O Uruguai planejou três dias de festa

Fernando Saol
encarnado
Published in
9 min readJun 8, 2019

O motivo? O Bi-campeonato mundial de futebol.

Julho de 1951. A cidade do Rio de Janeiro respirava futebol e o torneio que acontecia naquele momento era o Torneio Mundial de Campeões de Futebol, ou Copa Rio, como ficou conhecida no Brasil. Os jornais das principais praças do país noticiavam acontecimentos relativos à competição. Sporting (Portugual), Austria Viena (Aústria), Nacional (Uruguai), Juventus (Itália), Estrela Vermelha (Iuguslávia) e Nice (França) eram os times super badalados que estavam no Brasil. Todos campeões em seus países. Palmeiras e Vasco representavam o país anfitrião.

Uma informação importante: O Vasco participou da Copa Rio por ter sido campeão carioca de 1950. Por pouco essa vaga não foi preenchida pelo America, que foi vice-campeão daquela temporada com um time espetacular.

Porém, o que nos interessa não é esse campeonato. O America vinha de uma participação irregular no Torneio Rio-São Paulo de 1950. Com duas vitórias, três empates e duas derrotas, os rubros ficaram na 6ª colocação, com justiça. Um fato curioso dessa campanha foi o saldo zero de gols. 19 gols marcados, 19 gols sofridos. O campeonato carioca de 1951 só seria disputado no segundo semestre e uma solução para os times que não tinham competição para disputar até o Estadual eram os amistosos. Excursões internacionais eram algo comum e quase sempre rendiam boas histórias. É o que contaremos aqui.

O Uruguai vivia um período esportivo fantástico. Os atuais bi-campeões mundiais se destacavam em várias modalidades e o futebol era a principal delas. A euforia pela Copa do Mundo de 1950 não havia cessado e o Governo da República Oriental planejava uma grande festa para o aniversário da conquista no Brasil.

Os jornais da época noticiavam o Feriado dos Campeões Orientais, como ficou conhecida a data.

Foi decretado um feriado prolongado de três dias. As festividades incluíam desde inauguração de monumento aos Campeões de 1950 em Montevidéu, como exibições de filmes referentes à campanha da conquista em cinemas de todo o país. A mostra de películas se intitulava “Eles nasceram para serem campeões do mundo”. Um registro interessante é que a exibição dos filmes nos três dias de festa bateu recorde de vendagem nas bilheterias uruguaias. O país ainda respirava o Maracanazo.

O segundo gol uruguaio, marcado por Gigghia, na decisão da Copa do Mundo contra o Brasil, em 1950.

Por uma ironia do destino, o America realizaria uma excursão ao Uruguai, para disputar um Torneio Quadrangular, envolvendo Peñarol, Nacional e um combinado uruguaio, formado por jogadores de diversos times, algo muito comum também à época. O que o time do America não sabia, era que esse torneio era apenas uma desculpa para levar um time brasileiro ao solo uruguaio. Os rubros até disputaram um amistoso contra um Combinado uruguaio, no dia 15 de julho, no Estádio Centenário. O resultado foi 1x1.

Um dos maiores jogadores de futebol da história

Os dois dias seguintes foram de comemoração e expectativa. Estava confirmado para o dia 18 de julho um amistoso entre Peñarol e America. A população de Montevidéu ansiava por essa partida, afinal, o time do Peñarol era praticamente base daquele time campeão do mundo em 1950. Nada menos que sete jogadores participaram da vitoriosa campanha celeste. Eram eles: Maspoli, Obdulio Varela, Miguez, Gonzalez, Vidal, Gigghia e Schiaffino, os dois últimos os autores dos gols da vitória de 2x1 contra o Brasil naquela final.

Por ser brilhante e cheia de detalhes, reproduzimos aqui, parte da reportagem do jogo, feita pelo Jornal dos Sports, por meio de um especial correspondente:

Jornal dos Sports — 19/07/1951

O que foi a peleja de ontem no Estádio Centenário

MONTEVIDÉU, 18 (de Antônio Lopes, especial para Jornal dos Sports)

- Derrotando esta tarde o Peñarol, o America, do Rio de Janeiro escreveu uma das mais brilhantes páginas esportivas para o football brasileiro. De fato, o sucesso espetacular do conjunto nacional, ainda que para muitos tenha sido surpreendente, não deixou, todavia, de traduzir a eloquente supremacia de sua equipe. Foi um grande desempenho em que cada jogador superou-se a si próprio, a ponto de imobilizar inteiramente o adversário e não permitir que pudesse chegar à vitória que parecia antes da luta lhe pertencer. Talvez que o grande estímulo do America tenha sido os festejos com que os uruguaios comemoravam o primeiro aniversário da Copa do Mundo. Todo aquele entusiasmo inicial, com o desfile de cracks uruguaios que dava ideia de encorajar mais os players do Peñarol, acabou indiscutivelmente chamando à realidade os players rubros. E estes partiram para a luta decididos e acabaram sendo muito bem sucedidos.

Os três a um dizem tudo da peleja. Expressam com fidelidade um dos mais espetaculares desempenhos dos últimos tempos. Uma atuação que surpreendeu a própria torcida uruguaia, que abandonou o estádio Centenário como que meditando no fracasso da equipe que contou com Maspoli, Obdulio Varela, J.C. Gonzales, Gigghia, Schiaffino, Miguez, Vidal e outros dos seus ases que pouco antes foram aplaudidos pelo título que conquistaram no Maracanã.

NO PRIMEIRO TEMPO, A GRANDE VITÓRIA

Colheu o America a vitória ainda nos primeiros quarenta e cinco minutos. Foi na realidade quando o conjunto movimentou-se com segurança. A defesa muito firme, anulou praticamente todas as avançadas bem orientadas pelo magnífico Hober. O próprio Gigghia, nada pôde fazer, em face da marcação implacavel de Ivan. E com todos da defesa atuando dentro do desejado, o ataque pôde cumprir a sua missão. Nos primeiros dez minutos chegou a existir um certo predomínio dos brasileiros, tendo Maneco exigido uma defesa espetacular de Pereira Natero. E o primeiro goal do America, depois de uma eloquente demonstração de melhor football, surgiu aos 12 minutos. Foi um passe de Ranulfo a Dimas. E quando o comandante rubro tomava o caminho decisivo foi derrubado pelo centro-médio Obdulio Varella. Penalty indiscutível, muito bem assinalado pelo britânico Mr. Devine. O médio Ivan encarregou-se da cobrança da infração e acabou abrindo a contagem. E claro que o America cresceu mais em seguida. Aí então os uruguaios compreenderam que estavam diante de um rival de categoria. Contra-atacaram rapidamente e quando experimentaram Osni e os demais da defensiva, perceberam que tudo era muito difícil. Mas o America tratou de manter-se na ofensiva, para aos 30 minutos vir o segundo tento. Um gol magnífico de Maneco, que contou a colaboração de Ranulfo. O meia esquerda alvejou com segurança a meta que a esssa altura estava sob a guarda de Maspoli. E o arqueiro só pôde rebater. Surgiu então Maneco que com leve toque de pé, cobriu Maspoli e aninhou o couro nas redes.

A REAÇÃO DO PEÑAROL

Com dois a zero, deu-se nova reação do Peñarol. Ai a defesa do America teve que trabalhar. Osni defendeu espetacularmente um tiro de Gigghia, quando o ponteiro havia dominado Ivan. E logo em seguida, Osmar evitou que Miguez pudesse atingir seu intento. Eram transcorridos 36 minutos de luta, quando Miguez fintou Osvaldinho e de dentro da área, tentou um arremesso. A bola chocou-se com o corpo de Joel e o árbitro acabou dando penalty. Não houve protestos e Miguez aproveitou a infração para estabelecer o primeiro tento do Peñarol, que acabou sendo o único. A peleja ganhou maior movimentação. O Peñarol continuou na ofensiva, na expectativa do empate. Foi uma pressão impressionante, mas que a defesa soube neutralizar.

NIVALDINO CONSOLIDOU A VITÓRIA

Faltavam apenas dois minutos para o final da primeira fase, quando o America se fez sentir novamente, tal como o fizera em grande parte da fase. O contra-ataque foi rápido e acabou sendo bem sucedido. Uma fuga espetacular de Maneco, após dominar Obdulio Varela, fez com que o couro chegasse em seguida a Nivaldino na ponta esquerda. E o ponteiro improvisado avançou rápido área a dentro e só à frente de Maspoli finalizou certeiramente as redes uruguaias. Era o terceiro goal que acabou na realidade, consolidando a vitória sensacional.

Quase podemos dizer que assistimos o jogo lá no Estádio Centenário, tamanho o detalhamento dos lances primordiais.

Aquela derrota foi um verdadeiro anti-clímax para o povo uruguaio. Como um jogo festivo, onde era certa a vitória do Peñarol, terminava do jeito que terminou? Os anfitriões eram super favoritos para a partida e os 90 minutos eram uma questão de formalidade. O jogo com o triunfo uruguaio seria um fim incrível de feriado. Mas não foi bem assim e o sentimento no Brasil foi de Copa vingada.

A final da Copa Rio tomava todos os jornais e rodas de conversa do país.

A Copa Rio estava na sua semana decisiva e a cidade do Rio de Janeiro respirava o clima de expectativa da final entre Palmeiras e Juventus, quando chegavam as primeiras notícias da vitória do America no Uruguai. Os jornais estampavam manchetes do triunfo encarnado. De norte a sul do país, quem gostava de futebol se sentia um pouco mais aliviado pela bela exibição brasileira em solo uruguaio.

A Folha d S.Paulo de 19/07/1951

Devido ao precário sistema de comunicação da época, informações desencontradas dos autores dos gols eram dadas. Ficaremos com a versão dos Jornal dos Sports. Explicaremos no fim da publicação.

Mas em todas as matérias, o alegria pela vitória era algo constante. Durante a semana, o noticiário reservou espaço para o pós-jogo.

Jornal dos Sports — 20/07/1951

Já não existia mais clima para o America permanecer no Uruguai. O amistoso que seria disputado contra o Nacional havia sido cancelado, por recusa do clube uruguaio. Outro jogo que inicialmente estava nos planos, contra o Selecionado de jogadores de clubes uruguaios também não se realizou. Em resumo, o Torneio Quadrangular que nunca foi algo concreto, virava poeira. O foco dos noticiários agora era o retorno do time ao Brasil. Temos essa manchete sensacional de uma diário carioca:

O America voltava para o Brasil sem perder nenhuma partida. A euforia que era celeste, agora era rubra.

Para uma noção geral do feito americano, a vitória arrebatadora e com futebol envolvente, gerou interesse diplomático. O time rubro foi recebido para uma justa homenagem na Embaixada Brasileira em Montevidéu. O almoço do time com o embaixador brasileiro no Uruguai aconteceu no dia seguinte à partida

Copa “vingada”, jogos cancelados, campanha invicta no Uruguai. Era hora de retornar ao Brasil. No Rio de Janeiro, várias homenagens também foram programadas, inclusive uma possível volta olímpica durante o intervalo da finalíssima da Copa Rio entre Palmeiras e Juventus. Em Campos Sales 118, outras homenagens ao time aconteceriam.

A viagem de volta era cercada de expectativa.
SE HOUVER TEMPO.

Fim da excursão, fim da semana mágica para o futebol brasileiro. O Palmeiras conquistava a Copa Rio, considerado o campeão mundial de clubes de 1951 pela imprensa esportiva. O America retornava do Uruguai com uma apresentação deslumbrante, talvez aquela que os torcedores brasileiros aguardavam para a final da Copa do Mundo de 1950. O sentimento de revanche era real.

TIMAÇO

Osni, Joel, Osmar,Rubens, Osvaldinho, Ivan, Valter, Maneco, Dimas, Ranulfo e Nivaldino.

Os craques que nos vingaram a Copa.

O nosso destaque final vai para o jogador Antonio Lopes, reserva do time durante a excursão ao Uruguai. Lopes foi o correspondente do Jornal dos Sports e nossos olhos naquele jogo histórico. Por isso ficamos com sua versão dos autores dos gols. Quem melhor do que a testemunha ocular do jogo para confirmar essa importante informação?

Obrigado, Lopes!

TRÁ-LÁ-LÁ!

--

--