autoestima/ódio, a toxicodependência, a mortalidade/imortalidade, a saúde mental e a depressão, criando uma obra profundamente pessoal, que, por uma razão ou por outra, nos faz sentir o que ele vivenciou, tal é a genuinidade da mesma.

Quanto à produção e instrumentação, o projeto foi iniciado, em Nova Iorque, nos Electric Lady Studios (em 2013, mas foi interrompido após um bloqueio criativo), e mais tarde nos Abbey Road Studios, em Londres, e nos Henson Recording Studios, em Los Angeles.

O disco contou com a colaboração de diversos produtores, arranjadores, engenheiros de som e mixers, como o próprio Frank Ocean, Om’Mas Keith (produção em músicas como “White Ferrari”, e arranjo em faixas como “Pretty Sweet”), James Blake (produção em músicas como “Solo”, e arranjo em faixas como “Godspeed”), Jonny Greenwood (arranjo de cordas em “Seigfried”), entre outros; e instrumentistas, como Beyoncé (vocals adicionais em “Pink + White”), Pharrell Williams (teclados, baixo e programação de bateria em “Pink + White”), Mars 1500 (teclados em “Solo” e “Godspeed”), Fish (guitarras em “Ivy”), London Symphony Orchestra (secção de cordas em “Seigfried”), entre outros.

Desde a incrementação de várias secções de cordas, como violinos (como em “Pretty Sweet”) e violoncelos (como em “Self Control”), teclados minimalistas (em várias faixas, como “Skyline To” e “Seigfried”), harmonias vocais intimistas (devido à influência de Brian Wilson), cadências plagais (“Godspeed”), sampling (em “Close To You”, usando um áudio de Stevie Wonder), interpolação (em “White Ferrari”, pela extração, da melodia e do verso “Making each day of the year”, da canção “Here, There and Everywhere” dos Beatles), e instrumentos que evidenciam a sonoridade barroca, psicadélica e vanguardista dos anos 60 e 70 (influenciada por vários artistas deste período, como The Beatles, The Beach Boys e Stevie Wonder), como o mellotron e o Moog, percebemos o propósito e desafios de exploração sónica por Ocean (dada a pouca presença de percussão que é, geralmente, o instrumento central no R&B/Hip Hop, distanciando-o da sua convencionalidade) e, por isso, posso admitir que se trata de um álbum diferenciado nos tempos atuais.

Nesta perspetiva, Blonde é uma declaração a nível criativo e introspetivo, caracterizada pela pouca convencionalidade, neste registo, quer na composição instrumental, quer a nível lírico concetual, fatores imediatamente evidenciados no título e a capa do álbum.

O feedback ao título na capa, escrito em francês (“Blond”), resultou numa grande intriga por parte de vários fãs, tendo levado a uma série de interpretações (embora nunca validadas por Ocean): a representação da sua bissexualidade, sendo que “blond” corresponde a vertente masculina, e “blonde” a feminina; a reflexão sobre os seus anos de juventude, ilustrados na cor loira do cabelo, que posteriormente escurece, de uma criança (notório em “Pink + White” e “Ivy”); e a associação entre se ser loiro (tendo em conta as expressões populares: de alguém que é loiro ser, irracionalmente, visto como menos inteligente e alienado) com temáticas do projeto, como a imortalidade e a despreocupação juvenil (notório em “Futura Free”).

Neste sentido, Ocean dá-nos o mote para os elementos pessoais e narrativos, de todo o álbum, por várias questões que o inquietam, dando-nos um vislumbre do seu mundo e, como ouvintes, não podemos dizer que não tenhamos sido entretidos:

  • Materialismo hedonista e egocentrismo [em “Nikes”, associado aos ténis da Nike (fazendo referência a membros de um culto, dos anos 90, chamado “Heaven’s Gate”, que se suicidiram enquanto usavam modelos “Decade” da Nike)];
  • Solidão [em “Solo”, uma faixa pessoal e amorosa sobre a natureza, e “Solo (Reprise)”, associada à solidão sentida na indústria musical];
  • Sexo e fama (em “Futura Free”);
  • Revolução digital e o seu efeito nas relações interpessoais (em “Facebook Story”);
  • Relações fracassadas causadas pela inexperiência e inocência da juventude, levando-o à angústia e consequente aprendizagem da sua identidade e sexualidade (em temas como “Ivy”, “Self Control” e “White Ferrari”);
  • Analogias [em “Seigfried”, em que o artista compara um antigo companheiro a Seigfried (figura da mitologia nórdica), pelas suas semelhanças de fisionomia elegante e dos cabelos longos e esvoaçantes];
  • Crenças religiosas e espiritualidade (em “Godspeed”, em que deseja boa sorte e felicidade a um antigo companheiro no início de uma nova jornada amorosa);
  • O impacto das drogas em pensamentos negativos (em “Nights”, que, para mim, é a melhor música do álbum; é dividida em duas secções por um silêncio, que assinala a metade da duração do álbum de uma forma de mutação da música concetual: a primeira é acompanhada por guitarras eléctricas dinâmicas, num registo agressivo e exuberante, enquanto a segunda é lenta e reflexiva, manifestando a desmotivação e o choque, derivada de uma euforia narcótica)

Assim sendo, recomendo este álbum a todos os fãs de R&B, pop psicadélico e álbuns conceptuais (Link de audição).

Embate dos Tempos (Low vs. Blonde)

Por todas estas razões e muito mais, Low encarna, o que podemos considerar, o auge da irreverência artística e identidade musical (na minha opinião, Bowie já tinha isto, mais do que assegurado, antes deste álbum).

Não só pelas suas personas e pela sua atitude, mas também pela forma como respeita a arte no seu todo, até hoje ninguém conseguiu igualar este mestre nesta dimensão, o que, na minha opinião, faz dele o artista mais original e arrojado de sempre.

Quanto a Ocean, revela aquilo que qualquer artista quer alcançar, a sinceridade total para consigo mesmo e para com os seus ouvintes. Blonde é a sua chamada de atenção para a autenticidade, colocando-o como uma das obras mais marcantes da minha geração (pessoalmente, um dos meus álbuns favoritos de R&B).

Ao comparar estas épocas e gerações, penso que uma caraterística está assegurada: o desejo de inovação por parte do artista.

Embora, a década de 1970, tenha sido uma época de descobertas e de intrigas tecnológicas, isso não invalida que o artista não se desafie cada vez mais, sobretudo com os recursos tecnológicos à sua disposição. Atualmente, o artista tem um leque mais alargado de ferramentas para procurar o seu caminho criativo e, através de exemplos como o de Frank Ocean, percebemos que o céu é o limite.

Todos devemos tentar explorar a nossa criatividade, conjugando o melhor dos dois mundos, nomeadamente o conhecimento e a investigação do passado, com os recursos tecnológicos e a acessibilidade à informação dos nossos dias.

“I think all my art is based on living, not on doing art; in experiencing life in many, many different aspects” — David Bowie

Obrigado a todos os que leram o artigo, sejam livres de o partilhar e deixem um comentário para saber o que vocês acharam, isto se estiverem para aí virados! ;-)

“As Anonymous As It Sounds” — Be Free to Your Own Interpretation

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MikeSemantics
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Hi!! My name’s Miguel and I’m a music and culture writer, producer and multi-instrumentalist from Lisbon, Portugal. I hope that my writing will keep you busy :)