O TIRA-TEIMA DE 1935

Numa temporada marcada pela violência nos jogos, o America se reafirmou como time mais forte do Brasil e venceu a Portuguesa na disputa pelo Troféu Dr. Sérgio Meira

Fernando Saol
encarnado
8 min readJun 19, 2019

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Como era tradição no século passado, Rio de Janeiro e São Paulo sempre duelaram para saber quem era o melhor na disputa de vários esportes. No futebol, o Torneio Rio-São Paulo já tinha realizado sua primeira edição em 1933, porém descontinuada (O Torneio só viria a ter uma nova edição em 1940). Uma iniciativa bem sucedida eram os duelos de campeões estaduais. O primeiro embate entre os dois maiores pólos do futebol brasileiro foi em 1911, com a Taça Salutaris. A Taça Ioduran também foi realizada por três oportunidades, porém sem sucesso. O America chegou a ser proclamado campeão da Taça Ioduran de 1917, vencendo o Paulistano por WO.

A Taça dos Campeões Estaduais de São Paulo e Rio de Janeiro também surgiu na década de 1910, com sua primeira disputa realizada em 1914. A dificuldade em ter uma continuidade não era nenhuma novidade para época, mas sempre foi acompanhada de perto pela imprensa esportiva e apesar de nunca ter sido um torneio oficial era notória sua relevância para o futebol nacional. Era organizada pelas ligas esportivas dos dois estados. Para os torcedores, o tira-teima entre paulistas e cariocas era uma verdadeira demonstração de força para indicar o melhor time brasileiro da ocasião.

Em 1935, o America havia sido campeão estadual da Liga Carioca de Futebol (LCF) com uma campanha arrasadora. Foram 11 vitórias em 15 jogos, tendo a melhor defesa da competição. Nessa época, duas ligas organizavam o Campeonato Carioca: A LCF tinha em entre seus filiados America, Fluminense e Flamengo. A Federação Metropolitana de Desportos (FMD) tinha Botafogo, Vasco e Bangu entre seus quadros. Pelo lado paulista, a Portuguesa havia sido campeã do Campeonato Paulista de 1935 pela Associação Paulista de Sports Athleticos (APEA) com campanha parecida com a do America, com 10 vitórias em 14 jogos, tendo o melhor ataque da competição, com incríveis 65 gols marcados.

APEA & LCF organizariam a Taça dos Campeões Estaduais de 1935, que seria disputada em três partidas (se fosse necessário), já no ano de 1936. Nessa edição, o Troféu ganharia o nome de Taça Dr. Sérgio Meira, então presidente da Federação Brasileira de Futebol.

(Não confundir com a CBD. A FBF foi uma federação criada em reação ao Amadorismo da Confederação Brasileira de Desportos, que só aceitava jogadores amadores em suas competições e filiados. Extinguiu-se em 1937)

Jornal dos Sports — 05/04/1936

O primeiro jogo foi em São Paulo, dia 06 de abril, no campo do São Bento. A partida foi bastante aguardada durante a semana, com ampla cobertura dos jornais e rádios da capital paulista. O domingo paulistano seria coroado com um jogo entre as duas melhores equipes do país naquela temporada. A imprensa paulista dava como certa a vitória do “grêmio luso”, mas mostrava preocupação, pois dias antes, a Portuguesa havia sido derrotada pelo Flamengo, num amistoso com o placar de 6x4 para os rubro-negros cariocas.O primeiro jogo contra o America era tratado como “A Desforra”

Tanto a Imprensa carioca quanto a paulista cobriam os preparativos dos jogos com bastante entusiasmo.

Correio de S. Paulo — 05/04/1936

Os times entraram em campo da seguinte maneira:

Equipes escaladas para o primeiro jogo
Mamede era ex-jogador do Corinthians

A partida foi bem jogada, como era o esperado, com disputa intensa pelas laterais do campo. O America iniciou perdendo a partida, com um belo gol de Frederico, marcando 1x0 Portuguesa. Os rubros empataram logo em seguida com Plácido. A virada americana veio com gol marcado por Mamede, em lance de descuido da defesa rubro-verde, mostrou oportunismo do atacante, velho conhecido dos paulistas, por já ter defendido o Corinthians.

A essa altura, a Portuguesa já sentia o jogo e teria que se superar para tentar reverter o placar adverso. O primeiro tempo terminava com vantagem carioca, apesar do gol luso no fim da fase inicial da partida. A segunda etapa se iniciava e o time do America mudava sua postura, com o 2x1 no placar, uma retranca foi armada e por causa disso, o goleiro Walter foi o grande destaque, chamado de “Inviolável” pela imprensa paulista. O artilheiro Paschoalino, da Portuguesa, acordava para o jogo e foi o grande responsável pela virada lusa no final do segundo tempo, sendo seu o gol da virada já depois dos 45 minutos. Tal episódio, controverso, fez Walter, o goleiro do America, protestar contra a arbitragem, tirando a camisa e se recusando a encerrar a partida. Os ânimos foram apaziguados e o jogo terminou de maneira amistosa. A Portuguesa vencia o America, numa partida memorável entre os campeões estaduais. A equipe rubra se destacava pelas atuações de Plácido, Carola, Orlandinho e Mamede. O segundo jogo seria no Rio de Janeiro.

Disputa entre Paschoalino (atacante da Lusa) e Walter, goleiro do America

A delegação da Portuguesa desembarcara um dia antes do jogo decisivo. Inicialmente, as partidas finais estavam marcadas para os dias 18 e 20 de abril. Se o America perdesse novamente, a terceira partida seria cancelada. A partida seria disputada no Estádio da Rua Campos Salles

Jornal dos Sports de 18 de abril de 1936 trazia em sua capa a linha de frente do time do America para a temporada: Lindo, Mamede, Carola, Plácido e Orlando. Nos jogos contra a Lusa, Lindo foi substituído por Baiano.

A imprensa paulista confiava que o time luso levaria o Troféu para São Paulo, após a bela atuação no Campo do São Bento.

Fioretti, Rodrigues e Oswaldo eram o a espinha dorsal daquele timaço da Portuguesa

A partida foi marcada pela violência em diversos lances. A rivalidade entre os clubes havia se acirrado graças ao episódio do terceiro gol da Portuguesa, no primeiro jogo. A polêmica foi reavivada pelos times na segunda partida e certo momento os dirigentes dos dois clubes tiveram que entrar em campo para acalmarem seus jogadores.

O Estádio da Rua Campos Salles estava “abarrotado de assistentes”. Ainda no primeiro, quando a partida chegava aos 35 minutos, o ataque do America orquestrou lance decisivo. Em tabelinha entre Bahiano e Mamede, a zaga lusa foi envolvida pelo lance, deixando Orlando livre para acertar um chute violento, distante dez metros do gol de Rodrigues. O gol quase furou as redes. A linha ofensiva rubra foi bem elogiada, com Plácido infernizando os zagueiros Rapha e Fioretti. Walter, na meta rubra, foi uma verdadeira muralha e agarrou até o que não viu. O jogo violento terminou com vitória do America por 1x0 e um verdadeiro impasse no que diz respeito ao terceiro jogo.

A terceira partida seria disputada 48h depois da segunda.
A data para a terceira partida não estava fechada.

Devido ao cancelamento da terceira partida, abriu-se a possibilidade do America disputar um outro Troféu Interestadual. O desafio agora seria contra os campeões mineiros de 1935, o Villa Nova.

Temporada de 1936 foi marcada pelos jogos violentos

O jogo, como o anterior, foi marcado pelas jogadas violentas. Em exibição fraca, o time do America foi superado facilmente pelo Villa Nova, perdendo a partida por 2x1. O gol rubro foi marcado por Aírton. Mamede saiu marcado pela sua atuação indisciplinada, sendo suspenso pela Diretoria de Sports do AFC. O jogo foi tão truncado que o Villa Nova ameaçou abandonar a peleja. De positiva só a presença marcante da torcida rubra em Campos Salles. Infelizmente, muitos sócios do America começaram uma confusão na arquibancada, e a cavalaria da Polícia Militar precisou intervir. O jogo do dia 23 de abril de 1936 é pra ser esquecido.

Mamede depois de suspenso quis ir para o Olaria

O terceiro jogo finalmente ganhava uma data definitiva e seria no dia 06 de junho. O local seria novamente em Campos Salles.

Vital teve atuação exemplar no jogo!

O jogo da noite do dia 06 de junho foi diferente dos anteriores. Certamente o tempo decorrido dos confrontos de abril deu um clima diferente à partida. O time da Portuguesa já não tinha mais Duilio. Pelo time rubro começaram Walter, Vital e Badu na zaga; Motta, Ogg e Possato pela cabeça de área. A linha ofensiva do America era formada por Lindo, Aírton, Plácido, Mamede (que continuou no AFC) e Orlando.

O jogo equilibrado só foi mudar após o primeiro gol, de Plácido, após passe cirúrgico de Orlando. Após o 1x0, o America recuou, possibilitando o crescimento da Portuguesa na partida. Mesmo dominando, a Portuguesa parava em Walter. Ogg e Vital tiveram atuações importantes na partida, comandando o setor defensivo dos rubros. O primeiro tempo terminou morno.

Ogg era o pulmão americano daquele time

A segunda etapa começou com ampliação do placar. Em jogada de Mamede, Orlando lhe toma a bola e chuta sem possibilidade de defesa para Rodrigues. America 2x0. Mesmo vencendo o America tentava o terceiro gol. Eele veio após escanteio cobrado por Lindo. Plácido de cabeça, marcava o segundo gol dele na partida. A Portuguesa ainda descontou com Frederico. Mas não tinha mais papo, o America era o melhor time do Brasil na temporada 1935–36, segundo a imprensa esportiva e os milhões de admiradores de futebol pelo país.

Plácido marcou dois gols no decisivo jogo.

A defesa do título carioca de 1935 só se daria a partir de setembro daquele ano. Até o lá o America disputaria o Torneio Aberto do Rio de Janeiro. Mas o status de melhor do Brasil, mesmo em caráter não-oficial, estava estampado nos corações rubros. A Portuguesa voltava pra São Paulo e o destaque dos jornais paulistanos era o America.

Correio de S. Paulo — 08/06/1936

Trá-lá-lá!

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