Ajuste fiscal: por que este assunto também deve nos interessar?

Convidei o professor adjunto da Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF) Victor Leonardo Araújo para explicar o impacto do ajuste fiscal para os LGBTs. Ele nos presenteou com este artigo! Confira:

Danilo Motta
Empoderamento LGBT
6 min readSep 3, 2016

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Acampamento de estudantes em junho de 2015 em frente ao Ministério da Fazenda (José Cruz / Agência Brasil)

A totalidade do gasto do governo (quanto gastar) e a sua composição (como gastar) são decisões eminentemente políticas. O bolo orçamentário é objeto de intensas disputas políticas cuja arbitragem não é um exercício trivial. A acomodação dessas tensões, contudo, torna-se mais fácil sob contexto de expansão econômica: quando crescem a produção e a renda, a arrecadação tributária também cresce, de modo que, embora a distribuição dos benefícios das políticas públicas não seja homogênea, é possível atender a uma quantidade maior de demandas pelos recursos públicos. Sob recessão, quando a arrecadação tributária cai, as tensões tornam-se menos latentes, e quem detiver maior poder político terá mais condições de ter suas demandas por recursos públicos atendidas.

É neste contexto que devem ser entendidas as recentes políticas destinadas a atender às pautas de direitos humanos. Embora seja discutível a velocidade com que ocorreram, é inegável que nos últimos anos houve avanço dessas pautas nas três esferas de governo, e não é à toa que atualmente temos assistido a uma forte reação conservadora. O avanço dessas pautas não se faz sem a formulação de políticas públicas para a sustentação de programas que requerem o financiamento público. Como exemplo específico para a comunidade LGBT é possível citar: o fornecimento gratuito pelo Sistema Único de Saúde (SUS) de medicamentos para os pacientes portadores de HIV; a realização, também pelo SUS, de cirurgias de re-designação sexual, que incluem uma longa rotina de acompanhamento médico que envolve várias especialidades; o treinamento de policiais militares de alguns estados para que possam atender aos LGBT que são vítimas dos crimes de ódio; os programas existentes de capacitação profissional para integrar travestis e transexuais à sociedade, afastando-as da prostituição e de outras atividades de maior vulnerabilidade social; as políticas de combate à LGBTfobia e de incentivo à cidadania, etc. A execução de todas essas políticas públicas requer um custo: alguns governos criaram secretarias específicas para as políticas voltadas para os LGBTs; em outros as políticas para os LGBTs são distribuídas entre várias secretarias e órgãos de governo. Como quer que seja feita, os governos que o fazem designam um quadro funcional e burocrático para desenhar, executar e acompanhar a eficácia dos programas desenvolvidos com esta finalidade, e a desejável expansão dessas políticas requer a ampliação da fatia orçamentária destinada a eles.

Por estarem inseridas nos marcos das políticas de direitos humanos, essas pautas por si já são difíceis o bastante de se transformarem em políticas públicas, em razão da lenta velocidade com a qual a sociedade brasileira tem avançado no sentido de incorporá-las. Não é preciso dizer que o número de prefeituras e governos estaduais que elaboram políticas específicas para a comunidade LGBT é pequeno. Os governos que o fazem, contudo, enfrentam um duro embate político travado para definir a composição do orçamento.

A acomodação de parte dessas demandas, ainda que de forma modesta, somente ocorreu mediante o crescimento da arrecadação fiscal no bojo da expansão econômica. Para se ter uma ideia, somente a arrecadação de tributos federais cresceu em média 5,6% ao ano durante o primeiro governo Lula (2003–2006) e 8,8% ao ano no seu segundo mandato (2007–2010), já descontada a inflação. Já no governo Dilma (2011–2015), a arrecadação de impostos federais decresceu 0,3% ao ano. Sob o contexto econômico atual de recessão e queda da arrecadação tributária, as políticas destinadas ao atendimento das pautas de direitos humanos, particularmente as LGBT, correm o risco de serem as primeiras a serem sacrificadas pelas políticas de “ajuste” fiscal.

Por isso, todas as lutadoras e todos os lutadores sociais, e particularmente os/as que se envolvem com a causa LGBT devem também voltar suas atenções para este momento em que o Congresso Nacional debate dois projetos de ajuste que estão em tramitação: o Projeto de Lei Complementar 247 (doravante PLP 247), encaminhado pela Presidenta Dilma Rousseff antes do seu afastamento pelo impedimento, e a Proposta de Emenda Constitucional 241 (doravante PEC 241), encaminhada pelo Presidente Interino Michel Temer*. O primeiro, a pretexto de renegociar as dívidas dos governos estaduais para com a União, impõe severas restrições à expansão do gasto desses entes federativos, além de estabelecer uma trava à expansão do gasto primário federal durante períodos recessivos. Já o segundo impõe uma trava à expansão do gasto primário federal durante os próximos vinte anos, independentemente do nível da atividade econômica e do crescimento da arrecadação de impostos, taxas e contribuições federais, atrelando-o à evolução do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Em ambos, a exposição de motivos refere-se ao suposto descontrole dos gastos primários ante à evolução das receitas.

Por gasto primário, entende-se todo o gasto chamado não-financeiro e que, portanto, exclui os juros da dívida pública. O resultado primário consiste em subtrair o gasto primário das receitas primárias ou não financeiras (que incluem a arrecadação de impostos, taxas, contribuições), e poderá ser superavitário (se as receitas forem maiores que as despesas) ou deficitário. Depois da ocorrência sistemática de superávits primários entre 1999 e 2013, o setor público consolidado registrou déficit primário em 2014 e 2015, no tamanho equivalente a (-)0,6% do PIB em 2014 e (-)1,9% em 2015. Ocorre que, quando são somadas as despesas com juros — quando apura-se o resultado fiscal no conceito nominal — percebemos a ocorrência de déficits seguidos, mesmo nos anos em que o setor público registrou superávits primários. Vejamos, por exemplo, o ano de 2013. Este foi o último em que ocorreu superávit primário, em um montante equivalente a 1,7% do PIB. Se dele subtrairmos a despesa com juros, equivalente a 4,7% do PIB, chegamos ao déficit nominal, de (–)3% do PIB. Já em 2014 o déficit primário de (–) 0,6% do PIB, quando subtraída a despesa com juros, que equivaleu a 5,5% do PIB, apura-se um déficit nominal de (–)6% do PIB. Finalmente, em 2015, o déficit primário foi de (–)1,9% do PIB que, subtraído a uma despesa com juros de estratosféricos 8,5% do PIB, totalizou um déficit nominal equivalente a (–)10,4% do PIB. O leitor não terá dificuldades de perceber que a deterioração do quadro fiscal tem como principal causa a despesa com juros. E mesmo em 2015, quando o déficit primário aumentou, isto ocorreu mais pela quitação das “pedaladas fiscais” realizadas em dezembro de 2015, sem o que o déficit primário cairia pela metade.

Curiosamente, os dois projetos de ajuste fiscal em tramitação não impõem qualquer trava ao gasto com juros, impondo toda a carga do ajuste ao gasto primário. Ambos os projetos em tramitação destinam-se a reduzir drasticamente o tamanho do Estado brasileiro. A PEC 241 vincula a expansão do gasto primário à inflação durante os próximos 20 anos. É o mesmo que dizer que o tamanho do Estado brasileiro atual será o mesmo durante os próximos 20 anos. Reconhecendo-se os avanços recentes, mas ainda insuficientes para assegurar o acesso de ampla maioria da população aos serviços básicos de qualidade (saúde, educação, saneamento, rede de água potável, etc), o projeto sinaliza que a cobertura e a qualidade atual desses serviços permanecerá idêntica durante os próximos vinte anos, mesmo que a população cresça!

Para os governos estaduais e municipais, importantes lócus de execução de políticas voltadas para os LGBTs, o quadro é ainda mais difícil. Historicamente prejudicados pelo pacto federativo que deles retirou a capacidade arrecadatória tornando-os fortemente dependentes das transferências da União, a maioria dos estados brasileiros hoje passa por uma crise profunda decorrente da queda de arrecadação e das transferências, e do comprometimento de suas receitas com o serviço de dívidas contraídas nos exercícios anteriores. O PLP 257, ao renegociar as dívidas dos estados, impõe severos cortes das despesas primárias.

Os dois projetos são apresentados como única solução. Entretanto, é importante apontar que este discurso é falacioso. Como já mencionamos, a causa da deterioração das finanças públicas tem natureza essencialmente financeira, decorrente da pesada carga de juros. Por outro lado, se o sistema tributário brasileiro, altamente regressivo, não comporta mais elevação de impostos para a classe média, existe uma avenida de possibilidades de tributação entre os mais ricos, uma vez que os lucros e dividendos de aplicações financeiras são isentos de tributação sobre a renda, as grandes fortunas não são tributadas, e a propriedade de veículos como helicópteros, jatinhos particulares e iates também não é tributada nos moldes, por exemplos, dos automóveis, sobre os quais incide o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA).

Esta agenda precisa entrar na pauta do “ajuste” fiscal, sob a pena da interrupção de políticas públicas que nos são tão essenciais.

*Este artigo foi escrito em 20/08/2016

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